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São Paulo, domingo, 16 de fevereiro de 2003

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Obsessão e recorte

Páro na praça da República e vejo que a Prefeitura mandou construir uma espécie de quiosque de reclamações. Estaciono o carro numa zona azul e vou a pé em direção à São João. De repente decido voltar sobre meus passos: lembrei que tenho que reclamar de duas multas e imagino que lá haja os formulários de praxe, nunca se sabe se do Estado ou do município. Aproximo-me. Não, diz-me o homem do quiosque, agora basta uma carta explicando a ocorrência, dirigida ao departamento. E dá-me uma carta manuscrita em uma folha de caderno, provavelmente de um usuário, para eu copiar o modelo e o nome das autoridades. Primeiro, aquilo é um absurdo. A letra é ilegível e a carta mistura questões pessoais com o pedido de revisão, é uma anedota, não pode ser verdade. Segundo, quando estou finalmente copiando o endereço apoiada à bancada do quiosque, chega um jipe com uns funcionários que correm para o local onde estou e a fila que se formou atrás de mim sussurra: os fiscais! os fiscais! de modo tão apavorado que eu também me afasto de mansinho com o papel na mão, para o lado da fonte que há no centro, e a fila atrás. Parece que é proibido entregar cartas assim aos usuários, só pode ser dado o formulário, mas como o formulário acabou e o responsável pelo quiosque é uma pessoa camarada, ele empresta a carta para a gente copiar. Se os fiscais pegarem, ele é demitido. Diante do incômodo de ficar disfarçando aí na cara dos fiscais, eis que me surge uma idéia. Vou xerocar a carta, umas 30 cópias, dou para o pessoal que está na fila e ainda sobra para o cara do quiosque. Tem xerox por aqui, pergunto ao passante ao meu lado. Claro madame, logo no comecinho da Barão. Perfeito, é só atravessar a rua e voltar, digo-me, vou trazer uma cópia para todos. Só que, obviamente, lá o xerox fechou. De indicação em indicação vou descendo para os lados da Rio Branco impressionada com o grau de deterioração a que a cidade chegou. Desço mais. Só a pobreza, como dizem nossos folhetos turísticos, ainda pode ser folclórica. A miséria é completamente inóspita, arrasadora. Aqui, na zona do mercado, em pleno dia, cruzo com umas ratazanas imensas e pessoas que se movimentam como larvas em volta dos prédios dos sem-teto. Xerox, madame, isso não existe por aqui. Tente no armazém do seu Chaim, ele tem fax. Vou em direção ao armazém. Coisa do outro milênio, caindo aos pedaços, a poeira fazendo renda com as teias de aranha. Explico o caso ao seu Chaim, mas ele não quer saber: não senhora, não trabalhamos com isso, não é da nossa alçada.
Volto à praça pela parte de cima, não sem achar que o prédio do mercado daria um excelente fundo cinematográfico com os rolos de penugem em revoada, os farrapos, os muros salpicados de poeira, os cachorros buscando restos nas sarjetas. Dou a volta e, quando vejo o mesmo guardador de carros de antes dizendo é por aqui, acho que cheguei. A fonte está lá, no meio do lago, mas as pessoas da fila com suas bolsas e suas trouxas e os grandes peixes estão no fundo, respirando por suas guelras insuspeitas. Junto-me a elas mergulhando docemente, e também submirjo, também respiro.


Vera Albers é autora de "Deformação" (ed. Perspectiva) e "Surtos Urbanos" (ed. 34).


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