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No romance "Jack Maggs", o australiano Peter Carey volta
ao século 19 e reconstrói um folhetim romântico à la Dickens
Uma aquarela desbotada
Cristovão Tezza
especial para a Folha
Em abril de 1837, um suposto criminoso de traços sinistros, Jack
Maggs, volta da Austrália para
Londres com o propósito obsessivo de encontrar um certo Henry Phipps.
Para matá-lo? Custamos a saber; logo começa uma sucessão vertiginosa de desvios narrativos, coincidências extraordinárias, encontros e desencontros, sustos
e surpresas. No cenário de uma Londres
sórdida recriada diretamente das páginas de Charles Dickens e do clássico
"Grandes Esperanças" (1861; publicado
no Brasil pela Ediouro), a história de
Maggs -provisoriamente empregado
como copeiro- vai se cruzando com a
vida de um escritor pobre, ambicioso e
sem escrúpulos e com o destino de um
ex-peixeiro que herda uma casa e todos
seus empregados.
Em cada página, mulheres perdidas,
exploração da miséria infantil, médicos,
charlatães, cocheiros, taberneiros, manuscritos redigidos em código com escrita invisível, sessões de hipnose em
reuniões científicas, contratos arriscados
a fio de bigode, sombras em telhados,
fantasmas que reaparecem. Ao mesmo
tempo, a gênese da narrativa vai se iluminando aos fragmentos por meio da memória de uma criança suja e assustada
carregando sacos cheios de peças de prata através de ruelas fedendo a esgoto sob
a luz brilhante da lua. Não falta a névoa,
os ratos, uma fuga por um barco precário ao longo do Tâmisa, a ponte de Londres, marcas de chibata na pele, barbas
imundas e aqui e ali um bom coração batendo neste ou naquele peito sofrido.
Narrativa irresistível
Todo o imaginário do folhetim romântico (incluindo de forma muito específica o universo
de Dickens) está presente no romance
"Jack Maggs", do premiado escritor australiano
Peter Carey. Nesse sentido, o romance cumpre integralmente o que promete: é uma narrativa irresistível -como disse um resenhista, lendo "Jack
Maggs" você "não pára
nem para jantar nem para atender a
campainha". São 368 páginas de "tirar o
fôlego", repetindo mais um chavão. Nesses tempos em que o leitor de um livro é
uma figura quase mais rara que o mico-leão-dourado, o livro de Peter Carey funciona como uma bênção, um verdadeiro
formador de leitores, capaz de, pela simples força do seu texto, arrastar alguém
da idiotia televisiva para algum tempo de
silêncio produtivo. Tarefa civilizatória
cumprida -e a resenha acabaria aqui.
Mas o leitor mais exigente poderia aproveitar a
leitura deste ótimo romance de aventuras para
pensar sobre o sentido da
"reconstituição de época"
num livro que não se pretende nem histórico nem
propriamente documental. Pretende-se literatura, sem adjetivos
-e então esse leitor tentará descobrir o
"olhar contemporâneo", o nosso olhar
sobre aquele tempo. Afinal, só a presença
da sensibilidade contemporânea pode
dar um sentido maior ao que, de outra
forma, seria apenas uma cópia, um pasticho ou uma brincadeira literária.
Invertendo o olhar
Numa entrevista, Peter Carey, nascido em 1943 e hoje
professor da Universidade de Nova
York, disse que, embora nem todos os
australianos descendam dos criminosos
que para lá foram mandados pela Inglaterra, esses primeiros habitantes marcaram o país, como os passageiros do Mayflower marcaram simbolicamente os Estados Unidos. Assim, era seu projeto inverter o olhar de Dickens: o personagem
Jack Maggs não seria o "outro", mas o
próprio "ancestral" de Carey. Sem eliminar o "perigo" que o personagem representa, ele quis marcá-lo com a mesma
simpatia que Dickens passa aos seus heróis ingleses.
O projeto de Peter Carey, entretanto,
acaba por não se realizar de fato, porque
no livro a força mimética do modelo folhetinesco é tal que -vai lá o chavão de
novo- nem o leitor nem o texto respiram. Esmagados pela ação, todos os personagens se diluem no estereótipo. Não
só os personagens: rigorosamente tudo
no livro reproduz uma imagem prévia
com a qual o leitor já foi bombardeado
ao longo da vida, pelos filmes e pelos textos, de Dickens a Chaplin: uma criança
com as bochechas sujas de carvão e um
saco de peças de prata pendurado nas
costas recortada pela luz do luar, o criminoso bom, o filho ingrato, o advogado
perverso, a mãe terrível etc. A Londres do século 19 de Peter Carey é uma
gravura colorida na parede, com todas as arestas suavizadas pelo otimismo romântico, mas sem nenhum dos
elementos de sua força original; é um
retrato na parede, só que não dói. Do
olhar de hoje, apenas a profusão de
diálogos, a rapidez eficiente de uma
conversa fiada cinematográfica que
vai conduzindo a narrativa e esvaziando-a de toda introspecção. As
descrições -ao contrário do realismo do século 19, que avançava detalhista sobre a representação do mundo como quem o descobre pela primeira vez- são pequenos traços de
aquarela que complementam o cromo que já está na cabeça do leitor e
contra o qual o narrador nada tem a
dizer. O tempo passado não é mais
fonte de reflexão; transformou-se em
passatempo. De novidade também
-e politicamente correto- vê-se
um breve "affair" homossexual num
segundo plano narrativo, mais uma
ilustração passageira do que um tema
consistente. A eventual boa intenção
do narrador desaparece na sua entrega prazerosa aos lugares-comuns em
que se acomoda a imagem congelada
do passado.
Outra história
Seria essa -a mímese lúdica- uma maldição inevitável a quem enfrenta o passado histórico como fonte de literatura? Certamente não. Em um projeto semelhante, um escritor da mesma geração de
Carey, o sul-africano J.M.Coetzee, em
seu "Foe" [Penguin Books, ainda sem
edição brasileira", recriando Robinson Crusoe e Daniel Defoe, marca o
contraponto possível. Na história,
uma ex-náufraga maltrapilha circula
numa Londres igualmente miserável
com o negro Sexta-Feira, de língua
cortada, a tiracolo, atrás de alguém
que escreva a sua história, uma história que ele mesmo, mudo e analfabeto, não pode dizer. Aí temos também
um retrato na parede -a diferença é
que este ainda dói.
Cristovão Tezza é escritor, autor de "Breve
Espaço entre Cor e Sombra" (Rocco), entre outros, e professor do departamento de linguística da Universidade Federal do Paraná.
Jack Maggs
368 págs., R$ 40,00
de Peter Carey. Trad. de Vera
Whately. Ed. Record (r. Argentina, 171,
CEP: 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/2585-2000)
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