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Poética indígena desafia concepções usuais de gênero e leitura
SÉRGIO MEDEIROS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Entre citações da "Fenomenologia do Espírito" de Hegel e
"recriações" da poesia zen, Haroldo de
Campos incluiu, no livro "Crisantempo" (ed. Perspectiva,
1998), suas breves traduções
de textos náhuatl. Ele não conhecia o náhuatl, mas teve
acesso a uma transcrição fonética dos originais e, a partir
desse dado e de outras informações, propôs uma amostra
de poesia ameríndia em português, que situou entre a
poesia concreta e a letra de
bossa nova.
Essa relação entre visualidade e canto, ou oralidade, é
interessante, e poderá ser levada avante, acredito, por outros tradutores de obras indígenas neste novo século.
Diante de um poema indígena, seja ele oral ou escrito,
certas concepções tradicionais de literatura e poesia poderão se mostrar tímidas ou
limitadas. Um épico como o
"Popol Vuh" (ed. Iluminuras,
2007), por exemplo, que reivindica um direito local e funciona como "título" (documento que dá autenticidade a
um benefício ou privilégio,
solicitado pelo autor), põe em
xeque a tradicional noção de
gênero, pois é, ao mesmo
tempo, mito, história, ciência,
devaneio... Tampouco a distinção entre poesia e prosaísmo é válida, visto que um texto indígena, seja ele o "Popol
Vuh" ou "O Manuscrito de
Huarochiri", cosmogonia andina, "resiste" a certas categorias que enquadram a produção literária num gênero único ou homogêneo.
Muitos textos autóctones
são um desafio à crítica literária, e a primeira dificuldade
teórica consiste em esclarecer (desde que isso seja possível) onde "começa" um texto
indígena. Ou seja, em que lugar, em que espaço ele nasce,
para usar as palavras de
Christophe Bident, quando
começa a ser reconhecido pelo leitor?
Sua origem estaria num
certo uso da língua ou num
tema? Ou no fato de ter sido
traduzido e inspirado um
grande escritor, como Mário
de Andrade ou Guimarães
Rosa, que, sabemos, reelaboraram livremente temas indígenas? Ou o texto seria, antes
de tudo, um documento antropológico, porém não apenas isso? Como ensinou Maurice Blanchot, a resposta é a desgraça da questão. Qualquer tentativa de "domesticar" o texto indígena, encontrando para ele uma origem
única, poderá escamotear
suas muitas possibilidades de
leitura, desperdiçando o leitor (ou ouvinte) parte da riqueza estética, filosófica e política que lhe é intrínseca.
Segundo Jean-Luc Nancy, a
poesia não coincide consigo
mesma, pois é por natureza
mais do que poesia e também
outra coisa. Diria que essa
mesma "impropriedade substancial" define a literatura indígena, que nunca é simples
nem menos ambígua que as
outras, e obriga teóricos e tradutores brasileiros a refletir
cada vez mais, à medida em
que se dão conta de que ela
existe, embora banida da história oficial da literatura brasileira, sobre os modelos mitográficos ocidentais, usados
para pôr em circulação a arte
verbal dos povos indígenas.
Cada modelo mitográfico
propõe, de uma perspectiva
que lhe é própria, a melhor
maneira de coletar, transcrever e traduzir um texto indígena. Entre outros especialistas de relevo nessa área, gostaria de citar Munro Edmonson, que descobriu, como afirma Gordon Brotherston, a estruturação em versos do "Popol Vuh" original. A partir de
Edmonson, podemos relacionar a espiga de milho (o homem ameríndio provém dela), ou as várias carreiras paralelas de grãos, contadas
duas a duas, tanto com os
dentes da boca do narrador
maia quanto com os dísticos
do poema que ele narra e recompõe a cada performance.
Ao lado desse modelo mitográfico, ou poético, podemos
citar outros. A prosa, segundo
Dennis Tedlock, é uma invenção tipográfica e, como tal, só
existe no papel. Um mito, para Dell Hymes, seria mais eficazmente traduzido para uma
língua ocidental se o tradutor
adotasse, como modelo, o
drama em versos, dividido em
atos, cenas e estrofes.
Nossos escritores também
transcreveram e recriaram
mitos e cantos indígenas, como o já citado Haroldo de
Campos, e anteciparam-se a
teóricos e críticos -estes não
absorvem tão rápido a "novidade"- no interesse pelos relatos e poemas de povos ágrafos ou não (os maias possuíam escrita, à diferença de
outros do nosso continente).
Um caso exemplar é o do
poeta maranhense Joaquim
de Sousândrade, que, no século 19, recorreu ao multilinguismo, entre outros recursos
igualmente inovadores, para
incorporar o elemento indígena amazônico ao seu poema épico "O Guesa", dividido
em 13 cantos.
Um desdobramento recente e inesperado desse bilinguismo é o chamado "portunhol selvagem" de Douglas
Diegues, poeta que utiliza simultaneamente o português
e o espanhol, mesclando ambos com o guarani e compondo, assim, textos radicalmente híbridos, como o fizera
Sousândrade.
SÉRGIO MEDEIROS é poeta e professor de literatura na UFSC (Universidade Federal de
Santa Catarina). Traduziu o poema maia "Popol Vuh" (ed. Iluminuras).
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