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As tramas de Poe
Escritor norte-americano, cujo bicentenário de
nascimento se comemora amanhã, abriu caminho
para o leitor moderno -a quem é preciso ao mesmo
tempo capturar e manter desconfiado- e para o seu
respectivo autor -que concebe a própria vida como obra
LUÍS AUGUSTO FISCHER
ESPECIAL PARA A FOLHA
Tem um Poe para o
gosto de cada tipo de
leitor moderno: tem o
policial de certos contos, o racionalista dos
comentários, o filosófico amalucado de "Eureka", o frio e calculista da "Filosofia da Composição", o psicanalítico de outros
contos, até o sensacionalista
das polêmicas, além do herói
romântico de vida errática e intensa. A 200 anos de seu nascimento, essas facetas estão cada
vez mais nítidas, numa obra
nunca totalmente traduzida
para o português, que soma milhares de páginas repletas de
interesse, por qualquer desses
lados. Não custa aumentar a
lista com mais este: morreu
com apenas 40 anos, e em circunstâncias ainda hoje não esclarecidas.
Morrer aos 40 quer dizer o
seguinte: se Machado de Assis
houvesse morrido nessa idade,
não teria escrito nada a partir
das "Memórias Póstumas de
Brás Cubas" e do primeiro volume de seus contos excelentes, "Papéis Avulsos", e isso inclui nada menos que todos os
seus maiores romances e contos; se Jorge Luis Borges tivesse morrido aos 40, não teria
publicado nem mesmo "Ficciones" e "El Aleph", quer dizer,
nada do que produziu de maduro e fez sua fama mundial.
Edgar Allan Poe nasceu em
Boston, Massachusetts, em
1809, e faleceu em Baltimore,
Maryland, em 1849. Perdeu pai
e mãe, ambos atores itinerantes, aos dois anos de idade; foi
criado por um comerciante rico (de quem incorporou o sobrenome Allan), com quem teria relações conflituosas na juventude. Viveu a meninice na
Inglaterra, entre 1815 e 1820,
estudando na antiga metrópole
de seu jovem país.
Destacou-se nos estudos,
mas não cursou senão um ano
na universidade, de volta aos
EUA. Foi soldado e chegou a
entrar na academia de West
Point; mas seu temperamento
e seu comportamento (endividou-se com jogo, bebia muito)
o impediram de seguir carreira
militar. Viveu sua vida adulta
com grandes dificuldades econômicas (seu pai adotivo não
lhe legou nada), sempre trabalhando em jornais e revistas; e
tinha desde cedo a convicção,
várias vezes expressa, de ser
um gênio.
Lembrar Machado e Borges
como termos de comparação
não tem nada de gratuito. O incomparável escritor brasileiro
(1839-1908) cita Poe desde
1866; cita-o poucas vezes, mas
o suficiente para expor sua proximidade com aspectos centrais da criação de Poe, além de
sua tradução de "O Corvo",
poema-símbolo do escritor
norte-americano.
Borges (1899-1986), então,
nem se fala: cita-o inúmeras
vezes, escreve analiticamente
sobre ele, identifica-o como um
ponto de apoio para suas concepções de arte. Em certo momento, dirá que foi Poe quem
inventou o leitor moderno, o
leitor desconfiado a quem é
preciso ao mesmo tempo convencer (atingindo a famosa
"suspension of disbelief", que
Poe aprendeu com seu mestre-mor, o poeta e ensaísta S.T. Coleridge) e manter tenso, manipulando as frágeis linhas da palavra escrita.
Não foi Poe o único inventor
desse novo leitor, claro; certamente teve o grande auxílio de
outro gênio, agora francês, não
por acaso seu leitor fiel, Charles Baudelaire, tradutor de Poe
para a grande língua de cultura
letrada do século 19 ainda nos
anos 1850, e responsável, por
isso, pela enorme divulgação de
sua obra Ocidente afora. Foi
Baudelaire que formulou o
problema, com carinho e rispidez simultâneas, no sintético
verso que resume a filosofia
moderna do tema: "Leitor hipócrita, meu semelhante, meu
irmão".
Poe não foi tão longe no juízo
sobre o novo leitor, mas abriu o
caminho. Sua já mencionada
"Filosofia da Composição"
(1846) anuncia a tese-síntese
da literatura que quer capturar
o leitor -escrever tendo em
vista um efeito previamente
deliberado, o que exclui o espontaneísmo e a intuição-,
aquele leitor que já não vive
nos palácios e sim na rua, que
não é o aristocrata vivendo da
renda da terra e, portanto,
ocioso, mas sim o burguês correndo atrás da grana, com tempo curto. Pelo mesmo caminho, Poe defendeu o conto contra o romance, como um sinal
dos tempos, não como decadência, sendo nisso um pragmático; mas não levava livre o
mau gosto da burguesia de seu
tempo, tendo-a mesmo atacado num texto de grande originalidade, a "Filosofia do Mobiliário".
Tudo isso aparece pela primeira vez claramente em sua
obra, mas ele segue os passos
de certa família de ensaístas
que já se preocupava com estes
temas -o papel do leitor, a irrelevância da literatura que
não fala diretamente ao leitor,
assim como a importância do
autoexame público por parte
de quem escreve, o que inclui a
revelação de bastidores da concepção. Quem antes dele? A linhagem recua pelo menos a
Montaigne, citado em interessante passagem de sua "Marginália", coletânea de palpites,
reflexões rápidas, confissões,
crítica social e filosofia, e certamente passa pelos ensaístas ingleses do século 18. Gente do tipo que simultaneamente sabe
de sua condição crítica superior -"Para apreciar completamente uma obra de gênio é
mister possuir toda a superioridade que serviu para produzi-la", anota Poe- e sabe das
imensas dificuldades de levar a
cabo uma obra exigente.
Entre fato e ficção
Talvez por isso, e dadas as
condições objetivas de sua vida,
Poe inventou outra modalidade de autodivulgação: a mistificação. Por intuição ou por cálculo, ele se promovia como se
soubesse que o artista moderno
é sua obra e ele mesmo, neste
mundo-celebridade. Certa vez,
mentiu (por escrito) sobre suas
experiências, dizendo, numa
autoapresentação para uma
antologia de poesia, que muito
jovem havia se dirigido à Grécia, para lutar pela independência daquele berço do Ocidente (como Byron), mas no
caminho acabara desviando para a Rússia, onde teria vivido intensas experiências. Tudo
mentira -mas dava charme.
Essa estratégia de ultrapassagem entre fato e ficção rendeu bem, em termos artísticos:
em várias passagens de sua
obra contística vamos encontrar alegações de realidade
(manuscrito encontrado pelo
autor, por exemplo), assim como na obra ensaística haverá
momentos de pura ficção (como na carta reproduzida no ensaio "Eureka", datada de
2848!). Como tantos depois,
Poe borrou os limites entre gêneros, padrões literários, estatutos ontológicos.
Que ele seja mais famoso pelo lado gótico, enigmático e histriônico não estranha, porque
isso também existe em sua
obra; como Baudelaire, ele
também foi revelado ao leitor
brasileiro mais pelos aspectos
gritantes e menos pela vigorosa
dimensão crítica. Mas aí estão
grandes leitores, como Freud e
Lacan, a mostrar que aquele interesse artístico de Poe nos mecanismos do sonho e da fantasia prenunciava o caminho futuro da arte, caminho não por
acaso balizado, não custa lembrar, pela lógica profunda do
capitalismo, que seu país se
preparava para liderar. Mas
Poe não é profeta trivial; como
outros românticos destemperados e tocados pelo senso da
originalidade -me ocorrem
dois exemplos desiguais mas
não aleatórios, Glauber Rocha e
Qorpo-Santo-, sua obra diz
mais do que ele intentou, e por
isso continua viva.
LUÍS AUGUSTO FISCHER , professor de literatura na UFRGS (Universidade Federal do Rio
Grande do Sul), é autor de "Machado e Borges"
(ed. Arquipélago), entre outros.
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