São Paulo, domingo, 17 de fevereiro de 2008

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"O ideal era engolir com mel a cocaína"

PRESOS CONTAM COMO É FEITO O AGENCIAMENTO DAS "MULAS", PESSOAS QUE ACEITAM TRANSPORTAR DROGAS PARA A EUROPA

DO ENVIADO A DUEÑAS

Alguns números nunca saem da cabeça dos brasileiros na penitenciária de La Moraleja: a data em que foram presos, o volume de cocaína que carregavam e o índice de pureza da droga. Seus relatos se embaralham entre lembranças distantes de parentes e amigos que os abandonaram e o inesquecível momento do flagrante no aeroporto de Barajas.
"Passei pelo controle de passaportes e um policial veio atrás de mim, me pedindo para ir até uma sala", conta o paulista Giovani de Souza Careta. "Quando ele me levou para o raio-X, percebi que estava tudo acabado. Sei que você está com bolas [de cocaína], me disse o policial."
O começo da história foi tão típico quanto seu desfecho. Motoboy em Franca (SP), insatisfeito com as longas e exaustivas horas de trabalho e o salário que não chegava a R$ 1.000, Giovani caiu na tentação ao ouvir de um amigo sobre a possibilidade de ganhar 5.000 em poucos dias.
No centro de São Paulo, recebeu as instruções de um nigeriano: deveria viajar a Lima e esperar o contato num pequeno hotel.
Ficou dez dias na capital peruana, arranjou duas namoradas e já estava quase desistindo da missão, quando a carga chegou: 139 pequenas bolas de cocaína envolvidas em látex, como o de preservativos. "Me disseram que o ideal era engolir com mel, mas eu estava enjoado depois de passar dez dias comendo só pão com mortadela. A comida peruana é nojenta", diz. "Preferi engolir com Gatorade e acabou sendo mais fácil do que eu pensava. O problema foi depois, para sair." O exame policial indicou um volume de 773 gramas, com um índice de pureza de 69%.
"O índice de pureza é o que determina a pena, não a quantidade de droga", ensina o paranaense Paulo Teixeira, 31, que no mês que vem completa metade dos seis anos a que foi condenado após desembarcar em Madri com cocaína escondida na estrutura de uma mala .
"No meu caso, a primeira pesagem deu 1,9 quilo, o que significaria pelo menos dez anos de cadeia. A pena só foi menor porque no fim o índice de pureza ficou em 689 gramas."
Histórias como a de Paulo e Giovani se repetem atrás dos muros de La Moraleja, onde 90% dos detentos cumprem pena por terem servido de mulas. A origem geralmente é uma indicação da droga envolvida. Latino-americanos levam cocaína, marroquinos e argelinos transportam haxixe.
Em comum, a tentação de ganhar um dinheiro fácil. "É sempre a mesma história, alguém fala de um conhecido que tentou e se deu bem", diz Paulo, que estava no segundo ano de administração de empresas em Maringá (PR) quando decidiu tentar a sorte. Ao contrário da maioria, não foi abandonado pela noiva. "Continuamos a nos falar toda semana."
Giovani sorri quando é questionado sobre as namoradas que conquistou na fugaz passagem por Lima. "Uma delas me escreve até hoje: Teolinda Tapulina Tuanama", enuncia, orgulhoso. "Essa se apaixonou."


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