São Paulo, domingo, 17 de fevereiro de 2008

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Babel atrás das grades

GRANDE AUMENTO DO NÚMERO DE INTERNOS EM LA MORALEJA, AO NORTE DE MADRI, ACOMPANHOU BOOM DE IMIGRANTES NA ESPANHA

MARCELO NINIO
ENVIADO ESPECIAL A DUEÑAS (ESPANHA)

La Moraleja fica numa planície isolada da Província de Palência, 200 km ao norte de Madri. Passando alguns minutos da pequena e simpática cidade de Dueñas, de pouco mais de 3.000 habitantes, já se avista a fortaleza cercada de alarmes e câmeras de vigilância.
Em meio à bruma espessa, surge uma intimidadora torre de observação, que simboliza um histórico de respeito: em dez anos de existência, a penitenciária que guarda a maior população de estrangeiros da Espanha jamais teve uma fuga ou rebelião.
Com 1.656 habitantes, sendo 1.230 deles estrangeiros de mais de 70 nacionalidades diferentes, La Moraleja é uma Babel de sonhos partidos. É também reflexo amargo das condições de vida mais precárias no Terceiro Mundo, na medida em que o crescimento no número de internos do estabelecimento acompanhou o aumentos do número de imigrantes na Espanha.
Por trás dos muros altos e do arame farpado, La Moraleja tem requintes de um clube.
Da entrada, onde uma vitrine mostra artesanato produzido no local, até os amplos pátios que separaram os módulos do presídio, nos quais os detentos circulam descontraidamente entre uma partida de futebol e um ensaio de teatro, o presídio está a anos-luz das desumanas condições carcerárias brasileiras.
Para uma grande parcela dos detentos, inclusive os 40 brasileiros que cumprem pena aqui, La Moraleja -"moral da história", em espanhol- é o fim da linha no perigoso atalho que decidiram tomar quando escolheram o papel de "mulas", como são chamados os transportadores internacionais de drogas. Peixes pequenos na cadeia alimentar do narcotráfico, amargam um exílio forçado num país que só conhecem por trás das grades.

300 ao mês
"Da Espanha só sei o que vi no aeroporto, na prisão e o que assisto na televisão", diz Giovani de Souza Careta, 27, paulista de Franca. Brinco na orelha esquerda, boné com a bandeira do Brasil virado para trás, prendendo os longos cabelos escorridos, Giovani serra um pedaço de madeira na oficina de marcenaria do presídio.
As ripas que vão sendo empilhadas se transformarão em caixas de vinhos de uma produtora da região. Pelo serviço, ganha 300 por mês [R$ 767].
Quando foi preso, em maio de 2004, a única experiência no exterior de Giovani havia sido os dez dias que passou em Lima, no Peru, enquanto esperava a carga de cocaína que levaria para a Espanha no estômago. "Disseram que a carga chegaria em dois dias. Depois de uma semana eu já estava perdendo a paciência com a demora e quase desisti", conta o ex-motoboy, que jamais recebeu os 5.000 prometidos pelo nigeriano que o convocou para a fracassada missão.
O fato de ter uma população predominantemente estrangeira confere a essa cadeia algumas características que a destacam no sistema carcerário espanhol, diz o diretor do presídio, Jesús Hernando de la Rosa. O ar jovial e descontraído, de quem aparenta bem menos que seus 47 anos, contrasta com a função que exerce.
"Em primeiro lugar, são quase todos réus primários, e isso facilita a convivência", diz De la Rosa, explicando que a grande maioria cumpre pena por "crimes contra a saúde pública", ou seja, tráfico de drogas. "Por outro lado, quase nenhum recebe visitas, o que gera tensão. Para evitar problemas, tentamos mantê-los sempre ocupados."
Não falta o que fazer. La Moraleja oferece a seus presos mais atividades que muitos centros culturais e clubes do Brasil.
Além de um bem equipado centro esportivo, com piscina e quadras de squash, tem cinema, teatro, biblioteca, sala de ensaios para a banda do presídio (na qual o diretor canta e toca guitarra), oficinas de trabalho e até uma espécie de motel, onde os presos recebem visitas íntimas.

Boom da construção civil
Diretor de La Moraleja desde a sua abertura, há dez anos, De la Rosa viu o número de estrangeiros condenados crescer na mesma proporção em que aumentava a imigração.
No mapa da demografia estrangeira européia, a Espanha ocupa um lugar de destaque. Na última década, o país, de população tradicionalmente homogênea, deixou de exportar para importar mão-de-obra, transformando-se numa espécie de laboratório de imigração.
Embalada pelo boom da construção civil que agora ameaça perder o fôlego, a economia espanhola precisava de braços, e os músculos foram, em sua maioria, estrangeiros.
"É claro que a imigração teve um papel importante nesse ciclo de crescimento, mas o balanço entre danos e benefícios para o Estado ainda é algo difícil de fazer", diz o sociólogo Juán Diez Nicolás, da Universidade Complutense de Madri. "Os imigrantes fornecem mão-de-obra barata para alguns setores da economia, mas os gastos sociais são repartidos entre toda a sociedade espanhola por meio dos impostos."
A prosperidade pode ser traduzida em números. Entre os membros da União Européia, a Espanha foi o país com o melhor desempenho econômico, com média de crescimento de 3,1% nos últimos cinco anos. Desde 2002, o país criou metade dos novos empregos na zona do euro. O desemprego caiu de mais de 20% nos anos 90 para 8,6%, ainda alto, mas bem próximo da média da UE, de 7,2%.
O avanço econômico teve poder de ímã para milhões de estrangeiros das áreas mais pobres do planeta, principalmente o norte da África e a América Latina. A maioria foi para a construção civil, no caso dos homens, e para os serviços domésticos, no das mulheres. Alguns buscaram um caminho mais curto e arriscado.
O argentino Carlos Alberto Gonzalez, que há três anos chegou a Madri com cocaína escondida nos sapatos, é um exemplo. "Tinha um restaurante em Buenos Aires que foi à falência na crise. Não consegui me recuperar", diz Gonzalez, 57, enquanto mexe um panelão de potaje, cozido típico espanhol feito de grão-de-bico, na cozinha de La Moraleja.
Nos últimos anos, a Espanha absorveu mais de 3 milhões de estrangeiros, de origens tão diferentes como Brasil, Romênia e Marrocos.
Hoje, mais de 11% da população de 44 milhões de residentes no país nasceram no exterior, uma das mais altas proporções da Europa. Com milhares chegando todos os meses, a Espanha pode alcançar em breve o índice americano, de 12,9%.
Segundo as autoridades espanholas, há cerca de 100 mil brasileiros no país, 70 mil deles em situação ilegal. Com o aumento das dificuldades de entrar nos Estados Unidos após o 11 de Setembro, agravadas com a exigência de visto de entrada também para o México, a Espanha virou um pólo de atração ainda maior que antes.

Temor de recessão
Os sinais dessa mudança na rota migratória dos brasileiros não estão apenas nos números.
"Aumentou muito o atendimento no consulado a pessoas de Governador Valadares", diz o cônsul-adjunto Pedro Frederico Garcia, lembrando a cidade mineira conhecida pela exportação de mão-de-obra em massa para os EUA.
Embora tenha uma das políticas migratórias mais tolerantes do continente, o que incluiu anistia a mais de 1 milhão de ilegais desde 2000, a Espanha teve que aumentar o controle em suas fronteiras, sob pressão de seus parceiros da UE.
O resultado foi um salto no número de brasileiros e outros estrangeiros barrados.
Em agosto de 2006, quando começou a operar, o Consulado Geral do Brasil em Madri contabilizou 17 brasileiros rechaçados no aeroporto de Barajas. Em janeiro deste ano, o número chegou a 340.
Com o temor de recessão batendo à porta e sinais de que a bolha da construção civil está prestes a estourar, o clima na Espanha tende a ficar menos favorável para os estrangeiros.
O setor de construção, responsável por 18% da economia e principal empregador de mão-de-obra estrangeira, está claramente desacelerando, depois de uma década de atividade frenética.
Um declínio acentuado poderia desencadear conflitos sociais, que até agora foram mínimos. De fato, a Espanha é um dos países europeus com o maior índice de aceitação de estrangeiros.
Pesquisa realizada em novembro pela TV France 24 indicou que 55% dos espanhóis consideram os imigrantes benéficos para sua economia. Na Itália o índice foi de 50%, no Reino Unido e na Alemanha, de 42%, e na França, 30%. A hostilidade contra estrangeiros parece estar historicamente vinculada a preocupações econômicas. Se há recessão, aumenta o temor de que os forasteiros tomem empregos e sobrecarreguem o sistema de saúde.
O movimento oposto ocorre quando a situação melhora. "As ondas de imigração na Europa estão muito ligadas ao crescimento econômico", diz o cônsul-geral do Brasil em Madri, Gelson Fonseca Jr. "Foi o que levou portugueses e espanhóis à França e turcos à Alemanha, há algumas décadas."
As afinidades culturais com o país representam uma grande vantagem para os latino-americanos que chegam à Espanha, legais ou ilegais.
"Os brasileiros se queixam de discriminação, mas sem dúvida o problema é mais grave em relação aos africanos", diz o geógrafo Duval Fernandes, da Pontifícia Universidade Católica (MG), que prepara detalhado levantamento sobre os imigrantes brasileiros na Espanha [leia entrevista na pág. 6].

Espírito de gueto
Na prisão de La Moraleja, os cidadãos se organizam em grupos étnicos, reproduzindo o espírito de gueto que costuma caracterizar as comunidades estrangeiras do lado de fora dos muros. Marrocos tem o grupo mais numeroso, com 243 detentos, seguido de Colômbia (112) e Argélia (102).
Com a camisa ensopada de suor pouco após perder uma partida de futsal no amplo complexo esportivo do presídio, o argelino Randan Chenwag, 30, conta que cansou de sofrer discriminação quando procurava emprego em empreiteiras de Zaragoza, sudeste do país. "Pulei de obra em obra, mas sempre era tratado mal por ser árabe", diz Chenwag.
Na cadeia, prefere ficar com seus compatriotas. "Não sou religioso, mas temos a mesma cultura, a mesma mentalidade, e posso fazer minhas orações com eles", diz o sorridente e barrigudo argelino, que se torna escorregadio quando questionado por que está atrás das grades. "Um roubo aqui, outro ali. Deixa isso pra lá."
O choque cultural é recíproco. Salvador, um espanhol de meia-idade que trabalha como educador no presídio, reconhece que não é incomum as diferenças religiosas criarem problemas de convivência. "Os internos muçulmanos têm uma cultura muito diferente da nossa, e isso às vezes dificulta a compreensão", diz ele .
Na Espanha, ainda que em menor intensidade do que em outros países da Europa, o possível vínculo entre a imigração e o aumento da criminalidade é tema de polêmica. Para a esquerda, trata-se de um mero pretexto para a discriminação, uma vez que as estatísticas que mostram um índice mais elevado de delinqüência entre os estrangeiros são enganosas.
"É muito difícil provar essa relação, pois a comparação deve ser entre grupos homogêneos. Entre os estrangeiros há proporcionalmente mais jovens que entre os espanhóis, por isso é natural que haja mais delinquência", diz o sociólogo Nicolás.
Com a proximidade das eleições gerais no país, no próximo dia 9, o debate ganha os palanques. Há poucos dias, o direitista Mariano Rajoy, líder da oposição direitista, quebrou uma regra não escrita ao criticar a tolerância do governo com os estrangeiros.
"A imigração é um problema real", afirmou Rajoy, sob aplausos efusivos da platéia na cidade de Alcalá de Henares, cuja população é 20% estrangeira.
Com a experiência de quem trabalha há 25 anos em presídios, o diretor de La Moraleja tem a opinião oposta à da direita. Para ele, quanto mais repressão aos imigrantes, mais criminalidade.
"Sei que os que vêm para a Espanha são forçados a emigrar pelas difíceis condições de vida em seus países", diz De la Rosa. "A ilegalidade estimula a criminalidade. A maioria comete atos ilícitos não porque são criminosos por natureza, mas porque ficam sem opção."
Alguns tiveram escolha e não se arrependem. Iramaia Andréa Siqueira, 29, é uma das três mulheres brasileiras presas em La Moraleja.
Em agosto espera ser expulsa da Espanha, após ter cumprido 3/4 da pena de cinco anos por ter tentado entrar na Espanha com cem cápsulas de cocaína no estômago. "E se tivesse dado certo?", indaga, com os olhos verdes brilhando. "Teria comprado uma casa para a minha mãe. Não, não me arrependo."
Hoje Iramaia está grávida de seis meses do guatemalteco Abiel Isaac, 27, que conheceu na oficina de costura do presídio. A paulista de Catanduva sonha com um futuro melhor para seu bebê. Se for menino, como ela espera, se chamará Iago. "Tenho outros dois filhos em Catanduva, de 5 e 12 anos", diz. "Quando sair daqui, vou juntar as duas famílias e começar tudo de novo."


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