São Paulo, domingo, 17 de fevereiro de 2008

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História sem fim

Fenômeno valorizado no século 19, mas que faz escola até hoje, obras inacabadas "desmascaram" escritores

PETER BURKE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Qual é o fascínio exercido pelo fragmentário, o inacabado? Ele se estende pelas artes, incluindo a "Sinfonia Inacabada" de Schubert e o "non finito" da Renascença italiana -especialmente, talvez, os escravos de Michelangelo, encomendados originalmente para o túmulo do papa Júlio 2º-, além de estantes e mais estantes de livros não terminados: obras de poesia e prosa, ficção e erudição, que normalmente ficaram inacabadas devido à morte de seus autores.
Entre as mais famosas obras de poesia inacabadas estão a tragédia de Friedrich Hölderlin "A Morte de Empédocles" e "Hipérion" [ed. Nova Alexandria], o épico iniciado por John Keats -se bem que, a rigor, devamos também incluir a "Eneida" [Martins Fontes], já que Virgílio ainda estava burilando o texto quando morreu, e, de fato, pediu para que o manuscrito fosse destruído precisamente porque não terminara de trabalhar sobre ele.
Entre os romances, um inglês pensaria de imediato em "Sanditon", o livro em que Jane Austen estava trabalhando quando morreu (com apenas 42 anos) em 1817. Já um espanhol lembrará que a primeira parte de "Dom Quixote" foi vista como inacabada -ou, pelo menos, passível de ser continuada, quando primeiro publicada. Foi a tentativa de Avellaneda de levar a história adiante que persuadiu Cervantes a escrever a segunda parte.

Continuações
Continuações desse tipo, feitas por alguém que não o autor original, não eram incomuns nos séculos 16 e 17. Vêm à mente a segunda parte de "Lazarillo de Tormes", a segunda parte original de "Guzmán de Alfarache" ou a segunda e terceira partes de "Diana", de Montemayor, ou o humanista italiano Maffeo Vegio, que ousou continuar a "Eneida" de Virgílio, acrescentando um terceiro livro ao poema.
Entre as obras de erudição inacabadas, um exemplo famoso é o "Capital", de Marx -o manuscrito é interrompido justamente quando o autor discutia as classes sociais, deixando a seus intérpretes a tarefa de adivinhar o que teria escrito. Um exemplo mais recente vem de Cambridge, onde o cientista e sinólogo Joseph Needham começou a publicar os vários volumes de seu "Science and Civilization in China" [Ciência e Civilização na China] em 1954, quando já tinha 54 anos.
Na década de 80, num jantar no Caius College [na Universidade de Cambridge], me recordo de ouvir um visitante norte-americano um tanto quanto destituído de tato indagar a Needham quando previa concluir seu livro. "Não há pressa", respondeu o autor, com calma. Embora tenha vivido até os 95 anos, trabalhando até o final, Needham morreu antes de conseguir concluir o livro -mas legou o projeto a seus colegas e discípulos, de modo que é possível que a grande obra seja completada algum dia.
No caso de "Ciência e Civilização", é difícil não lamentar o estado fragmentário da obra, como faríamos se Gibbon, por exemplo, tivesse morrido antes de terminar seu "Declínio e Queda do Império Romano" [Cia. das Letras], ou Proust, antes de concluir "Em Busca do Tempo Perdido" [Globo].
Mesmo assim, obras inacabadas de escritores famosos -como os escravos de Michelangelo, no caso da escultura- exercem sobre muitos leitores um fascínio especial. Por que isso acontece? Uma explicação possível enfatiza o papel do leitor, enquanto a outra privilegia o escritor.
Em primeiro lugar, as obras inacabadas deixam mais por conta da imaginação do leitor, que pode, por exemplo, especular sobre finais alternativos. É fato largamente sabido na publicidade que uma série inacabada de palavras ou imagens captura a atenção do público, porque muitos de nós sentimos uma compulsão em completar a série, como se fosse um quebra-cabeças com uma ou duas das peças faltando.
Outra explicação do fascínio exercido pelo "non finito" privilegia o criador ou, mais exatamente, a imagem que o leitor ou o espectador faz do criador. Tendemos a pensar que uma obra inacabada ou não burilada revela mais sobre o processo criativo do que faz a obra acabada -que nos diz mais sobre a personalidade real do escritor, que não teve tempo de desaparecer por trás da obra. Mas os leitores nem sempre pensaram assim.

Interesse crescente
Antes da ascensão do movimento romântico, havia menos interesse por obras de arte ou literatura inacabadas. Após o ano de 1800, mais ou menos, os europeus começaram a ler a literatura de maneira diferente, enxergando-a não como expressão da sabedoria coletiva, mas da personalidade individual do autor.
Veio daí o aumento do interesse, naquela época, pela publicação e leitura de diários e cartas particulares, redigidos sem nenhuma idéia de que algum dia pudessem sair impressos, e em estilo menos formal que os romances, por exemplo, ou poemas do mesmo autor. Cada vez mais, a formalidade passou a ser vista como modo de insinceridade, como uma espécie de teatro, e as obras inacabadas passaram a ser altamente valorizadas precisamente por proporcionar ao leitor um vislumbre da vida nos bastidores ou do pensamento em movimento.
O movimento romântico terminou há muito tempo, e a "morte do autor" já foi proclamada mais de uma vez. Ao mesmo tempo, o romantismo parece ter deixado uma marca indelével sobre a maneira como muitos de nós lemos, mesmo hoje. De qualquer maneira, novos desenvolvimentos na mídia, especialmente a ascensão das telenovelas, incentivam a idéia de que na arte, assim como na vida, as histórias nunca terminam de fato. Tome-se o caso do seriado de televisão norte-americano "Família Soprano", exibido em seis partes e 86 episódios entre 1999 e 2007. Ele aparentemente chegou ao fim, mas pode ser retomado a qualquer momento. Afinal, outras séries já duraram muito mais tempo.
Muitas pessoas no Reino Unido ainda ouvem o drama radiofônico "The Archers", ambientado no vilarejo rural fictício de "Ambridge". Vem sendo transmitido regulamente desde 1951 e já teve mais de 15 mil episódios. Personagens individuais morrem, tanto no ar quanto na vida real, e os atores vão e vêm, mas o seriado continua, porque está associado à continuidade de uma família e uma cidadezinha.
Parece haver uma demanda crescente por formas de arte que evitam conclusões e que imitam o caráter confuso e indefinido da vida.


PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (ed. Zahar). Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! .

Tradução de Clara Allain.


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