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Totem e tabu
Em clássico
dos estudos
da religião, Mircea Eliade
trata mitologia
como fenômeno
a-histórico
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PAULA MONTERO
ESPECIAL PARA A FOLHA
História das Crenças
e das Ideias Religiosas", relançado
pela Zahar 30 anos
depois de sua primeira publicação em português em uma edição revisada, é
a primeira parte de uma obra
monumental em três volumes
do historiador romeno Mircea
Eliade (1907-86).
Ele refaz a cronologia das diferentes manifestações religiosas nas sociedades humanas
desde o homem da Pré-História até o surgimento do culto a
Dionísio na Grécia, passando
pelas ideias religiosas do Egito,
de Israel, do Irã e dos rituais
védicos na Índia antes de Buda.
Nesse sentido não se pode
negar que se trata de uma obra
de referência, embora de difícil
leitura. A erudição, o vasto escopo de tempo e de culturas
que percorre e o extenso volume de documentos e autores,
cujas ideias sintetiza e analisa
criticamente, tornam este livro
presença obrigatória na estante dos estudiosos dos fenômenos religiosos.
Apesar de sua formação intelectual de filósofo, Eliade ficou
mais conhecido como professor de história comparada das
religiões. Sua obra pode ser definida como uma tentativa de
compreender a variedade das
formas religiosas através dos
tempos e das culturas por meio
de uma perspectiva universal.
Para realizar tal proeza, o autor parte do pressuposto da
unidade fundamental dos fenômenos religiosos. Mais ainda, para ele o sagrado é um elemento da estrutura profunda e
indivisível do espírito humano,
e não uma fase particular na
história da consciência. Desse
modo, o ser humano é, necessariamente, ser religioso.
Mas o sagrado em Eliade não
implica a crença em Deus ou
em espíritos superiores. A inovação de sua abordagem reside
em conceber o sagrado como o
objeto intencional da experiência humana, como fonte de toda significação que dá ao homem consciência de existir no
mundo. A religião, como experiência do sagrado, revela o
mundo. A hierofania, manifestação física do sagrado, se manifesta frequentemente na história por meio de símbolos, mitos e rituais.
Em seus trabalhos anteriores, o autor procurou descrever
a morfologia dessas manifestações: o modo como a expressão
do sagrado cria o simbolismo
do centro, como os rituais
põem em evidência a não homogeneidade do espaço, como
os mitos da criação referem-se
ao sacrifício, essa violência primordial que tem o poder de
animar o mundo.
Já neste trabalho, de sua fase
madura, ele examina as diferenças na experiência religiosa
que se explicam pela história: a
intenção escatológica do sacrifício no zoroastrismo, os ritos
funerários e as mitologias da
morte no Irã, o mito central de
Indra, que narra seu combate
vitorioso contra o dragão Vrtra,
que retinha as águas no oco da
montanha, etc.
Salvação
Para Eliade os mitos tratam
do sofrimento imposto aos homens pela história. A questão
do mal é colocada, portanto,
não no plano filosófico da condição humana: trata-se de combater o mal inscrito na própria
atividade humana. Cada herói
repete o gesto arquetípico da
luta primeira entre o bem e o
mal. É graças a essa concepção
mítica que o homem pode suportar as grandes pressões da
história sem se desesperar.
Essa defesa do tempo mítico
como libertador das angústias
do ser humano ameaçado pelas
contingências do mundo dá um
caráter soteriológico -parte da
teologia que trata da salvação
do homem- a sua abordagem.
A ruptura do círculo mágico
do eterno retorno promovida
pela invenção da história seria,
para o autor, a fonte de todas as
infelicidades humanas. Nesse
sentido, sua abordagem fenomenológica das hierofanias,
inspirada no teólogo protestante alemão Rudolf Otto [1869-1937], se quer um combate crítico contra a desmistificação
moderna do sagrado.
As análises que explicam o
religioso pela psiquiatria, pela
sociologia ou pela antropologia
reduziriam, segundo ele, os fatos religiosos a fenômenos de
outra ordem. A história das religiões de Mircea Eliade tem
como fim a possibilidade de
transformar a condição humana pela anulação da história.
Embora não se possa deixar
de reconhecer a influência capital deste autor e de sua obra
no campo da história das religiões, a maior parte de seus críticos aponta para a fragilidade
acadêmica de seu trabalho de
historiador, que postula a existência de um plano transcendente e a-histórico do sagrado.
A admissão da historicidade
dos mitos, enquanto atualizações do sagrado no mundo por
meio das hierofanias e dos ritos, foi sem dúvida uma revolução para os pensadores católicos, que os consideravam até
recentemente uma realidade
típica do paganismo.
No entanto, a ampla aceitação de sua obra por teólogos,
missionários e religiosos de toda sorte indicam que as teses de
Eliade relativas à universalidade dos mitos e dos comportamentos simbólicos deixaram
de ser questões intelectualmente instigantes para a antropologia contemporânea e se
tornaram um manual do misticismo do presente.
PAULA MONTERO é professora titular de antropologia na USP e coorganizadora do livro "Retrato de Grupo" (Cosac Naify).
HISTÓRIA DAS CRENÇAS E DAS
IDEIAS RELIGIOSAS
Autor: Mircea Eliade
Tradução: Roberto Cortes de Lacerda
Editora: Zahar (tel. 0/ xx/21/2108-0808)
Quanto: R$ 49 (440 págs., volume 1)
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