São Paulo, domingo, 16 de dezembro de 2007

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Bordado e filosofia

Da sociologia à arte, "A Cultura das Aparências" analisa a evolução das roupas nos séculos 17 e 18

JOÃO BRAGA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Que maravilha! Que intensidade! Que maravilha de texto, que intensidade de conteúdo! Historiografar à francesa é sem dúvida obedecer a uma metodologia de pesquisa e um rigor com a veracidade dos fatos que todos os historiadores deveriam seguir como exemplo.
A Escola dos Annales deixou um legado científico para a historiografia e uma maneira muito abrangente de pesquisar não só a "grande história" mas especialmente as "pequenas histórias" por meio dos vieses que outrora não eram observados como fonte de informação.
A excelência do texto de Daniel Roche ["A Cultura das Aparências"] já nos é antecipada pelas palavras do jornalista e professor Tarcísio d'Almeida na orelha do livro e na apresentação à edição brasileira, escrita pela professora Denise Bernuzzi de Sant'Anna.
Roche é um historiador francês, nascido em 1935, que trabalha especialmente com as histórias cultural e social francesas do Antigo Regime. É professor honorário no Collège de France desde 1998 e titular da cadeira de história da França iluminista. Além de professor universitário e pesquisador, é também diretor do Instituto de História Moderna Contemporânea e diretor, com Pierre Milza, da "Revista de História Moderna e Contemporânea".
Sua carreira é fascinante e sua literatura é de primeira ordem, dando à França e, por extensão, ao mundo uma produção bibliográfica importantíssima no campo dos estudos históricos da cultura e da sociedade por meio de diversos títulos. Trata-se, portanto, de um dos historiadores mais respeitados da atualidade.

Luzes
O seu título "A Cultura das Aparências - Uma História da Indumentária (séculos 17-18)", editado originalmente em francês em 1989 (Fayard) e já traduzido para o italiano em 1993 (Einaudi) e para o inglês em 1994 (Cambridge), é agora acessível em português, magistralmente traduzido por Assef Kfouri (que acrescenta excepcionais "notas do tradutor").
Chega em momento oportuno para a crescente academia de moda no Brasil. Seu texto é memorável e de extrema valia para a compreensão da moda num momento de grandes transformações intelectuais e culturais como o foi o século das Luzes e, obviamente, sua continuidade de percurso.
Entende-se como a França, especialmente Paris, adquiriu o posto de epicentro criador e difusor de moda para o mundo por meio de estudos e conclusões como, por exemplo, nos é dito na página 301: "O passado, que molda silenciosamente o futuro".
Roche, com uma citação de Rousseau, à página 514, legitima que "o signo diz tudo antes que se fale", e parece que nessa frase está contida toda a essência de "A Cultura das Aparências", tão praticada, difundida e assimilada pelas mentalidades e comportamentos seiscentistas e setecentistas.
De Luís 14 a Luís 16, Roche percorre as "Luzes" por meio de uma riqueza de pesquisa em fontes primárias, incluindo gráficos e tabelas, fundamentais ao historiador ou ao interessado em história. As roupas e a moda são minuciosamente estudadas em quatro capítulos maiores e inúmeras subdivisões específicas por meio de diversos olhares e vieses.
Discursa com propriedade sobre a "revolução indumentária", contando-nos processos historiográficos e leis suntuárias. Descreve-nos as roupas brancas, trajes de corte, paramentos, andrajos, roupas campesinas e folclóricas, uniformes, trajes militares, tecidos e tinturarias.
Elucida-nos os profissionais de então, tais como alfaiates, modistas, cabeleireiros, tintureiros, costureiras, bordadeiras, cerzideiras, comerciantes, vendedores e revendedores.
Informa-nos de hábitos não idôneos, como os roubos de roupas, e também da importância econômica para os indivíduos e para a sociedade das vestimentas, desde as meias até os redingotes. Fala-nos do comércio, da lavagem e manutenção das roupas, dos hábitos dos penteados e das perucas, além de enumerar e esclarecer provérbios relativos às roupas e à moda.

Intertextualidade
Não ficam esquecidos as utopias e os romances que descrevem os trajes, e, substancialmente, ele também analisa os aspectos e compreensões sobre o luxo; estuda o corpo, as bonecas de moda e historiografa o surgimento da imprensa de moda.
Familiariza-nos tanto com a nobreza quanto com os menos favorecidos materialmente. Como se não bastasse, Roche intertextualiza seu trabalho com diversos outros autores franceses e estrangeiros ao longo de todo o livro, o que enriquece e complementa o conteúdo. Não só cita grandes nomes do passado, como Rouseau, Diderot e D'Alambert, entre outros filósofos e enciclopedistas, como também nomes atuais tão conhecidos no Brasil como Norbert Elias, Gilles Lipovetsky e Yvonne Deslandres e autores de inúmeras dissertações e teses.
Percorre a sociologia, a antropologia, a história cultural, a economia, a religião, as artes para nos esclarecer sobre as roupas. Isso tudo ainda podendo nos favorecer a inúmeras associações com o atual mundo da moda, por meio de esclarecimentos históricos que permitam a compreensão dos tempos presentes.
Roche, com sua erudição histórica, nos dá "A Cultura das Aparências", que se torna de indispensável leitura para eruditos, profissionais e iniciantes ao universo da moda, além, obviamente, para os estudantes da área. Verdadeira obra de referência. Ler e reler, eis a sugestão.


JOÃO BRAGA é pesquisador e professor de história da indumentária e da moda na Faap (Fundação Armando Alvares Penteado), em SP.

A CULTURA DAS APARÊNCIAS
Autor:
Daniel Roche
Tradução: Assef Kfouri
Editora: Senac-SP
Quanto: R$ 82 (528 págs.)


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