São Paulo, domingo, 16 de agosto de 2009

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+(r)éplica

O espanto de Bense


A arquiteta Ana Luiza Nobre defende reflexão sobre o Brasil feita pelo filósofo alemão no livro "Inteligência Brasileira"


ANA LUIZA NOBRE
ESPECIAL PARA A FOLHA

A resenha, por Sergio Miceli, do livro "Inteligência Brasileira - uma Reflexão Cartesiana" (ed. Cosac Naify), de Max Bense (Mais!, 26/7), mostrou-se tão surpreendente quanto o título do livro resenhado. E isso porque seu fundamento se resumiu a uma única acusação: Bense "desconhece por completo a história política, econômica e social do país". O que levou à desqualificação imediata do livro como um "mantra etnocêntrico sobre obras e artistas de seu [Bense] agrado".
Miceli tem razão ao ressaltar a escassez de perspectiva política na leitura do filósofo alemão. O livro resulta, afinal, de quatro viagens feitas ao Brasil entre 1961 e 1964, e a recusa de Bense em considerar o acirramento das tensões políticas e sociais no país favorece a denúncia da "estetização escancarada das artes", frequentemente entendida como simples decorrência da "ojeriza ao mundo social e à política", como quer o resenhista.
O fato de Bense não ter se detido sobre tais tensões, nem mostrado "compaixão" pelos "contrastes entre destituídos e abastados", como assinala Miceli, não significa, todavia, um mero alheamento em relação ao ambiente cultural brasileiro. Na verdade, uma leitura tão enviesada de texto tão denso corre o risco de revelar muito mais a "falta de frescor" dos juízos do leitor do que do autor.
Como justificar, por exemplo, que o interesse de Bense pela produção de Lygia Clark ou [Alfredo] Volpi, em detrimento de obras então bem mais valorizadas, como as de Aleijadinho ou [Candido] Portinari, seja tomado como puro capricho pessoal? E o que dizer da menção a Clarice Lispector, pelo resenhista, como mera "esposa de diplomata"?

Inteligência a-histórica
Provavelmente não faltarão leituras prontas a cobrar de Bense a opção por concentrar-se numa produção irredutível a qualquer conteúdo ideológico.
Outros, no entanto, preferirão interrogar a relação de Bense com a emergência de uma consciência inteligente dos processos de produção artística no Brasil (de acordo com a formulação básica das vanguardas construtivas).
E nesse caso poderão explorar mais a fundo a interlocução que o filósofo e matemático alemão, conhecido por sua oposição a qualquer tendência irracionalista, encontrou em um contexto tão afeito a particularidades e que aos seus olhos se define, paradoxalmente, pelo atributo universal da inteligência (conforme já foi notado por Luiz Camillo Osório).
Uma leitura dessa ordem exige, no entanto, a superação de pressupostos teóricos calcificados em favor de um contato mais estreito com o livro em questão (que Miceli insiste em chamar de "livreto", aliás, como se sua dimensão dependesse de suas características físicas).
O certo é que em "Inteligência Brasileira" não encontraremos uma exposição das formulações estéticas do filósofo ulmiano [referência à Escola Superior da Forma, em Ulm, na Alemanha], conforme condensadas em sua "Pequena Estética" (ed. Perspectiva, 1971).
Teremos mesmo dificuldade, em alguns momentos, de enquadrar o inusitado pensamento estético de Bense (baseado na mensuração de "estados estéticos") no conjunto de experiências difusas que se somam neste relato de seu primeiro contato com os trópicos e com a América.
Quanto mais entrarmos no livro, mais experimentaremos, isto sim, o espanto de Bense, seja diante da "opressão da natureza" (dos cupins às tempestades), seja diante da capital recém-inaugurada [Brasília], que ele reconhece como expressão do "design total" (por analogia com a noção wagneriana de "obra de arte total"). Pois é este um dos pontos fundamentais do livro, e mais do que suficiente para recomendar a sua leitura hoje: a reflexão sobre o sentido que o design assume no Brasil dos anos 1960, diante da "permanente atualidade" de uma inteligência que se constitui, no dizer de Bense, de maneira a-histórica.
Tudo isso acabou escapando, porém, a Miceli, que ao se ater a "indagar a razão de publicar o livreto recém-lançado" hoje, "em momento de baixa do concretismo literário", também se nega a fazer avançar a reflexão sobre um dos momentos mais produtivos da arte no Brasil.


ANA LUIZA NOBRE é professora na faculdade de arquitetura e urbanismo da PUC-RJ e assina o posfácio do livro "Inteligência Brasileira", de Max Bense (ed. Cosac Naify).



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