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História sem fim
Fenômeno valorizado no século 19, mas que faz escola até hoje, obras inacabadas "desmascaram" escritores
PETER BURKE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Qual é o fascínio
exercido pelo fragmentário, o inacabado? Ele se estende pelas artes,
incluindo a "Sinfonia Inacabada" de Schubert e o "non finito"
da Renascença italiana -especialmente, talvez, os escravos
de Michelangelo, encomendados originalmente para o túmulo do papa Júlio 2º-, além
de estantes e mais estantes de
livros não terminados: obras de
poesia e prosa, ficção e erudição, que normalmente ficaram
inacabadas devido à morte de
seus autores.
Entre as mais famosas obras
de poesia inacabadas estão a
tragédia de Friedrich Hölderlin "A Morte de Empédocles" e
"Hipérion" [ed. Nova Alexandria], o épico iniciado por John
Keats -se bem que, a rigor, devamos também incluir a "Eneida" [Martins Fontes], já que
Virgílio ainda estava burilando
o texto quando morreu, e, de
fato, pediu para que o manuscrito fosse destruído precisamente porque não terminara
de trabalhar sobre ele.
Entre os romances, um inglês pensaria de imediato em
"Sanditon", o livro em que Jane Austen estava trabalhando
quando morreu (com apenas
42 anos) em 1817. Já um espanhol lembrará que a primeira
parte de "Dom Quixote" foi vista como inacabada -ou, pelo
menos, passível de ser continuada, quando primeiro publicada. Foi a tentativa de Avellaneda de levar a história adiante
que persuadiu Cervantes a escrever a segunda parte.
Continuações
Continuações desse tipo, feitas por alguém que não o autor
original, não eram incomuns
nos séculos 16 e 17.
Vêm à mente a segunda parte
de "Lazarillo de Tormes", a segunda parte original de "Guzmán de Alfarache" ou a segunda e terceira partes de "Diana",
de Montemayor, ou o humanista italiano Maffeo Vegio, que
ousou continuar a "Eneida" de
Virgílio, acrescentando um terceiro livro ao poema.
Entre as obras de erudição
inacabadas, um exemplo famoso é o "Capital", de Marx -o
manuscrito é interrompido
justamente quando o autor discutia as classes sociais, deixando a seus intérpretes a tarefa de
adivinhar o que teria escrito.
Um exemplo mais recente
vem de Cambridge, onde o
cientista e sinólogo Joseph
Needham começou a publicar
os vários volumes de seu
"Science and Civilization in
China" [Ciência e Civilização
na China] em 1954, quando já
tinha 54 anos.
Na década de 80, num jantar
no Caius College [na Universidade de Cambridge], me recordo de ouvir um visitante norte-americano um tanto quanto
destituído de tato indagar a
Needham quando previa concluir seu livro.
"Não há pressa", respondeu o
autor, com calma. Embora tenha vivido até os 95 anos, trabalhando até o final, Needham
morreu antes de conseguir
concluir o livro -mas legou o
projeto a seus colegas e discípulos, de modo que é possível que
a grande obra seja completada
algum dia.
No caso de "Ciência e Civilização", é difícil não lamentar o
estado fragmentário da obra,
como faríamos se Gibbon, por
exemplo, tivesse morrido antes
de terminar seu "Declínio e
Queda do Império Romano"
[Cia. das Letras], ou Proust, antes de concluir "Em Busca do
Tempo Perdido" [Globo].
Mesmo assim, obras inacabadas de escritores famosos
-como os escravos de Michelangelo, no caso da escultura-
exercem sobre muitos leitores
um fascínio especial. Por que
isso acontece? Uma explicação
possível enfatiza o papel do leitor, enquanto a outra privilegia
o escritor.
Em primeiro lugar, as obras
inacabadas deixam mais por
conta da imaginação do leitor,
que pode, por exemplo, especular sobre finais alternativos.
É fato largamente sabido na
publicidade que uma série inacabada de palavras ou imagens
captura a atenção do público,
porque muitos de nós sentimos
uma compulsão em completar
a série, como se fosse um quebra-cabeças com uma ou duas
das peças faltando.
Outra explicação do fascínio
exercido pelo "non finito" privilegia o criador ou, mais exatamente, a imagem que o leitor
ou o espectador faz do criador.
Tendemos a pensar que uma
obra inacabada ou não burilada
revela mais sobre o processo
criativo do que faz a obra acabada -que nos diz mais sobre a
personalidade real do escritor,
que não teve tempo de desaparecer por trás da obra.
Mas os leitores nem sempre
pensaram assim.
Interesse crescente
Antes da ascensão do movimento romântico, havia menos
interesse por obras de arte ou
literatura inacabadas. Após o
ano de 1800, mais ou menos, os
europeus começaram a ler a literatura de maneira diferente,
enxergando-a não como expressão da sabedoria coletiva,
mas da personalidade individual do autor.
Veio daí o aumento do interesse, naquela época, pela publicação e leitura de diários e
cartas particulares, redigidos
sem nenhuma idéia de que algum dia pudessem sair impressos, e em estilo menos formal
que os romances, por exemplo,
ou poemas do mesmo autor.
Cada vez mais, a formalidade
passou a ser vista como modo
de insinceridade, como uma espécie de teatro, e as obras inacabadas passaram a ser altamente valorizadas precisamente por proporcionar ao leitor
um vislumbre da vida nos bastidores ou do pensamento em
movimento.
O movimento romântico terminou há muito tempo, e a
"morte do autor" já foi proclamada mais de uma vez.
Ao mesmo tempo, o romantismo parece ter deixado uma
marca indelével sobre a maneira como muitos de nós lemos,
mesmo hoje.
De qualquer maneira, novos
desenvolvimentos na mídia, especialmente a ascensão das telenovelas, incentivam a idéia de
que na arte, assim como na vida, as histórias nunca terminam de fato.
Tome-se o caso do seriado de
televisão norte-americano "Família Soprano", exibido em seis
partes e 86 episódios entre
1999 e 2007. Ele aparentemente chegou ao fim, mas pode ser
retomado a qualquer momento. Afinal, outras séries já duraram muito mais tempo.
Muitas pessoas no Reino
Unido ainda ouvem o drama radiofônico "The Archers", ambientado no vilarejo rural fictício de "Ambridge". Vem sendo
transmitido regulamente desde 1951 e já teve mais de 15 mil
episódios. Personagens individuais morrem, tanto no ar
quanto na vida real, e os atores
vão e vêm, mas o seriado continua, porque está associado à
continuidade de uma família e
uma cidadezinha.
Parece haver uma demanda
crescente por formas de arte
que evitam conclusões e que
imitam o caráter confuso e indefinido da vida.
PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O
Que É História Cultural?" (ed. Zahar). Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! .
Tradução de Clara Allain.
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