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Babel atrás das grades
GRANDE AUMENTO DO NÚMERO DE INTERNOS EM LA MORALEJA, AO NORTE DE MADRI, ACOMPANHOU BOOM DE IMIGRANTES NA ESPANHA
MARCELO NINIO
ENVIADO ESPECIAL A DUEÑAS (ESPANHA)
La Moraleja fica numa
planície isolada da Província de Palência, 200
km ao norte de Madri.
Passando alguns minutos da pequena e simpática cidade de Dueñas, de pouco mais
de 3.000 habitantes, já se avista a fortaleza cercada de alarmes e câmeras de vigilância.
Em meio à bruma espessa,
surge uma intimidadora torre
de observação, que simboliza
um histórico de respeito: em
dez anos de existência, a penitenciária que guarda a maior
população de estrangeiros da
Espanha jamais teve uma fuga
ou rebelião.
Com 1.656 habitantes, sendo
1.230 deles estrangeiros de
mais de 70 nacionalidades diferentes, La Moraleja é uma Babel de sonhos partidos. É também reflexo amargo das condições de vida mais precárias no
Terceiro Mundo, na medida
em que o crescimento no número de internos do estabelecimento acompanhou o aumentos do número de imigrantes na Espanha.
Por trás dos muros altos e do
arame farpado, La Moraleja
tem requintes de um clube.
Da entrada, onde uma vitrine mostra artesanato produzido no local, até os amplos pátios que separaram os módulos
do presídio, nos quais os detentos circulam descontraidamente entre uma partida de futebol e um ensaio de teatro, o
presídio está a anos-luz das desumanas condições carcerárias
brasileiras.
Para uma grande parcela dos
detentos, inclusive os 40 brasileiros que cumprem pena aqui,
La Moraleja -"moral da história", em espanhol- é o fim da
linha no perigoso atalho que
decidiram tomar quando escolheram o papel de "mulas", como são chamados os transportadores internacionais de drogas. Peixes pequenos na cadeia
alimentar do narcotráfico,
amargam um exílio forçado
num país que só conhecem por
trás das grades.
300 ao mês
"Da Espanha só sei o que vi
no aeroporto, na prisão e o que
assisto na televisão", diz Giovani de Souza Careta, 27, paulista
de Franca. Brinco na orelha esquerda, boné com a bandeira
do Brasil virado para trás, prendendo os longos cabelos escorridos, Giovani serra um pedaço
de madeira na oficina de marcenaria do presídio.
As ripas que vão sendo empilhadas se transformarão em
caixas de vinhos de uma produtora da região. Pelo serviço, ganha 300 por mês [R$ 767].
Quando foi preso, em maio
de 2004, a única experiência
no exterior de Giovani havia sido os dez dias que passou em
Lima, no Peru, enquanto esperava a carga de cocaína que levaria para a Espanha no estômago. "Disseram que a carga
chegaria em dois dias. Depois
de uma semana eu já estava
perdendo a paciência com a demora e quase desisti", conta o
ex-motoboy, que jamais recebeu os 5.000 prometidos pelo nigeriano que o convocou
para a fracassada missão.
O fato de ter uma população
predominantemente estrangeira confere a essa cadeia algumas características que a
destacam no sistema carcerário espanhol, diz o diretor do
presídio, Jesús Hernando de la
Rosa. O ar jovial e descontraído, de quem aparenta bem menos que seus 47 anos, contrasta
com a função que exerce.
"Em primeiro lugar, são quase todos réus primários, e isso
facilita a convivência", diz De la
Rosa, explicando que a grande
maioria cumpre pena por "crimes contra a saúde pública", ou
seja, tráfico de drogas. "Por outro lado, quase nenhum recebe
visitas, o que gera tensão. Para
evitar problemas, tentamos
mantê-los sempre ocupados."
Não falta o que fazer. La Moraleja oferece a seus presos
mais atividades que muitos
centros culturais e clubes do
Brasil.
Além de um bem equipado
centro esportivo, com piscina e
quadras de squash, tem cinema, teatro, biblioteca, sala de
ensaios para a banda do presídio (na qual o diretor canta e
toca guitarra), oficinas de trabalho e até uma espécie de motel, onde os presos recebem visitas íntimas.
Boom da construção civil
Diretor de La Moraleja desde
a sua abertura, há dez anos, De
la Rosa viu o número de estrangeiros condenados crescer na
mesma proporção em que aumentava a imigração.
No mapa da demografia estrangeira européia, a Espanha
ocupa um lugar de destaque. Na
última década, o país, de população tradicionalmente homogênea, deixou de exportar para
importar mão-de-obra, transformando-se numa espécie de
laboratório de imigração.
Embalada pelo boom da
construção civil que agora
ameaça perder o fôlego, a economia espanhola precisava de
braços, e os músculos foram,
em sua maioria, estrangeiros.
"É claro que a imigração teve
um papel importante nesse ciclo de crescimento, mas o balanço entre danos e benefícios
para o Estado ainda é algo difícil de fazer", diz o sociólogo
Juán Diez Nicolás, da Universidade Complutense de Madri.
"Os imigrantes fornecem mão-de-obra barata para alguns setores da economia, mas os gastos sociais são repartidos entre
toda a sociedade espanhola por meio dos impostos."
A prosperidade pode ser traduzida em números. Entre os
membros da União Européia, a
Espanha foi o país com o melhor desempenho econômico,
com média de crescimento de
3,1% nos últimos cinco anos.
Desde 2002, o país criou metade dos novos empregos na zona
do euro. O desemprego caiu de
mais de 20% nos anos 90 para
8,6%, ainda alto, mas bem próximo da média da UE, de 7,2%.
O avanço econômico teve poder de ímã para milhões de estrangeiros das áreas mais pobres do planeta, principalmente o norte da África e a América
Latina. A maioria foi para a
construção civil, no caso dos
homens, e para os serviços domésticos, no das mulheres. Alguns buscaram um caminho
mais curto e arriscado.
O argentino Carlos Alberto
Gonzalez, que há três anos chegou a Madri com cocaína escondida nos sapatos, é um
exemplo. "Tinha um restaurante em Buenos Aires que foi à
falência na crise. Não consegui
me recuperar", diz Gonzalez,
57, enquanto mexe um panelão
de potaje, cozido típico espanhol feito de grão-de-bico, na
cozinha de La Moraleja.
Nos últimos anos, a Espanha
absorveu mais de 3 milhões de
estrangeiros, de origens tão diferentes como Brasil, Romênia
e Marrocos.
Hoje, mais de 11% da população de 44 milhões de residentes
no país nasceram no exterior,
uma das mais altas proporções
da Europa. Com milhares chegando todos os meses, a Espanha pode alcançar em breve o
índice americano, de 12,9%.
Segundo as autoridades espanholas, há cerca de 100 mil
brasileiros no país, 70 mil deles
em situação ilegal. Com o aumento das dificuldades de entrar nos Estados Unidos após o
11 de Setembro, agravadas com
a exigência de visto de entrada
também para o México, a Espanha virou um pólo de atração
ainda maior que antes.
Temor de recessão
Os sinais dessa mudança na
rota migratória dos brasileiros
não estão apenas nos números.
"Aumentou muito o atendimento no consulado a pessoas
de Governador Valadares", diz
o cônsul-adjunto Pedro Frederico Garcia, lembrando a cidade mineira conhecida pela exportação de mão-de-obra em
massa para os EUA.
Embora tenha uma das políticas migratórias mais tolerantes do continente, o que incluiu
anistia a mais de 1 milhão de
ilegais desde 2000, a Espanha
teve que aumentar o controle
em suas fronteiras, sob pressão
de seus parceiros da UE.
O resultado foi um salto no
número de brasileiros e outros
estrangeiros barrados.
Em agosto de 2006, quando
começou a operar, o Consulado
Geral do Brasil em Madri contabilizou 17 brasileiros rechaçados no aeroporto de Barajas.
Em janeiro deste ano, o número chegou a 340.
Com o temor de recessão batendo à porta e sinais de que a
bolha da construção civil está
prestes a estourar, o clima na
Espanha tende a ficar menos
favorável para os estrangeiros.
O setor de construção, responsável por 18% da economia
e principal empregador de
mão-de-obra estrangeira, está
claramente desacelerando, depois de uma década de atividade frenética.
Um declínio acentuado poderia desencadear conflitos sociais, que até agora foram mínimos. De fato, a Espanha é um
dos países europeus com o
maior índice de aceitação de estrangeiros.
Pesquisa realizada em novembro pela TV France 24 indicou que 55% dos espanhóis
consideram os imigrantes benéficos para sua economia. Na
Itália o índice foi de 50%, no
Reino Unido e na Alemanha, de
42%, e na França, 30%. A hostilidade contra estrangeiros parece estar historicamente vinculada a preocupações econômicas. Se há recessão, aumenta
o temor de que os forasteiros
tomem empregos e sobrecarreguem o sistema de saúde.
O movimento oposto ocorre
quando a situação melhora. "As
ondas de imigração na Europa
estão muito ligadas ao crescimento econômico", diz o cônsul-geral do Brasil em Madri,
Gelson Fonseca Jr. "Foi o que
levou portugueses e espanhóis
à França e turcos à Alemanha,
há algumas décadas."
As afinidades culturais com o
país representam uma grande
vantagem para os latino-americanos que chegam à Espanha,
legais ou ilegais.
"Os brasileiros se queixam de
discriminação, mas sem dúvida
o problema é mais grave em relação aos africanos", diz o geógrafo Duval Fernandes, da
Pontifícia Universidade Católica (MG), que prepara detalhado levantamento sobre os imigrantes brasileiros na Espanha
[leia entrevista na pág. 6].
Espírito de gueto
Na prisão de La Moraleja, os
cidadãos se organizam em grupos étnicos, reproduzindo o espírito de gueto que costuma caracterizar as comunidades estrangeiras do lado de fora dos
muros. Marrocos tem o grupo
mais numeroso, com 243 detentos, seguido de Colômbia
(112) e Argélia (102).
Com a camisa ensopada de
suor pouco após perder uma
partida de futsal no amplo
complexo esportivo do presídio, o argelino Randan Chenwag, 30, conta que cansou de
sofrer discriminação quando
procurava emprego em empreiteiras de Zaragoza, sudeste
do país. "Pulei de obra em obra,
mas sempre era tratado mal
por ser árabe", diz Chenwag.
Na cadeia, prefere ficar com
seus compatriotas. "Não sou
religioso, mas temos a mesma
cultura, a mesma mentalidade,
e posso fazer minhas orações
com eles", diz o sorridente e
barrigudo argelino, que se torna escorregadio quando questionado por que está atrás das
grades. "Um roubo aqui, outro
ali. Deixa isso pra lá."
O choque cultural é recíproco. Salvador, um espanhol de
meia-idade que trabalha como
educador no presídio, reconhece que não é incomum as diferenças religiosas criarem problemas de convivência. "Os internos muçulmanos têm uma
cultura muito diferente da nossa, e isso às vezes dificulta a
compreensão", diz ele .
Na Espanha, ainda que em
menor intensidade do que em
outros países da Europa, o possível vínculo entre a imigração
e o aumento da criminalidade é
tema de polêmica. Para a esquerda, trata-se de um mero
pretexto para a discriminação,
uma vez que as estatísticas que
mostram um índice mais elevado de delinqüência entre os estrangeiros são enganosas.
"É muito difícil provar essa
relação, pois a comparação deve ser entre grupos homogêneos. Entre os estrangeiros há
proporcionalmente mais jovens que entre os espanhóis,
por isso é natural que haja mais
delinquência", diz o sociólogo
Nicolás.
Com a proximidade das eleições gerais no país, no próximo
dia 9, o debate ganha os palanques. Há poucos dias, o direitista Mariano Rajoy, líder da oposição direitista, quebrou uma
regra não escrita ao criticar a
tolerância do governo com os
estrangeiros.
"A imigração é um problema
real", afirmou Rajoy, sob aplausos efusivos da platéia na cidade de Alcalá de Henares, cuja
população é 20% estrangeira.
Com a experiência de quem
trabalha há 25 anos em presídios, o diretor de La Moraleja
tem a opinião oposta à da direita. Para ele, quanto mais repressão aos imigrantes, mais
criminalidade.
"Sei que os que vêm para a
Espanha são forçados a emigrar pelas difíceis condições de
vida em seus países", diz De la
Rosa. "A ilegalidade estimula a
criminalidade. A maioria comete atos ilícitos não porque
são criminosos por natureza,
mas porque ficam sem opção."
Alguns tiveram escolha e não
se arrependem. Iramaia Andréa Siqueira, 29, é uma das
três mulheres brasileiras presas em La Moraleja.
Em agosto espera ser expulsa
da Espanha, após ter cumprido
3/4 da pena de cinco anos por
ter tentado entrar na Espanha
com cem cápsulas de cocaína
no estômago. "E se tivesse dado
certo?", indaga, com os olhos
verdes brilhando. "Teria comprado uma casa para a minha
mãe. Não, não me arrependo."
Hoje Iramaia está grávida de
seis meses do guatemalteco
Abiel Isaac, 27, que conheceu
na oficina de costura do presídio. A paulista de Catanduva
sonha com um futuro melhor
para seu bebê. Se for menino,
como ela espera, se chamará Iago. "Tenho outros dois filhos
em Catanduva, de 5 e 12 anos",
diz. "Quando sair daqui, vou
juntar as duas famílias e começar tudo de novo."
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