São Paulo, domingo, 17 de março de 2002

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+ brasil 502 d.C.

Banalização da aparência

Luiz Costa Lima
A revista "Filosofia Política" número 2 da terceira série (Jorge Zahar) reserva uma agradável surpresa: no presente instante da conjuntura internacional, em que tudo favoreceria o exame da assimetria político-econômica entre países, continentes e regiões, a publicação se dedica por inteiro ao relacionamento entre ética e estética. Nela colaboram especialistas das mais diferentes áreas. Entre os nacionais, Denis Rosenfield, Kathrin Rosenfield e Paulo Faria; entre os estrangeiros, Svetlana Alpers, Karl Heinz Bohrer, Dieter Henrich e Wolfgang Iser, dos quais os três primeiros nunca haviam sido editados no Brasil (lamenta-se apenas que não haja a mínima indicação bibliográfica seja sobre os autores, seja sobre a proveniência de suas contribuições). Embora nem todos os textos tratem frontalmente do tema, os que o fazem são tão incisivos que exigiriam um caderno especial de discussões e comentários. Restrinjo-me a articular os ensaios de K.H. Bohrer e Paulo Faria, deixando subentendido o que ainda poderia fecundar da análise dos 11 restantes. O ensaio de Bohrer, professor de teoria da literatura ("Literaturwissenschaft") da Universidade de Bielefeld e co-editor da revista "Merkur", já dá o seu tom pelos dois primeiros parágrafos: eles denunciam a banalidade "pós-moderna" do uso dos termos "aparência", "superfície", "metáfora", referidos à obra de arte. "A banalização da aparência", diz logo a seguir, deriva "de uma metafísica estética", de que é responsável "O Nascimento da Tragédia", de Nietzsche: "Só como fenômeno estético a existência e o mundo estão eternamente justificados". Onde estaria a banalidade? Em que o próprio Nietzsche, em "A Gaia Ciência", complexificaria seu juízo: a aparência da arte já não é então confundida com a denúncia da verdade, porém é tomada como um véu de que só o engenho de quem só, como ele próprio, busca a verdade é capaz de desvelar.

Nas malhas da metafísica
Bohrer poderia ter acrescentado que, ao assim se retificar, Nietzsche recorria a uma fórmula clássica, usada por um Dante, mas o acréscimo seria desnecessário porque suas metas eram bem distintas: ao passo que, em Dante, o véu de que a beleza se encobria continha a verdade já revelada pelo cristianismo, a aparência em Nietzsche abria o caminho para um rendilhado de que ele próprio não estava por completo consciente (quem nos disse que um pensador compreende todo o alcance de sua novidade?!). Um rendilhado que, de acordo com a interpretação hoje famosa de Heidegger, ainda o prendia nas malhas da metafísica. Por isso mesmo sua exaltação da aparência viria a favorecer um esteticismo de baixo nível.


A autonomia da arte significara a sua liberação do serviço a todo código moral positivo; daí a quebra da arte autônoma, desde os primeiros românticos e, na pintura, desde Manet e Cézanne, com a "referencialidade externa"


Temos contudo uma via para nos acercarmos de seu pensamento ao relacionarmos o que dizia sobre a aparência com o que, no "Humano, Demasiado Humano", declarava sobre a falta de caráter e a ruína do estilo: "Querer mostrar mais sensibilidade a uma coisa do que se tem realmente arruína o estilo (...)". Ora, que haveria de mais explicável que a falta de um e a ruína do outro -base da aparência da arte- se não a preferência do contemporâneo pelo performático? Deixemos porém nossas interpolações e façamos apenas Bohrer falar. O sentido nietzschiano da aparência se extravia, junto com o realce da "superfície" e da "metáfora", porque, em comum, justificam a "vivência estética", que, por definição, seria o oposto da pergunta pela verdade. E aqui entra a primeira formulação capital de Bohrer: a "vivência estética" justifica "uma inócua religião da arte", que, ao se opor "a uma estética diferente, mais intelectual", é "contrariada pelo conceito do ético". Para então resgatar Nietzsche, Bohrer irá combiná-lo seja a La Rochefoucauld e Vauvenargues, seja a Musil. Destaquem-se as passagens decisivas. A primeira é uma citação de Vauvenargues: "Para ser justo, é preciso não só um espírito reto como um espírito amplo, mas o olhar generoso raramente acompanha a dedução rigorosa". A segunda, que enlaça as notas de Musil com a obra de Breton, assinala que "em todo estético se ocultaria um impulso ético, entendendo-se ético nos moldes de um regulativo utópico (...)". A ligação do ético com o "regulativo utópico" é decisivo para entender-se aonde Bohrer quer chegar. Para que a obra de arte seja entendida como uma dimensão da verdade, será preciso antes distinguir o impulso ético da regulamentação moral. A autonomia da arte significara a sua liberação do serviço a todo código moral positivo. Daí a quebra da arte autônoma, desde os primeiros românticos e, na pintura, desde Manet e Cézanne, com a "referencialidade externa", nela se incluindo o código moral positivo. Mas essa ruptura não enclausura o estético em si mesmo. A superficialidade no uso dos termos "aparência", "superfície", "metáfora" resultou de não se haver compreendido que seu realce se fazia como protesto contra um mundo rígido e congelado em usos que convertiam a verdade em convenção. Rompia-se com o referente externo para romper com a verdade gasta e automatizada. A separação era necessária para que o estético aludisse "a um significado mais profundo". Daí sua afirmação final: "A arte não é uma metáfora, e sim um grande pensamento". Daí ainda a relação encontrável noutros artigos. No de Kathrin Rosenfield, onde se diz: Heidegger não restringe o acontecimento fundamental de surpreender-se à criação artística, mas a inclui e, assim, a faz contar "entre os gestos de fundação da cultura e da sociabilidade". Ou no de Dieter Henrich: "A arte da modernidade desenvolvida é conduzida também pela consciência histórica e pode chegar a uma influência peculiar somente se se desenvolve na consciência de onde ela vem e em relação ao que nela se entende como aprofundamento".

A dimensão ética
Seria delirante supor que, em um número curto de linhas, fosse possível dar clareza meridiana a um texto denso como o de Bohrer. Ao leitor interessado, apenas insisto no argumento: para que se entenda a dimensão ética contida na obra de arte moderna se há de compreender que o ético aí não remete a nenhuma codificação moral estabelecida.
Daí a congruência que destaco no ensaio capital de Paulo Faria, feita a propósito de Heidegger: "O projeto de começar com o dado sensível puro implica abandonar toda perspectiva de uma fenomenologia realista da percepção. (...) Ele estava interessado em saber o que é preciso fazer consigo mesmo para chegar a conceber-se como alguém que escuta (meros) sons". Em seu ensaio, destaco ainda a observação: nenhuma reflexão filosófica sobre a arte caminha "se não for alimentada pela consideração atenta de obras de arte particulares". Por isso mesmo sua análise, a partir de certo momento, se dirige para a obra tão notável quanto pouco conhecida do compositor italiano de vanguarda Luigi Nono. Para quem comece a entender seu uso do silêncio, da voz reduzida à respiração, as citações quase inaudíveis, parte do caminho estará trilhado.

Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de "Vida e Mímesis" (ed. 34) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve regularmente na seção "Brasil 502 d.C.".


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