São Paulo, domingo, 16 de abril de 2006

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Cinco estudos se debruçam de modo desigual sobre a vida e obra do mineiro Carlos Drummond de Andrade, analisando a rima dos poemas, a intimidade do autor, a relação com a história e a noção de cordialidade

Um herói de nosso tempo

Divulgação
Carlos Drummond de Andrade sorri para a câmera do escritor Fernando Sabino em cena do curta-metragem "O Fazendeiro do Ar"


MARCOS SISCAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

A quantidade de estudos sobre a obra de Carlos Drummond de Andrade publicada (ou republicada) por ocasião do centenário de nascimento do poeta, em 2002, pode ser considerada um fenômeno editorial. Mas a duração desse fenômeno e a presença do poeta no horizonte imediato de qualquer conversa sobre poesia contemporânea vão bem além da lógica do mercado ou da banalidade da efeméride.
Do artista da alta-costura ao presidiário memorialista, passando por quase todos os matizes da crítica universitária, Drummond coleciona qualificativos cujo pêndulo oscila do "melhor" ao "maior". Trata-se, certamente, de um dos fundadores daquilo que o brasileiro culto reconhece como história de seu "sentimento de mundo". A quase unanimidade que conquistou faz justiça à sua importância dentro dos padrões estéticos e morais do modernismo, mas designa, ao mesmo tempo, um problema a ser compreendido.


Drummond é um dos fundadores daquilo que o brasileiro culto reconhece como história de seu "sentimento de mundo"


Como leniente para a "deriva" da poesia das últimas décadas ou como alternativa para a rudeza do debate literário que a precedeu, o interesse por Drummond tem feito dele o herói do "impasse" que nos assombra.
A dificuldade de isenção crítica é evidente, como se nossa época corresse o risco de limitar-se a fazer eco aos temas, aos tons, aos paradigmas de interpretação drummondianos. Como modelo daquilo que temos a dizer sobre nós mesmos, a voz do poeta se torna cada vez mais luminosa, isto é, cada vez mais ilegível.

"Grande obra"
O estudo de Hélcio Martins, que dá título a seu volume de ensaios, é um trabalho dos anos 1960. Propõe uma abordagem técnica da rima, aplicando-a a Drummond. O horizonte da Nova Crítica e da filologia espanhola (Dámaso Alonso) imprime um sotaque de época ao formalismo do método, que se contenta com a descrição acumulativa da "grande variedade de atitudes e intenções expressivas" contidas na rima. A suposição da "grande obra" basta para justificar a empreitada.
Trazendo na capa o nome e a foto de Drummond (embora inclua ensaios sobre Pedro Salinas e Julio Herrera y Reissig), a apresentação do livro reforça as motivações editoriais. É um clima não apenas de homenagem mas de reconhecimento do "vasto mundo" drummondiano que dá sentido ao livro de Letícia Malard.
Embora publicado por uma editora acadêmica, propõe-se intencionalmente a evitar o modo "especializado" de falar sobre o poeta. Tomando como pressuposto o fato de que a poética em questão "é marcadamente autobiográfica" e vinculada à história, a autora usa uma abordagem igualmente "narrativa", "espontânea na medida do possível, ou seja, como se estivesse contando casos" (sobre Drummond e a cidade, o cinema de Chaplin, o humor).
Com isso, a opção pela simplicidade didática flerta com a facilitação do conteúdo.
Mas é, evidentemente, em "Os Sapatos de Orfeu", de José Maria Cançado (texto de 1993, já conhecido da crítica e republicado agora), que Drummond se torna plenamente personagem de si mesmo. Pode-se ler essa biografia como se lê um romance. A ficcionalização da vida do poeta, isto é, a necessidade de preencher os vazios deixados pela história, é o corolário do renome.

Ironia e ternura
Se isso pode ser dito sobre toda e qualquer biografia, a "ironia" e "ternura" com que o autor descreve os intestinos da vida privada da intelectualidade brasileira (com seu patriarcalismo, suas hipocrisias sociais, suas tentativas de "enquadramento" intelectual) não deixam de ser significativas.
Apesar da defesa que faz do caráter desestabilizador da "biografia" em sua relação com a "obra", o livro reafirma a imagem do poeta discreto, atormentado pela memória pessoal e pelos rumos da história-imagem sobejamente construída por Drummond em seus textos e atitudes públicas. O relato dessa mitologia pessoal, que ajuda a entender parte da história intelectual do século 20, conclui-se sintomaticamente com a constatação do priapismo da palavra drummondiana, "monolito de coerência, coluna de obelisco atravessando o século".
Analisando os meandros poéticos dessa coerência, Betina Bischof recoloca, articuladamente, as relações entre poesia e história. Mostrando que a negatividade histórica se realiza esteticamente, a autora interpreta poemas de diferentes "fases", embora encontre terreno mais fértil em "Claro Enigma".
Os impasses da "oficina irritada" constituem aí "obstáculo e mediação" do sujeito poético, ou seja, solução literária para uma problemática que tem raízes na exigüidade contrariante do espaço histórico-político. Tanto o domínio técnico (poético) quanto a vontade de recusa (negatividade) aparecem como função do sujeito, efeito de sua objetivação.
Se o obstáculo está na história, sua função mediadora se configura como estratégia de uma subjetividade artista.
De quebra, o livro acena indiretamente com aspectos conhecidos, mas pouco discutidos em profundidade: a obsessão pela memória, a generalização histórica da experiência pessoal, o desprezo pelo "resultado intelectual" (confundido com o "abstrato") e o desprezo pela técnica (confundida com o "burocrático").
Não são problemas só da obra de Drummond mas questões com as quais a crítica brasileira se debate na medida em que aprofunda a herança recebida do próprio modernismo.

Contradições
Por isso mesmo, o ponto de partida de Jerônimo Teixeira é provocativo: analisar o peso das contradições da "cordialidade" brasileira na poesia de Drummond. Filiando-se a uma certa leitura de "Raízes do Brasil", o autor analisa as contradições poético-históricas formalizadas nos poemas de Drummond. Sob a batuta de Adorno, o poeta deixa de ser interpretado unicamente como agente político ou estético do impasse, já que nele se manifesta a contradição profunda entre palavra e idéia.
A abordagem é convincente e coloca, polidamente, problemas para parte da crítica drummondiana, o que bastaria para recomendá-lo.
Ocorre que a obra de Drummond continua a ser designada como formalização exemplar de uma contradição que não atinge nem o conceito de história nem o de linguagem. Drummond permanece como monumento contraditório, espelho distorcido em que nos miramos como nação. Restaria entender o sentido dessa contemplação.
Tudo se passa como se Drummond tivesse inventado a poesia "brasileira" e, assim fazendo, tivesse também nos privado dela. Algo "da sua presença formidável, cada vez mais viva (...), nos ameaça, desafia e acompanha", como diz Armando Freitas Filho no prefácio de "Os Sapatos de Orfeu".
A interpretação do poeta diz alguma coisa sobre aquilo que pensamos que somos, mas será suficiente para dizer aquilo que podemos ser ou que temos nos tornado? Aos poucos, no ímpeto de esclarecê-lo, é como se Drummond se tornasse para nós cada vez mais ilegível, um herói cada vez mais insuperável.

Marcos Siscar é poeta e professor de literatura da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em São José do Rio Preto. É autor de "Metade da Arte" e tradutor de "A Rosa das Línguas", de Michel Deguy (ambos pela Cosacnaify), entre outros.

A Rima na Poesia de Carlos Drummond de Andrade
349 págs., R$ 45 de Hélcio Martins. Ed. Topbooks (r. Visconde de Inhaúma, 58, sala 203, CEP 20091-000, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/2233-8718).
No Vasto Mundo de Drummond
145 págs., R$ 26 de Letícia Malard. Ed. UFMG (av. Antônio Carlos, 6.627, CEP 31270-901, Belo Horizonte, MG, tel.0/xx/31/ 3499-4650).
Os Sapatos de Orfeu
368 págs., R$ 45 de José Maria Cançado. Ed. Globo (av. Jaguaré, 1.485, CEP 05346-902, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/ 11/2199-8888).
Razão da Recusa
160 págs., R$ 20 de Betina Bischof. Nankin (r. Tabatingüera, 140, 8º andar, conjunto 803, CEP 01020-000, SP, tel. 0/xx/11/ 3106-7567).
Drummond Cordial
240 págs., R$25 de Jerônimo Teixeira. Ed. Nankin.



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