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Bordado e filosofia
Da sociologia à arte, "A Cultura das Aparências" analisa a evolução
das roupas nos séculos 17 e 18
JOÃO BRAGA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Que maravilha! Que
intensidade! Que
maravilha de texto, que intensidade de conteúdo!
Historiografar à francesa é sem
dúvida obedecer a uma metodologia de pesquisa e um rigor
com a veracidade dos fatos que
todos os historiadores deveriam seguir como exemplo.
A Escola dos Annales deixou
um legado científico para a historiografia e uma maneira muito abrangente de pesquisar não
só a "grande história" mas especialmente as "pequenas histórias" por meio dos vieses que
outrora não eram observados
como fonte de informação.
A excelência do texto de Daniel Roche ["A Cultura das
Aparências"] já nos é antecipada pelas palavras do jornalista
e professor Tarcísio d'Almeida
na orelha do livro e na apresentação à edição brasileira, escrita pela professora Denise Bernuzzi de Sant'Anna.
Roche é um historiador francês, nascido em 1935, que trabalha especialmente com as
histórias cultural e social francesas do Antigo Regime.
É professor honorário no
Collège de France desde 1998 e
titular da cadeira de história da
França iluminista. Além de
professor universitário e pesquisador, é também diretor do
Instituto de História Moderna
Contemporânea e diretor, com
Pierre Milza, da "Revista de
História Moderna e Contemporânea".
Sua carreira é fascinante e
sua literatura é de primeira ordem, dando à França e, por extensão, ao mundo uma produção bibliográfica importantíssima no campo dos estudos
históricos da cultura e da sociedade por meio de diversos títulos. Trata-se, portanto, de um
dos historiadores mais respeitados da atualidade.
Luzes
O seu título "A Cultura das
Aparências - Uma História da
Indumentária (séculos 17-18)",
editado originalmente em francês em 1989 (Fayard) e já traduzido para o italiano em 1993
(Einaudi) e para o inglês em
1994 (Cambridge), é agora
acessível em português, magistralmente traduzido por Assef
Kfouri (que acrescenta excepcionais "notas do tradutor").
Chega em momento oportuno para a crescente academia
de moda no Brasil. Seu texto é
memorável e de extrema valia
para a compreensão da moda
num momento de grandes
transformações intelectuais e
culturais como o foi o século
das Luzes e, obviamente, sua
continuidade de percurso.
Entende-se como a França,
especialmente Paris, adquiriu o
posto de epicentro criador e difusor de moda para o mundo
por meio de estudos e conclusões como, por exemplo, nos é
dito na página 301: "O passado,
que molda silenciosamente o
futuro".
Roche, com uma citação de
Rousseau, à página 514, legitima que "o signo diz tudo antes
que se fale", e parece que nessa
frase está contida toda a essência de "A Cultura das Aparências", tão praticada, difundida e
assimilada pelas mentalidades
e comportamentos seiscentistas e setecentistas.
De Luís 14 a Luís 16, Roche
percorre as "Luzes" por meio
de uma riqueza de pesquisa em
fontes primárias, incluindo
gráficos e tabelas, fundamentais ao historiador ou ao interessado em história. As roupas
e a moda são minuciosamente
estudadas em quatro capítulos
maiores e inúmeras subdivisões específicas por meio de diversos olhares e vieses.
Discursa com propriedade
sobre a "revolução indumentária", contando-nos processos
historiográficos e leis suntuárias. Descreve-nos as roupas
brancas, trajes de corte, paramentos, andrajos, roupas campesinas e folclóricas, uniformes, trajes militares, tecidos e
tinturarias.
Elucida-nos os profissionais
de então, tais como alfaiates,
modistas, cabeleireiros, tintureiros, costureiras, bordadeiras, cerzideiras, comerciantes,
vendedores e revendedores.
Informa-nos de hábitos não
idôneos, como os roubos de
roupas, e também da importância econômica para os indivíduos e para a sociedade das
vestimentas, desde as meias
até os redingotes. Fala-nos do
comércio, da lavagem e manutenção das roupas, dos hábitos
dos penteados e das perucas,
além de enumerar e esclarecer
provérbios relativos às roupas
e à moda.
Intertextualidade
Não ficam esquecidos as utopias e os romances que descrevem os trajes, e, substancialmente, ele também analisa os aspectos e compreensões sobre
o luxo; estuda o corpo, as bonecas de moda e historiografa o
surgimento da imprensa de
moda.
Familiariza-nos tanto com a
nobreza quanto com os menos
favorecidos materialmente.
Como se não bastasse, Roche
intertextualiza seu trabalho
com diversos outros autores
franceses e estrangeiros ao longo de todo o livro, o que enriquece e complementa o conteúdo. Não só cita grandes nomes do passado, como Rouseau, Diderot e D'Alambert, entre outros filósofos e enciclopedistas, como também nomes atuais tão conhecidos no Brasil
como Norbert Elias, Gilles Lipovetsky e Yvonne Deslandres
e autores de inúmeras dissertações e teses.
Percorre a sociologia, a antropologia, a história cultural, a
economia, a religião, as artes
para nos esclarecer sobre as
roupas. Isso tudo ainda podendo nos favorecer a inúmeras associações com o atual mundo
da moda, por meio de esclarecimentos históricos que permitam a compreensão dos tempos
presentes.
Roche, com sua erudição histórica, nos dá "A Cultura das
Aparências", que se torna de indispensável leitura para eruditos, profissionais e iniciantes
ao universo da moda, além, obviamente, para os estudantes
da área.
Verdadeira obra de referência. Ler e reler, eis a sugestão.
JOÃO BRAGA é pesquisador e professor de história da indumentária e da moda na Faap (Fundação Armando Alvares Penteado), em SP.
A CULTURA DAS APARÊNCIAS
Autor: Daniel Roche
Tradução: Assef Kfouri
Editora: Senac-SP
Quanto: R$ 82 (528 págs.)
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