São Paulo, domingo, 17 de março de 2002

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+ brasil 502 d.C.

A curva regular de um destino

Bento Prado Jr.

Meu colega Renaud Barbaras pediu-me que abrisse esta sessão com uma breve narrativa da história de meu livrinho (1). Faço-o de bom grado, como melhor maneira de exprimir toda a minha gratidão àqueles, em especial a Antonia Soulez, que me convidaram a estar aqui e que me permitiram viver esta ocasião que tanto me honra.
A história deste livro começa em 1959, com a escolha de meu tema de tese: uma escolha que se impunha em termos quase dramáticos. Digamos que, na época, eu estava inteiramente impregnado de fenomenologia, em sua versão francesa e especialmente na de Sartre. Mas essa adesão (verdadeiro fascínio) não era despida de uma certa dose de inquietação. Percebendo que a filosofia de Sartre tornara-se para mim uma espécie de segundo senso comum, eu suspeitava ser vítima de um tipo de dogmatismo ou de certeza teórica fácil demais. Uma suspeita que, curiosamente, ganhou força graças a uma frase do próprio Sartre, na qual se diz mais ou menos que "deve-se pensar contra si mesmo: meço a evidência de uma idéia pelo coeficiente de horror que ela pode me causar". Tudo se decidiu nesse momento: eu devia pensar contra mim mesmo (quer dizer, contra Sartre).
Tratava-se de escolher uma obra outra e tentar examiná-la de maneira puramente imanente. O método de análise estrutural de obras filosóficas, cujo estilo presidira à minha formação (o departamento de filosofia da minha universidade fora fortemente marcado pela passagem de Martial Guéroult), parecia oferecer o caminho ideal para esse exercício de ascese ou de separação de mim mesmo. Depois de pensar em Feuerbach (pois o marxismo e sobretudo o jovem Marx estavam em meu horizonte) e em Maine de Biran, decidi-me finalmente por Bergson (1859-1941). E isso por duas razões: 1) o "naturalismo" de Bergson parecia-me então estar nos antípodas de toda forma de fenomenologia, servindo portanto a meu projeto de distanciamento; e 2) o estilo da escrita bergsoniana, que fazia do trabalho por vir uma ocasião rara do mais puro prazer de ler.
O trabalho começou de fato nos anos letivos de 1961-62 e 1962-63, por ocasião de minha primeira estada na França, onde tive a felicidade de contar com os conselhos de meu professor, o sr. Victor Goldschmidt. Tive também acesso, por intermédio de colegas, a cursos anteriores de Goldschmidt, que me guiaram em meu trabalho posterior, como se vê ao longo de todo o livro. Voltando ao Brasil em fins de 1963, com dois cadernos cheios de notas, eu contava ter cinco anos mais para escrever minha tese. Mas justamente em 1º de abril de 1964 irrompe um golpe militar no Brasil, pondo em perigo as instituições universitárias.
Como medida defensiva -que logo se mostraria inútil-, meu departamento exigiu que eu apresentasse a tese no prazo mais curto possível. Foi o que fiz, redigindo minha tese a passo alucinado, da metade de abril ao fim de junho, sempre assediado pela idéia angustiante de estragar assim o que poderia ter sido um bom trabalho. E foi assim que foram necessários 27 anos para que eu aceitasse, em 1989, o convite de publicar a tese na editora de minha antiga universidade, da qual eu fora expulso em 1969. Por essa mesma razão, a primeira edição terminava com a seguinte frase: "Se meu livro persuadisse um único leitor a reler Bergson particularmente em nossos dias, neste tempo de pobreza, eu me consideraria perdoado por meu pecado de juventude".
Dito isso a respeito da gênese do livro, são necessárias ainda algumas palavras sobre sua estrutura ou sobre uma certa ambiguidade que lhe é essencial. Como é claro pelo que disse das razões de minha escolha original, trata-se de uma obra que se apresenta como exercício de pura historiografia e, mais ainda, de uma historiografia perfeitamente "estrutural" ou imanente, que se proíbe todo juízo "externo" sobre o valor de verdade da filosofia estudada. Mas o fato é que esse esforço de explicação imanente -e que passava por ser uma crítica radical (com recurso à reavaliação de Bergson pelo último Merleau-Ponty) das críticas externas dirigidas a Bergson pelos filósofos de inspiração fenomenológica- não obstava a pulsação e a pressão permanentes de minhas próprias obsessões filosóficas.
Foi assim que escutei, sem ressentimento e mesmo com cumplicidade, de meu amigo Ruy Fausto (até há pouco professor na Universidade de Paris 8), que acabara de ler a tese, a seguinte observação: "Isso é filosofia geral, não é?". Essa ambiguidade transparece sobretudo na conclusão, onde parece assomar, ao fim de uma análise que se pretendia puramente interna, uma espécie de distanciamento crítico, do qual não é ausente o impacto de "O Visível e o Invisível" (1964) [de Merleau-Ponty", lido simultaneamente à redação do livro. Hoje em dia, essa ambiguidade me parece antes boa do que má. Com efeito, sem que minha admiração pela obra de Guéroult e Goldschmidt tenha absolutamente diminuído, não sou capaz de aceitar qualquer forma de cisão entre a filosofia e sua história.
Devo ainda dizer o que penso do livro, 38 anos após sua redação e imediatamente após sua publicação em francês. Curiosamente, ele me parece mais próximo e, com o perdão da "hybris", melhor do que eu esperava. Ele é objetivamente melhor, pois vários erros de impressão e mesmo algumas graves deformações ortográficas da edição brasileira foram corrigidos por meu amigo Renaud Barbaras, que se encarregou, em sua enorme generosidade, do trabalho de tradução.
Ele é melhor do ponto de vista da escrita: no caso, não é estranho que a tradução seja melhor que o original. Pois o livro foi pensado, por assim dizer, em francês, e foi escrito em um português impregnado de uma enorme quantidade de galicismos (como observou um irmão muito purista no uso do português). Em sua versão atual, esse defeito obviamente desapareceu. Além disso, algumas referências do original tornaram-se mais precisas na tradução: meu texto referia-se, por exemplo, à versão manuscrita de "Kant et la Fin de Métaphysique", de Gérard Lebrun, que fizera a gentileza de transmiti-la a mim. O tradutor indica as páginas da obra publicada em 1970, auxiliando assim o leitor atual.
Para terminar, devo avançar um pouco mais no paradoxo do distante que subitamente se mostra próximo, descrevendo a curva desenhada por um itinerário que, partindo da reconstituição da gênese bergsoniana da subjetividade no campo transcendental das imagens, parece retornar a ela depois de se distanciar em duas etapas diferentes.
O primeiro passo foi dado durante minha estada na França entre 1969 e 1974, pelo CNRS, após minha exclusão da USP, com a redação de um livro (do qual apenas alguns capítulos foram publicados) sobre Rousseau e sua concepção essencialmente retórica da linguagem, isto é, sobre sua concepção de intersubjetividade (ou, na excelente fórmula de Jean Hyppolite, sobre a decisão de Rousseau de instalar a linguagem no lugar reservado a Deus pela tradição metafísica).
Um segundo passo foi dado em meu retorno ao Brasil, onde escrevi vários ensaios sobre a filosofia analítica da mente, com a intenção de mostrar de que maneira essa tradição se distancia e trai o espírito mais profundo do pensamento de Wittgenstein, ignorando a permanência da problemática da subjetividade e do transcendental, a despeito da concepção de filosofia como análise gramatical.
Atualmente, ocupo-me da questão da ipseidade e seu campo transcendental, propondo-me a examinar a posteridade fenomenológica, analítica e bergsoniana do argumento transcendental. Ao fim e ao cabo, estaríamos a ponto de retornar ao nosso ponto de partida? De todo modo, a ilusão retrospectiva é inevitável para aquele que não pode sair do presente ou de si mesmo. Mesmo Jean-Jacques Rousseau, que muito cedo declarou-se "camaleônico", acabou por descrever seu itinerário (mesmo insistindo sobre as mil contingências e catástrofes que, de fora, imprimiram-lhe uma direção) sob a forma de uma curva regular ou de um destino.
Tudo isso explica a emoção de que fui tomado quando Renaud Barbaras me fez saber sua intenção de traduzir meu "Bergson". Meu velho livrinho havia portanto sobrevivido a esses 40 anos? Poderia isso significar que, em meu tortuoso itinerário nesses mesmos anos, nem tudo foi da ordem do descaminho? A mesma emoção me retoma neste instante, quando me preparo a escutar o eco que meu livro possa ainda merecer da parte de leitores tão distintos.

Nota
1. Este texto corresponde à palestra dada pelo autor em janeiro passado no Collège International de Philosophie, em Paris, quando do lançamento de "Présence et Champ Transcendental" (ed. Olms), tradução para o francês de seu livro "Presença e Campo Transcendental" (Edusp).


Bento Prado Jr. é filósofo, professor na Universidade Federal de São Carlos e professor emérito da USP, autor, entre outros, de "Alguns Ensaios" (ed. Paz e Terra).
Tradução de Samuel Titan Jr.


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