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São Paulo, domingo, 16 de fevereiro de 2003

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Kafkas

Kafka estava sentado com Dora Dymant, sua última amada, e seu amigo Max Brod, num café em Berlim. Era março de 1924 e Brod viera buscar Franz de volta para Praga, assim que soube que a tuberculose do amigo avançava fora de controle.
-Tive um sonho muito perturbador há duas noites -diz Franz. Já o contei a Dora e gostaria que você também o ouvisse, Max.
-Estou muito curioso.
-Talvez o mais incomum no sonho era que este que se chama Franz Kafka era antes personagem, objeto do sonho, que o sujeito dele, o sonhador. Este sonhador era outra pessoa.
-Mas não seria você, de qualquer modo? Se não, ao despertar, não poderia lembrar-se do sonho.
-Sim, é verdade, mas no mínimo eu me dividia. E posso dizer que sonhava o sonhador. De que ele não era exatamente eu, tenho certeza. Até por uma razão muito simples, era mulher. Vamos ver se você adivinha quem. Dora, depois de duas tentativas enciumadas, acertou.
Max, hesitante: -Ottla?
Dora: -Sim, a irmãzinha querida, a favorita dele.
-É, parece que sou um livro aberto -sorri Franz. Ottla, oculta entre pedestres, observava este seu irmão caminhando em Praga, na praça da Velha Cidade, de mãos dadas com uma mulher e um menino, de seus oito, nove anos. Embora visto de costas, o homem tinha mesmo as minhas características, como o cabelo negro repartido, as orelhas bem separadas, o meu modo de andar. E, quando virou de perfil, para olhar com ternura a criança, seu rosto era o meu.
-E a mulher que ia com ele, quem era?
-Vamos ver se você adivinha de novo -diz Dora, com um sorriso irônico.
-Não me digam que Ottla outra vez?
-Sim -murmura Kafka.
-E o que a Ottla que sonhava o seu sonho sentia, Franz? -diz Max.
-Um misto de medo e fascínio. Como se finalmente o seu grande amor fraternal se transformasse numa relação completa, que havia frutificado no menino. Céus, como esse sonho se torna cada vez mais claro! Pois vejam. Sonho que sou Ottla sonhando que mantém uma relação conjugal comigo, da qual nasceu uma criança, que, percebo agora, sou eu mesmo. (Os olhos de Kafka se umedecem.) É como se, sentindo a minha vida tão ameaçada, eu me refugiasse no menino que fui, mas vivendo um aconchego perfeito, proporcionado por Ottla e o Franz adulto.
-Pretende escrever sobre isso? -pergunta Brod, também emocionado.
- Não, porque, se os meus escritos têm uma afinidade com os sonhos, deixo-os sempre entregues a seu mistério, nunca os interpreto. E este sonho está constrangedoramente claro.


Sérgio Sant'Anna é autor de, entre outros, "Um Crime Delicado" (Companhia das Letras).



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