São Paulo, domingo, 17 de março de 2002

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"A Vida Literária no Brasil durante o Romantismo" traça um amplo painel da cultura e da política durante o Segundo Reinado

Chacotas e galhofas no império

José Geraldo Couto
Colunista da Folha

O título "A Vida Literária no Brasil durante o Romantismo" chega a ser modesto, pois, embora a literatura seja o foco principal deste precioso livro do pesquisador e ensaísta Ubiratan Machado, a extensão e a variedade dos temas abordados configuram um autêntico painel da cultura e da vida social no Segundo Reinado (1840-1889), pelo menos em seu segmento mais urbano.
Trata-se de um período decisivo para a formação do Brasil moderno, durante o qual as cidades cresceram e adquiriram hábitos e instituições inspirados no modelo europeu, as mulheres começaram lentamente a se emancipar do analfabetismo e da opressão patriarcal, a indústria editorial começou a engatinhar, a imprensa se difundiu e consolidou e a juventude estudantil buscou acertar o passo com as novidades literárias e políticas da Europa.
Nenhum desses aspectos foi deixado de lado por Ubiratan Machado. Aliando erudição e fôlego de pesquisa, ele leu tudo o que havia para ser lido -da mais dispersa e rara bibliografia a inúmeras fontes primárias, como jornais e documentos da época- e organizou esse mundo de informações numa narrativa saborosa, cristalina, repleta de anedotas e casos representativos.
O centro intelectual e nervoso dessa narrativa é, evidentemente, o movimento romântico, especialmente nos núcleos em que sua atividade foi mais profunda e ruidosa, a saber: Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Recife.
Não foi por acaso que essas cidades serviram de palco à pequena revolução romântica e viram surgir as primeiras editoras, as primeiras livrarias, os primeiros periódicos literários, os primeiros saraus lítero-musicais, as primeiras polêmicas públicas etc. Nelas se concentravam estudantes de todo o país, atraídos para as faculdades de direito (São Paulo e Recife) ou medicina (Rio de Janeiro e Salvador).
Claro que tudo isso precisa ser visto em sua devida escala. São Paulo, por exemplo, não contava, em 1850, com mais de 14 mil habitantes.
Desses, cerca de 400 eram estudantes da faculdade de direito ou dos cursos preparatórios, concentrados, segundo Ubiratan Machado, em 80 repúblicas. As tiragens dos livros raramente ultrapassavam os 200 exemplares. Poucas eram as livrarias que não vendiam também artigos de papelaria e mercearia. A impressão de livros, sobretudo no início do Segundo Reinado, ainda era precária e cara. Ficava mais barato imprimir um livro na França do que no Brasil. As mudanças nesse quadro, a ação dos pioneiros da atividade editorial, o papel da imprensa, as imbricações entre a literatura e a política, a influência das idéias e autores europeus -tudo isso o autor nos narra com graça e vagar, a par de passagens curiosas e reveladoras da vida dos grandes escritores e políticos do período.


O epicurismo de Byron, por exemplo, tão temido pelas hostes conservadoras, ganhou tintas quase paródicas nas repúblicas de São Paulo e Recife


A cada episódio ressaltam os contrastes e paradoxos de nossa sociedade imperial, como reverberações da contradição principal, entre liberalismo e escravidão, tão bem explicitada por Roberto Schwarz. Mesmo "fora do lugar", as idéias e costumes europeus tiveram vigência e influência por aqui, mas devidamente abrasileirados.
Um dos mais interessantes aspectos secundários do livro de Ubiratan Machado é mostrar -sem chamar a atenção para isso- a aclimatação que os paradigmas românticos franceses, alemães e ingleses sofreram no Brasil. O epicurismo de Byron, por exemplo, tão temido pelas hostes conservadoras, ganhou tintas quase paródicas nas repúblicas de São Paulo e Recife. Embora o autor não explicite essa interpretação, parece que há sempre um ar de galhofa pairando sobre a boêmia e a literatura dos jovens românticos, em que pese a tragédia que marcou a vida de alguns deles.
Um romantismo regado, em grande parte, por modinhas, polcas, serestas e lundus, apimentado por repentes, temperado por chacotas.
Foi, em muitos sentidos, um momento "sui generis" da história da cultura ocidental. Uma de nossas grandes originalidades, por exemplo, foi o papel desempenhado pelo imperador Pedro 2º. Como nos mostra Ubiratan Machado, d. Pedro foi um dos raros monarcas, senão o único, que participou diretamente de polêmicas literárias (defendendo "A Confederação dos Tamoios" dos ataques de José de Alencar), fomentou saraus de poesia e se deixou satirizar impiedosamente por poetas, jornalistas e caricaturistas do período.
Além de d. Pedro, outras figuras se desprendem, como seres de carne e osso, das páginas de "A Vida Literária no Brasil durante o Romantismo": José de Alencar, híbrido de bem-sucedido homem de letras e político, de perfil tão imperial quanto o próprio imperador; Castro Alves, bardo ardente e uma espécie de "precursor do amor livre"; Machado de Assis, que parece ter vivido os vícios do romantismo como uma doença infantil da qual se libertaria para reinventar nossa literatura... e dezenas de outros. Suas existências, entrelaçadas, formam uma espécie de história cotidiana do império. Enfim, uma leitura tão obrigatória quanto prazerosa.

A Vida Literária no Brasil
durante o Romantismo
314 págs., R$ 35,00
de Ubiratan Machado. Ed. da Uerj
(r. São Francisco Xavier, 524,
CEP: 20550-900, rj, TEL. 0/xx/21/2587-7788).


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