São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2009

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Os poetas

Para antropólogo, negligência sistemática em relação à poesia produzida por povos indígenas das Américas, que se aproxima formalmente da literatura oriental, representa perda para o projeto de conhecimento cosmopolita que está no cerne do funcionamento de nossas culturas letradas


As estéticas ameríndias oferecem desafios similares aos encontrados por Pound nos ideogramas

PEDRO DE NIEMEYER CESARINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Escuta-se ainda com frequência que os povos indígenas não evoluíram, que são um atraso em meio à modernidade desenvolvida.
Tal senso comum, equivocado e defasado, se espalha pelos mais diversos setores da cultura e das camadas dirigentes. Impõe-se como uma muralha diante das sociedades indígenas, cujos conhecimentos estéticos são ignorados pela cultura letrada. O problema tem seu histórico, pois, no Brasil ao menos, a formação intelectual que começa no ensino básico não considera a existência das culturas ameríndias (para não falar das africanas ou asiáticas), preteridas em favor dos cânones euro-americanos.
Essa negligência sistemática representa uma enorme perda para o conhecimento cosmopolita, que não estabelece acesso aos insondáveis mananciais de pensamento e criação indígenas. Uma das razões para o problema, e talvez a mais essencial, consiste na persistência das noções de aculturação e integração, baseadas na ideia de que os povos indígenas supostamente perdem suas tradições para, aos poucos, se fundirem à população brasileira.
A questão, sustentada noutros tempos pelo antropólogo Darcy Ribeiro (1922-97), foi desmentida pelos fatos e pela etnologia contemporânea. Sabe-se e observa-se, nos dias de hoje, que os povos indígenas não apenas crescem como também reinventam as novidades trazidas pelos brancos a partir de seus próprios critérios de pensamento.
Nas desoladas áreas do Centro-Oeste ou nos luxuosos litorais paulista e fluminense, em situações frequentemente miseráveis, os guaranis, por exemplo, seguem realizando em sua língua materna os complexos ciclos míticos tais como os reunidos no "Ayvu Raptya". Seus textos míticos não deixam nada a desejar aos clássicos da antiguidade europeia ou às literaturas contemporâneas. Ainda assim, têm passado despercebidos aos olhos da cultura.
E o que há de original aí? A lógica das escritas ideogrâmicas orientais foi fundamental para a composição da poesia de Ezra Pound (1885-1972), que influenciou autores essenciais da literatura ocidental, tais como William Carlos Williams, T.S. Eliot, Allen Ginsberg, Charles Olson, Gary Snyder, entre outros. As estéticas ameríndias, muito mais próximas da China do que dos cecis e peris que ainda povoam o imaginário romântico-folclorista da cultura nacional, oferecem ao pensamento desafios similares aos encontrados por Pound nos ideogramas.
O antropólogo Claude Lévi-Strauss chegou mesmo a detectar "princípios fundamentais" partilhados pelas artes da costa noroeste norte-americana e as da China arcaica. Vejam-se os seguintes versos do "Ayvu Raptya", recentemente adaptados por Douglas Diegues ("Kosmofonia Mbya Guarani", ed. Mendonça & Provazi): "Nosso Pai último-último Primeiro/ entre as trevas primitivas/ fez que seu próprio corpo futuro se abrisse como flor./ As divinas plantas dos pés/ o pequeno apyka redondo,/ em meio às trevas primeiras,/ Fez que se abrissem como flor".
Nos versos, constituídos por sofisticadas justaposições de imagens, bem à maneira das poesias japonesas ou chinesas tradicionais, vemos o demiurgo Ñamandu surgir com seu banco apyka. O outro trecho oferecido por Diegues não é menos belo: "Tendo florido (em forma humana)/ Da sabedoria contida em seu ser de céu/ Em virtude de seu saber que se abre em flor,/ Soube para si em si mesmo/ a essência da essência da essência das belas palavras primeiras".
As riquezas das poéticas ameríndias não foram menosprezadas por poetas norte-americanos, tais como o já mencionado Gary Snyder e também Jerome Rothenberg, que, nos anos 1970, pesquisavam com afinco as produções dos povos da América do Norte. Ali, aproveitavam os trabalhos realizados por antropólogos e outros especialistas em línguas ameríndias para enriquecer o campo de criação da poesia estadunidense. Na circunstância, Rothenberg chegou a produzir coletâneas de traduções de artes verbais ameríndias que, de um modo geral, permanecem como interessantes materiais de experimentação tradutiva.

Floresta inexplorada
No Brasil, pouco aconteceu. As reinvenções e metaforizações das culturas indígenas realizadas por Mário de Andrade, Raul Bopp, Sousândrade ou Oswald de Andrade, por mais relevantes que sejam, não esgotam o potencial e a diversidade das estéticas alheias que, entre tais autores, foram aliás enviesadas pelas inquietações modernistas. Desde então, poucos além dos etnólogos se lançaram sobre a floresta. Algo para o que Antonio Risério já apontava há mais de dez anos: "Não só os poetas precisam abrir os olhos e o coração para a poesia indígena (e africana), como os etnógrafos precisam nos mostrar mais sistematicamente a colheita poética de suas expedições" ("Textos e Tribos", ed. Imago).
As poéticas ameríndias não são ingênuas, próximas de um estado de natureza rousseauniano, de uma infância estética ou algo do gênero. Também não podem ser pensadas por meio dos estereótipos do primitivismo, das "origens místicas", das identidades nacionais ou do "espírito do povo" que anima as ideias folcloristas.
Isso porque tais categorias pertencem à história do pensamento moderno ocidental, ao longo da qual a relação entre natureza e cultura ganhou sentido e projetou "os outros" no plano da pureza, do simplório ou do atrasado (a natureza), oposto ao plano da complexidade, da cultura e do desenvolvimento (a civilização). A civilização inventa os seus outros e, assim, os silencia.
Exceção à escassez vigente, a publicação recente do "Popol Vuh" (ed. Iluminuras), grande texto mítico dos maias-quiché da Guatemala, traduzido por Gordon Brotherston e Sérgio Medeiros, é um bela fonte para o estudo da formação do mundo tal como concebida por uma poética ameríndia. Deveria ser incluído na grade curricular do ensino médio junto com outros textos que simplesmente não estão disponíveis ou não foram ainda sequer estudados ou traduzidos.
Há, de fato, um longo trabalho a ser feito para preencher os requisitos da lei nº 11.645/ 2008, que torna obrigatório o ensino das histórias e culturas afro-brasileira e indígena. O problema não é apenas de disponibilidade de materiais, mas também de ausência de arcabouço conceitual para pensar os horizontes ameríndios, radicalmente distintos dos nossos.

Origens diversas
Documentado nos tempos pré-colombianos em escrita hieroglífica, o "Popol Vuh" possui estruturas similares às de outras mitologias da floresta: a ausência de escrita ou de palácios de pedra não quer dizer, entretanto, que as culturas amazônicas sejam mais ou menos complexas do que as andinas ou mesoamericanas.
Importam, sobretudo, as "estruturas de fundo" partilhadas por povos distintos; estruturas similares às encontradas por Lévi-Strauss no Oriente e nas Américas, difundidas pelos planaltos andinos ou pela bacia amazônica. É o que podemos ver em alguns versos referentes a textos que narram os momentos iniciais do cosmos.
Nas versões ameríndias, esses momentos são pensados a partir de critérios bastante distintos daqueles que inspiraram a Bíblia, a grande base das culturas ocidentais. Dennis Tedlock, outro estudioso do "Popol Vuh", mostra como, na construção narrativa de tal obra, o papel do diálogo e das interrogações nas cenas de criação é distinto do monólogo imperativo bíblico: a narrativa dos maias não trata de "uma série de comandos proveniente de uma única fonte, mas de uma extensa discussão".
O "Popol Vuh", assim, apresenta o diálogo inicial por meio da composição em dísticos (versos em pares), comum às poéticas da América Central: "Então eles pensaram;/ Então eles refletiram./ Então concluíram entre eles;/ Eles juntaram/ Suas palavras./ Seus pensamentos". Mais adiante, os demiurgos seguem dialogando sobre a criação de protetores da floresta: ""Deveria apenas estar quieto,/ Ou não deveria estar quieto/ Sob as árvores/ E os arbustos?/ Na verdade, se existissem/ Protetores seria bom", disseram".
Algo semelhante encontra-se entre os marubos (Amazonas), cuja vasta tradição oral venho estudando e traduzindo há alguns anos. Fazem parte desta os "saiti", narrativas míticas cantadas que tratam da formação do cosmos, em meio a uma série propriamente infindável de episódios e ações realizadas nos tempos primeiros.
Destaco aqui o fragmento inicial do canto "A Fala da Terra-Névoa", no qual é narrada a formação do mundo e o surgimento dos primeiros demiurgos. Após aparecerem em um vento de rapé e de lírio, os demiurgos conversam entre si:

"vento de lírio-névoa no vento planavam e planando pensam

"os nascidos depois nas outras épocas onde mesmo será que irão viver?"

assim eles dizem vento de lírio-névoa no vento planando

"deixá-los assim nós não podemos"

pensam e então suas salivas-espírito fazem mesmo cair para terra formar as bolhas de saliva por tudo espalharam terra toda fizeram para juntos ficarem assim eles pensam

caule de tabaco-névoa o caule atravessaram e deixam colocado toco de tabaco-névoa ali colocaram cruzado e deixam deitado

tabaco-névoa ventando a terra formaram e ali vão ficar assim eles pensam"


No início descrito pelo canto marubo existia o múltiplo, e não o uno da cosmogonia bíblica. A partir de seus surgimentos, os diversos espíritos põem-se a dialogar para, enfim, formar a terra a partir de suas salivas, sobre as quais assentarão as entidades primeiras que ainda flutuavam na névoa.
A história da criação do mundo e da humanidade contada pelos desanas (povo falante de língua tucano do alto rio Negro) vai na mesma direção que os poemas marubo e maias-quiché: "Essa terra, onde moramos agora, não existia antigamente. Naquela época, os três viviam dentro da fumaça de cigarro e no ar puro. Eles não apareciam, isto é, eles eram invisíveis. "Precisamos preparar o mundo para as futuras gerações", repetiu Baaribo. "É isso mesmo que se deve fazer. Precisamos criar a terra para as futuras gerações morarem nesse mundo", respondeu Bupu. "[Está] bom, é isso mesmo que vamos fazer", disse então Baaribo.
"Mas como vamos proceder para criar a terra?'" ("Livro dos Antigos Desana", Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro/ Organização das Nações Indígenas do Médio Rio Papuri). O padrão é bastante distinto do monólogo bíblico, do qual Haroldo de Campos ofereceu uma bela versão: "E Deus disse/ seja luz/ e foi luz" ("Bere'Shith", ed. Perspectiva).

Onde colocamos a autoridade, os pensamentos ameríndios postulam a alteridade e a multiplicidade

Xamanismo
As mitologias ameríndias pressupõem essas multiplicidades originárias, a partir das quais surgem espíritos e outras entidades. As multiplicidades a que se referem os mitos não se encerram em um passado inacessível, no qual Deus exerce à distância sua autoridade soberana. É por aí que se encaminha uma (necessária e contemporânea) compreensão do que se chama de "xamanismo", esse termo tão desgastado pelos misticismos e psicodelias new age de plantão, mas que a rigor nada com eles tem a ver.
O xamanismo consiste justamente na tarefa de transportar o tempo mítico para a atualidade, de realizar o trânsito entre o fundo transformacional dos espíritos e a vida social nas aldeias e cidades da floresta. "Espíritos" são sobretudo (e antes de tudo) pessoas: nas traduções aqui mencionadas, vemos que surgem já como participantes de uma interlocução "humana", em muito similar à que se encontra nas praças centrais ou nas malocas amazônicas. O problema dos xamãs amazônicos é, pois, o de mediar e traduzir a multiplicidade inesgotável de pessoas e coletivos invisíveis (os espíritos) que vivem em paralelo à sociedade dos vivos.
Surge daí uma condição especial do discurso, da enunciação, da autoria, da criação. Onde colocamos a autoridade, os pensamentos ameríndios postulam a alteridade e a multiplicidade. Para compreendê-los, é necessário deslocar a matriz do processo de criação para outro plano que o do ego, do sujeito autocentrado, da autoria individual e fechada. Algo na direção do que disse Eduardo Viveiros de Castro em uma frase dedicada ao pensamento de Lévi-Strauss: "O criador não como sujeito ou substância, mas como pura relação -intermediário, veículo, laço, mediador, transmissor".
Faz-se necessária uma reavaliação de pressupostos para que se possam compreender as produções de sentido e as práticas sociopolíticas cada vez mais presentes na Amazônia e no Brasil. Os povos indígenas falam outras línguas, imaginam outras literaturas, têm outras matrizes de pensamento, colocam-se na arena pública a partir de outras (e ainda ignoradas) premissas. Os conhecimentos xamanísticos têm mesmo muito a ver com a proliferação de redes do mundo digitalizado, ou seja, com a quebra das verticalizações reguladoras via multiplicação intensiva de conexões e descentramento da figura do autor/criador. Os traços particulares de suas poéticas e demais expressões estéticas compõem um vigoroso panorama intelectual com o qual uma interlocução não é apenas possível, mas desejável.


PEDRO DE NIEMEYER CESARINO é doutor em antropologia pelo Museu Nacional (UFRJ) e coeditor da revista literária "Azougue".


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