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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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MARCELO DASCAL

[ISRAEL]

1. Antes de deixar o Brasil eu era assistente no departamento de filosofia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (no saudoso edifício da rua Maria Antonia), dava aulas em cursinhos e cheguei a trabalhar um pouco como engenheiro eletrônico (em via de graduação) em uma fábrica de semicondutores.

2. Fui embora do Brasil por várias razões: depois do golpe de 1964, os militares começaram um processo de intervenção na universidade, visando sistematicamente aos professores "marxistas" (como João Cruz Costa, de quem eu era assistente), o que punha em perigo a perspectiva de uma carreira universitária; obtive uma bolsa do governo francês para continuar meus estudos e decidi participar ativamente na construção de uma sociedade moderna, democrática e justa no Estado de Israel.

3. Não só Carnaval e futebol (aliás, a torcida israelense é fanaticamente "brasileira", o que me faz sentir "em casa" nas Copas do Mundo). Há também capoeira (com muitos cursos por todo o país), as novelas brasileiras na TV, música popular brasileira (os shows de cantores brasileiros são extremamente populares, e há vários cantores israelenses que cantam música brasileira em hebraico). Também a literatura, história e política brasileiras são conhecidas, estudadas e apreciadas. Eu mesmo traduzi para o hebraico uma coleção de contos dos melhores autores brasileiros, e há muitas outras traduções. Temos na Universidade de Tel Aviv um centro de estudos latino-americanos, em que o Brasil está longe de ser marginalizado. E há também uma apreciação pela inovação política que representa a ascensão democrática de um partido novo e genuinamente popular como o PT e pela eleição de Lula para presidente. Em boa parte, a afeição da população de Israel pelo Brasil deriva, eu acho, do fato de que muitos jovens costumam fazer um longo passeio pela América Latina (especialmente pelo Brasil) depois do seu serviço militar.

4. No Brasil, a vida universitária continua sendo errática, pois salários e condições de pesquisa continuam variando imprevisivelmente de um momento a outro. Quando voltei pela primeira vez para o Brasil depois de dez anos de ausência, a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) oferecia condições de nível internacional e, sobretudo, uma ideologia de universidade de vanguarda. Mas isso se deteriorou com o passar dos anos. Em Israel, havia (uso o passado, infelizmente, em decorrência do governo atual, de seus gastos militares imensos devidos à luta armada, em vez da negociação política com os palestinos) um apoio sistemático e estável às universidades. As condições de trabalho e de pesquisa sempre foram (e acho que ainda são) melhores do que nas universidades brasileiras. E, como consequência disso, também os resultados. É comum, por exemplo, encontrar em congressos internacionais mais cientistas de Israel que do Brasil ou do resto da América Latina. Isso é uma pena, porque o potencial intelectual do Brasil, a meu ver, é imenso e imensamente subaproveitado.

5. Não disponho das informações necessárias a respeito do que está sendo feito hoje em dia no Brasil em minhas áreas de trabalho para fazer uma comparação detalhada. Estou a par de muitos trabalhos excelentes no Brasil em ciências cognitivas, filosofia da ciência e da linguagem, linguística teórica e linguística aplicada etc. que, em muitos casos, se equiparam ou são melhores do que o que se faz em Israel. Mas temo que meus vínculos pessoais com os pesquisadores brasileiros, naturalmente seletivos, podem pintar um quadro mais róseo do que a realidade. Em todo o caso, o grande problema da pesquisa brasileira nessas e em outras áreas continua sendo sua falta de exposição a um público internacional. Em Israel não temos alternativa, pois publicar em hebraico não é suficiente para avançar na carreira universitária. O Brasil deveria adotar uma política que force o pesquisador brasileiro a sair do seu ninho protetor local e confrontar seu trabalho com a crítica internacional -única forma de deixar de reinventar em português aquilo que já foi inventado alhures.

6. Infelizmente, devo dizer que sim. Não se trata de discriminação ou marginalização pelo fato de ser brasileiro, porém. Trata-se de uma dificuldade (talvez natural) que tem um "novo imigrante" em penetrar na "elite" da sociedade local, que controla as posições de poder. Essa elite é constituída por pessoas que estudaram juntas na escola, que fizeram o serviço militar juntas, que pertencem ao mesmo partido político etc. e que se apóiam mutuamente. Tive a oportunidade de sentir esse tipo de hostilidade quando fui eleito diretor da Faculdade de Ciências Humanas. Cheguei mesmo a ouvir expressões como "a máfia latino-americana em nossa faculdade", quando somos nada mais que dois professores titulares de procedência latino-americana. Mas, verdade seja dita, trata-se de uma hostilidade proveniente dos que estavam habituados ao poder e não se conformavam em perdê-lo. A maioria não só me elegeu, mas também me apoiou e continua apoiando as reformas que instituí em minha gestão.

7. Em um ou outro momento difícil, pensei em voltar ao Brasil, mas abandonei a idéia. Minhas filhas e netos nasceram em Israel e aí vivem. E não penso em deixá-los. A vida não é fácil, mas por isso mesmo representa para mim um desafio contínuo, que lhe confere uma significação especial. A sociedade democrática e justa, com cuja construção eu pretendia contribuir ao chegar a Israel, tem sofrido perigosas mudanças com o passar dos anos. Mas ainda é uma sociedade na qual cada cidadão, e especialmente os intelectuais, tem a possibilidade de fazer-se ouvir, de atuar publicamente e de, dessa forma, contribuir para encaminhá-la para rumos melhores. Tendo uma certa visibilidade pública, por ser Israel um país relativamente pequeno, acho que consigo (ou será talvez ilusão minha?) ter uma pequena influência nesse sentido. Não acho que, caso voltasse ao Brasil, poderia gozar de um privilégio (e responsabilidade) semelhante. Isso não significa que muitas vezes não sinta saudades. Mas prefiro matá-las pelo contato com minha família, meus colegas, meus amigos e com as visitas mais ou menos regulares que faço ao Brasil.


O grande problema da pesquisa brasileira é sua falta de exposição a um público internacional


Filósofo, 62
Universidade de Tel Aviv
Deixou o Brasil em: 1964
Principais obras: "Conhecimento, Linguagem e Ideologia" (ed. Perspectiva), "Pragmatics and the Philosophy of Mind I -Thought in Language" (John Benjamins Publishing, EUA) e "La Semiologie de Leibniz" (Aubier, França)



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