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A infame tradição
Vícios políticos ainda permeiam direita e esquerda no Brasil e põem em risco o processo democrático
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
As fraquezas do sistema político brasileiro não estão nos
procedimentos
eleitorais. Estes são
menos complicados do que os
norte-americanos, como provam as últimas eleições lá e
aqui. Residem no modo pelo
qual as regras -sejam elas meros acordos ou leis promulgadas- são cumpridas.
O vício é nacional. Sabemos
que existem leis que não pegam. O combate ao alcoolismo
é o exemplo mais recente. Foi
proibida a venda de álcool na
beira das estradas, a última "lei
seca" impôs limite praticamente zero ao consumo de bebida
pelos motoristas.
Ambas foram escandalosamente anunciadas, cumpridas
a ferro e fogo por algumas semanas e, depois, como o Estado, felizmente, não tem condições de vigiar, controlar e punir
os pormenores do comportamento dos cidadãos, as coisas,
infelizmente, resvalam para a
situação anterior.
A lei espetaculosa não logra
os resultados desejados, mas
cria ambiente favorável ao dedo-duro, ao gavião puritano
que acredita ser possível mudar a sociedade mediante golpes de legislação e de terror.
Essa tradição brasileira cada
vez mais permeia o jogo político brasileiro. Parece-me que
uma das causas foi o empolamento do centro, particularmente quando passou a abrigar
o PT e o lulismo.
Estou convencido de que isso era inevitável, dadas as novas circunstâncias políticas internacionais e as novas formas
assumidas pelo capitalismo.
De um lado, o inevitável multilateralismo criado depois do
fim de Guerra Fria; de outro, a
reestruturação do capitalismo,
que, graças a um tratamento
inovador e surpreendente da
informação, leva aos limites
sua velha tendência à globalização. Desaparecem do horizonte o ideal de uma economia
sem mercado e a ilusão da política regida racionalmente pelo
comitê central.
Se a esquerda consiste em
criar alternativas reais às misérias promovidas pelo capital,
agora sua tarefa se consolida na
luta pelo aprofundamento da
democracia, na demanda de
instituições transparentes, que
sejam capazes de controlar as
loucuras do mercado, as lutas
de classes desvairadas, o jogo
sujo na política.
Democracia interna
A atual crise financeira e econômica comprova que os Estados nacionais somente se tornam atores eficazes em suas
práticas anticrise se agirem
coordenadamente, o que levanta desde logo a questão política
do controle popular das instituições internacionais encarregadas de sanar os desregramentos dos mercados.
Ora, esse controle implica
aprofundar ainda mais a democracia interna. Em primeiro lugar, criar um espaço em que os
interesses e as ideologias possam se configurar publicamente, de sorte que a luta política se
exerça como jogo de opções
particulares diante de alternativas claramente desenhadas.
Sob esse aspecto, toda política que dilua essas particularizações se torna extremamente
reacionária.
Para que haja maioria consistente, também é preciso minoria consistente, que as duas
partes não se constituam ao sabor de acordos do momento ou
de interesses articulados para
saquear os fundos públicos;
muito menos para satisfazer a
vaidade de condottiere.
Esse vício é comum a todos
os partidos atuais. Mas, estando no poder nacional, o governo articulado pelo presidente
Lula é o maior responsável por
essa anomia da política brasileira. O exercício do poder possui dimensão normativa insubstituível, exemplifica parâmetros do que pode ser dito e
do que pode ser feito.
Como essa normatividade
pode ser mantida quando toda
alteridade é absorvida pelas
alianças mais díspares?
Como manter paradigmas se
o presidente, com sua fabulosa
capacidade de formular o desejo imediato de seu auditório do
momento, se permite ser irresponsável quando se lhe pede
uma análise correta de uma situação difícil? "Qual é a profundidade da crise? Perguntem ao
Bush!"
Como se desenha uma crítica
de esquerda a essa anomia?
Não basta possuir o voto mais
popular; Mussolini gozava desse privilégio. Deve-se, antes de
tudo, defender e aprofundar a
democracia.
É o que a direita proclamava
quando se acreditava no centralismo democrático, mas
sempre vale menos o que se diz
e mais o que se faz, e não adianta, ao sair em defesa da democracia, procurar ajuda nos
quartéis.
Nem bem terminaram as
eleições municipais deste ano e
já os partidos e os grupos políticos se embolam pela conquista
da Presidência.
Embora os resultados dessas
eleições tenham sido melhores
do que o esperado, pois não se
configurou a onda vermelha
unificadora do nada, o jogo político não respeitou as regras
mínimas do respeito pelo adversário.
Em São Paulo o desrespeito
foi desvairado, muito mais surpreendente porque veio sobretudo da coligação liderada pelo
PT. Onde está a renovação dos
costumes políticos que esse
partido prometeu, no ato de
sua fundação, naquela memorável reunião no colégio Sion
[em SP, em 1980], onde muitos
de nós lá estávamos para refundar a política brasileira?
Oposição responsável
Também a oposição não deixa de ter culpa no cartório.
A tarefa de se configurar como alternativa ao lulismo cabe
ao PSDB. É consenso que José
Serra foi o maior beneficiário
do último processo eleitoral,
mas é preciso que ele não permita a seus aliados levarem de
roldão seus adversários -circunstanciais ou não.
Do mesmo modo, já que Aécio Neves, apoiado por seu excelente governo de Minas Gerais, legitimamente aspira à
Presidência, que ele tenha a
cautela de refrear seus aliados,
impedindo-os de vir a público
fazer denúncias irresponsáveis.
Se ambas as partes se lançarem num jogo descomprometido com procedimentos democráticos, o desastre será enorme. Espero de nossas lideranças críticas que sejam capazes
de articular um movimento de
oposição combatendo essa
anomia dos costumes políticos
brasileiros, essa irresponsabilidade diante das normas que
ameaça o nosso futuro democrático. Antes de tudo é preciso
saber que país queremos.
Dadas, porém, a abrangência
da questão e a profundidade da
crise nacional e internacional,
espreita o perigo de uma solução totalizante e totalitária, liderada por gaviões que busquem o apoio popular sem os
meandros das instituições democráticas. Há lugar para novos conselheiros.
Desconfio de projetos e programas abrangentes, que encobrem as vicissitudes da implementação; mais ainda de alianças descaracterizadas.
Cabe organizar um governo
que se segure política e praticamente, capaz de formular problemas e implementar soluções, sempre tendo no horizonte, entretanto, o respeito às leis
constituídas e o compromisso
com a prestação pública de seus
atos.
Desse ponto de vista, é inteiramente falso o dilema de uma
aliança do centro com a esquerda ou com a direita. Votos dos
grotões teve o antigo PFL e agora tem o PT.
Se as forças políticas reais estão todas empoladas no centro,
este só pode ser movido democraticamente se contar com o
apoio de democratas.
É melhor evitar tanto o gavião direitista como o periquito
predador representante do comissariado central.
Tenho medo dos gaviões,
mas receio ainda mais o periquito predador -na política ou
na imprensa-, que come o milho e deixa o papagaio ficar com
a fama.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da USP e coordenador da área de filosofia do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais! .
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