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São Paulo, domingo, 16 de março de 2003

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A CASA PRIMORDIAL

Mauricio Puls
da Redação

Onde começa a arquitetura? A dúvida surge quando nos defrontamos com edificações malogradas, que não conseguiram atingir a pretendida beleza. Toda forma de avaliação estética, porém, pressupõe a existência de um padrão de medida: para julgar uma construção real, recorremos a uma construção ideal. Esse paradigma varia ao longo da história, mas situa-se sempre num passado mítico: os atributos que consideramos indispensáveis a um prédio moderno estão presentes, paradoxalmente, na construção primordial.
"A Casa de Adão no Paraíso", de Joseph Rykwert, constitui uma investigação audaciosa e cativante sobre a história desse paradigma -a cabana primitiva. Sua tese central é a de que todos os povos imaginaram uma morada original, resultante da intervenção de um deus ou de um herói, que guardava uma afinidade essencial com o homem e a natureza. A seu modo, cada época projetou essa estrutura basilar, esse "edifício ideal que existiu antes dos tempos, quando o homem sentia-se inteiro em sua casa, e sua casa era tão justa quanto a própria natureza". Sendo por princípio o edifício perfeito, é o arquétipo que empregamos inconscientemente para calcular a distância entre a arquitetura que vemos e aquela que gostaríamos de contemplar. Quando o presente se torna insatisfatório, sentimos a necessidade de explicitar esse modelo, para nortear uma renovação das práticas construtivas.
Em 1924, por exemplo, a morte de Lênin obrigou os dirigentes soviéticos a erguer um monumento. Após a desmontagem de uma construção provisória, levantou-se nesse mesmo ano um mausoléu na praça Vermelha, inicialmente de madeira, que foi vertido em pedra em 1930. Seu arquiteto, Anastas Schusov, concebeu a obra nos moldes do túmulo de um "líder primitivo das estepes mongólicas". Todos os períodos revolucionários extraem seus ideais de um passado longínquo: como ensinava Hegel, avançar é regressar ao fundamento.
Iniciando seu estudo pelo modernismo, Rykwert analisa as reflexões de Le Corbusier, Frank Lloyd Wright e Adolf Loos sobre as primeiras vivendas, e exibe a cabana de madeira construída por Walter Gropius, fundador da Bauhaus.
Em seguida, caminhando sempre para trás, passa em revista as concepções de John Ruskin, Gottfried Semper, Marc-Antoine Laugier e Claude Perrault, Palladio e Sêneca, até alcançar Vitrúvio. Para cada teórico, a essência da arquitetura estava presente nessa construção original. Como é impossível determinar qual teria sido a primeira casa, os pensadores estavam livres para atribuir a essa construção especulativa todos os predicados que consideravam indispensáveis a um bom edifício, mas que se manifestavam de forma incompleta ou imperfeita nos imóveis que conheciam.
Veja-se por exemplo a análise de Filarete, no século 15, sobre o tema: "Deve-se supor que, quando Adão foi expulso do Paraíso, estava chovendo. Como não possuía um abrigo à disposição, ele colocou suas mãos acima da cabeça para proteger-se da água... Deve-se admitir portanto que Adão, tendo feito para si, com as duas mãos, um telhado, e considerando a necessidade de sobrevivência, refletiu e se aplicou em construir algum tipo de habitação que o protegesse das chuvas, bem como do calor do Sol". Dessa hipótese brilhante, Filarete deduz que toda construção deve seguir as proporções do corpo humano, que constituem o fundamento das ordens arquitetônicas.
Rykwert conclui observando que o retorno à origem é uma preocupação constante em toda a evolução: a reflexão sobre a primeira casa é, essencialmente, uma reflexão sobre o significado da arquitetura. Essa avaliação visa a repensar o valor de nossas obras e modos de construir e abrir caminho para sua transformação. Por isso sempre retornamos a essa cabana primitiva, situada "além do alcance do historiador ou do arqueólogo, em algum lugar que devo chamar de Paraíso. E o Paraíso é uma promessa, tanto quanto uma rememoração".


A Casa de Adão no Paraíso
288 págs., R$ 37,00 de Joseph Rykwert. Trad. de Anat Falbel, Ana Gabriela Godinho de Lima, Margarida Goldsztajn e Mário H.S. D'Agostinho. Editora Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025, CEP 01401-000, SP, tel. 0/xx/11/ 3885-8388).


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