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São Paulo, domingo, 16 de fevereiro de 2003

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Segredo

E foi aí que ele percebeu que nada existia. Foi assim, na Secretaria de Finanças, quatro horas de fila para chegar no guichê, pegar um código, pegar outra fila, mais quatro horas. Isso depois de já ter ficado duas tardes inteiras, ouvir duas vezes do mesmo rapaz que o sistema estava fora do ar, voltasse dia seguinte. Ia reclamar, mas o cartaz "Desacato a funcionário público dá cadeia" o intimidou. E foi assim, andando em direção à Estação da Luz, preocupado em como pagaria a conta do celular, que ganhara numa promoção da qual nem lembrava ter participado, um cachorro quente na mão, que a coisa se deu. Nada existia. Aqueles despachantes vendendo informações por R$ 10,00, aquele camelô vendendo CDs piratas, aqueles menininhos com as mãos esticadas chamando-o de doutor. Nem o cheiro do metrô, a escada rolante, o sinal fechado, o cara que corria como se fugisse de algo. Chegou exausto em casa. O que aconteceu?, ela perguntou sem olhá-lo, a criança no colo. Ele continuou a sorrir, ela não existia. Nem aquela criança, nem aquele cachorro, nem aquelas prestações atrasadas. Fez o movimento de beijá-la, ela desviou, sumiu apressada atrás de uma porta. Não ligou a televisão para se sentir menos miserável. Sua miséria não existia. Abriu a janela e ficou a olhar as árvores da rua. Amor, não vá se atrasar, um beijo na boca, que ele não entenderia, mas aceitaria, "Seu safadão", completaria com malícia, para seu espanto. Primeira vez que a veria cantarolar logo cedo. Desceria na Estação da Luz, não haveria despachantes, mendigos, e a frente da Secretaria estaria vazia. Entraria apreensivo no prédio. Uma moça atenciosa o atenderia, carimbaria o que precisava ser carimbado, entregaria o protocolo, a inscrição viria pelo correio. É, ainda assim, nada existiria. Encontrou os olhos dela no corredor. Acho que amanhã consigo o protocolo... "Tá na mesa", diz, recolhendo os restos da brincadeira da criança. Ele não existia, e ela sempre soube, em segredo.


Carlos Eduardo de Magalhães é autor de "Os Jacarés" (Cosac&Naify) e "Mera Fotografia" (Rocco), entre outros.


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