São Paulo, domingo, 17 de maio de 2009

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Memórias póstumas


Duas coletâneas reúnem cartas de Machado de Assis que tratam de temas como a gênese de "Memorial de Aires"

JOÃO CÉZAR DE CASTRO ROCHA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A publicação quase simultânea de dois volumes da correspondência de Machado de Assis representa um grande benefício para os estudiosos de sua obra.
É como se os volumes colocassem em cena o desejo de "atar as duas pontas da vida", pois, se "Correspondência de Machado de Assis" revela os primórdios das atividades do escritor, "Empréstimo de Ouro" equivale a um réquiem, pois reúne cartas escritas nos seus últimos anos de vida.
Além disso, os dois volumes apresentam uma organização impecável.
O texto das cartas, fixado a partir da consulta a documentos e manuscritos, encontra-se enriquecido por notas esclarecedoras tanto das circunstâncias particulares mencionadas pelo missivista, quanto dos motivos mais gerais, associados ao contexto político e cultural do tempo.
Vale ainda mencionar que a edição de "Empréstimo de Ouro" é uma verdadeira obra de arte, incluindo a edição fac-símile dos manuscritos de Machado, além de reunir uma rica iconografia, que não apenas ilustra, mas, a seu modo, oferece um comentário adicional ao conteúdo das cartas.
Sergio Paulo Rouanet esclareceu o critério adotado na organização de "Correspondência de Machado de Assis": "Seriam incluídas as cartas propriamente ditas, tanto as expedidas quanto as recebidas; os telegramas; os cartões-postais; e mesmo os cartões de visita, quando tivessem algum texto escrito (...), também as cartas abertas, publicadas em jornais, ou as cartas-prefácio, introduzindo livros."
O critério se justifica plenamente, permitindo ao leitor contemporâneo formar uma opinião mais completa acerca do jovem Machado. Cartas abertas tratando de temas políticos, nacionais ou internacionais, por exemplo, ajudam a compreender as preocupações do autor de "Helena".

Situação no México
Destaca-se, aqui, a carta escrita em 21 de março de 1865, na qual Machado respondia às considerações de um "Amigo da Verdade" sobre a delicada situação política mexicana, após a invasão das tropas francesas e a imposição do imperador Maximiliano.
Trata-se, como se sabe, de um dos episódios mais bizarros da história latino-americana e que já havia inspirado ao jovem poeta os versos eloquentes e bem-intencionados de "Epitáfio do México", publicado em seu livro de estreia, "Crisálidas" (1864): "E quando a voz fatídica/ Da santa liberdade/ Vier em dias prósperos/ Clamar à humanidade/ Então revivo o México/ Da campa surgirá."
O jovem articulista expressou opinião semelhante, embora em registro mais sóbrio: "Que o México mantenha o isolamento, e inspire desconfianças, é natural, é lógico, porque esse é o resultado da sua origem irregular. Mas o Brasil não pode ter comunhão de interesses nem de perigos, com o México, porque sua origem é legítima, e o seu espírito é americano."
Compreenda-se: Machado refere-se ao México invadido pelas tropas francesas.
Por sua vez, as mensagens de caráter pessoal esclarecem, pelo avesso, a montagem de uma ampla rede de relacionamentos -tarefa que ocupou parte considerável dos exercícios do jovem escritor. Rede cordial mais tarde institucionalizada na criação da Academia Brasileira de Letras.
Autêntico personagem de seus futuros romances, o Machadinho da década de 1860 teceu com mão hábil amizades duradouras e conexões importantes. Nesse sentido, é importante mencionar o notável trabalho das pesquisadoras Irene Moutinho e Sílvia Eleutério (em "Correspondência..."), cujas notas compõem um livro à parte, oferecendo um panorama completo da vida cultural e política da década.

O estilo do Conselheiro
De igual sorte, Eduardo Coutinho e Teresa de Oliveira esclareceram o propósito da organização das cartas de Machado a Mário de Alencar:
"Esperamos estar contribuindo não só com os estudiosos de Machado de Assis e os especialistas em crítica genética, como também para o enriquecimento dos estudos da literatura, da cultura e da história do Brasil." O objetivo foi plenamente alcançado, com destaque para as cartas que tratam da gênese do último romance de Machado, "Memorial de Aires".
Em 18 de março de 1907, buscando consolar o jovem amigo, Machado prescreveu uma terapia muito particular: "Por que não escreve alguma cousa? Ideias fugitivas, quadros passageiros, emoções de qualquer espécie, tudo são cousas que o papel aceita e a que mais tarde se dá método, se lhes não convier o próprio desalinho."
É como se descrevesse o estilo do Conselheiro e a fatura de seu último livro! Dez dias depois, nova missiva e uma referência nada velada à composição em andamento: "O meu trabalho teve uma interrupção de dias. (...) Agora quero ver se acabo a leitura e faço o remate."
O tom se torna menos cifrado em carta de 22 de dezembro de 1907: "Foi também por isso que achou o modelo íntimo de uma das pessoas do livro (...)".

"Fica entre nós dois"
Em carta de 16 do mesmo mês, Mário de Alencar havia tocado o dedo na ferida: D. Carmo, personagem do "Memorial de Aires", representava a última homenagem à viúva do escritor. Em carta de 8 de fevereiro de 1908 (incluída no volume 3 da "Obra Completa", organizada por Afrânio Coutinho, mas ausente nesta bela edição), Machado deixou a diplomacia de lado e pediu sem meias palavras: "Aproveito a ocasião para lhe recomendar muito que, a respeito do modelo de D. Carmo, nada confie a ninguém; fica entre nós dois".
Em "Empréstimo de Ouro" convivemos com um homem enfermo, ciente do pouco tempo que lhe restava. Porém, fiel à lição de toda uma vida, Machado recomendou ao jovem amigo que se recuperasse da depressão com o trabalho: "A arte é remédio e o melhor deles".
Isso disse em carta de 23 de fevereiro de 1908. Em 20 de abril, repisou o motivo: "Em duas palavras, busque o remédio na Arte". Para Machado, recorde-se, arte significava sobretudo disciplina e dedicação. Felizmente, com a reedição das cartas, o método não ficará só entre os dois missivistas.


JOÃO CÉZAR DE CASTRO ROCHA é professor de literatura na Universidade do Estado do RJ.

CORRESPONDÊNCIA DE MACHADO DE ASSIS
Organizador: Sergio Paulo Rouanet
Editora: Academia Brasileira de Letras (tel. 0/ xx/21/ 3974-2500)
Quanto: R$ 35 (362 págs.)

EMPRÉSTIMO DE OURO
Organizadores: Eduardo Coutinho e Teresa Cristina de Oliveira
Editora: Ouro Sobre Azul (tel. 0/ xx/ 21/ 2286-4874)
Quanto: R$ 75 (128 págs.)

Folha Online
Leia duas cartas que fazem parte da coletânea "Correspondência de Machado de Assis" em
www.folha.com.br/091341



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