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A vida breve
Reprodução
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Cena do filme "Blow Up" de Michelangelo Antonioni, passado em Londres no final dos anos 60 |
Mario Vargas Llosa fala das revoluções da Paris existencialista e da "swinging London", cenários do recente "Travessuras de uma Menina Má", se diz decepcionado com a política e explica sua passagem do marxismo ao liberalismo
JUAN CRUZ
Mario Vargas Llosa, autor de
"Conversa na
Catedral" -romance protagonizado por Zavalita, em quem
sempre enxergamos o próprio
Mario quando era jovem jornalista-, completou 70 anos de
idade no último 28 de março.
Nesse dia ele estava no Peru,
casando sua filha Morgana, que
nasceu em Barcelona na época
feliz do boom da literatura hispano-americana.
Pouco tempo depois, iria lançar seu novo romance "Travessuras de uma Menina Má" [leia
resenha na pág. 7].
Sempre se vê Mario como se
ainda fosse Zavalita: juvenil,
atlético, trabalhador, interessado em tudo o que acontece
em sua casa e em todo o mundo; desajeitado com as máquinas, mas agilíssimo com a literatura e o jornalismo, ainda ousa viajar a todos os lugares em
conflito (Iraque, Palestina) ou
se aventurar por geografias e
personagens remotos (Gauguin, Polinésia) para cumprir
tarefas narrativas ou jornalísticas que não podem ser desempenhadas de um escritório.
É reservado, com certeza;
não anda por aí fazendo alarde
nem de suas dores nem de seus
pesadelos, mas já escreveu alguns livros relacionados a seu
passado (com sua tia Julia, seus
pais, sua infância, sua adolescência) e, em algum momento
de sua vida (refletida sobretudo em "Peixe na Água", seu livro mais privado), tomou nota
da pontada da desolação.
Há 16 anos, quando perdeu
as eleições para a presidência
do Peru, Vargas Llosa foi a Paris, o lugar de seus sonhos juvenis, para se recuperar de uma
campanha que acabou sendo
dolorosa e frustrante -ele
emagrecera mais de dez quilos.
Ele apareceu nos lugares pelos quais sempre andou (as
proximidades da editora Gallimard, sua casa parisiense
-além disso, próxima do apartamento que possui ali), tomou
café no Les Deux Magots e se
dispôs a refazer sua vida literária, interrompida pela política.
Aquele foi um momento especialmente doloroso para esse
escritor de Arequipa, o autor
muito jovem que saltou de um
quarto de estudante em Madri
ou Paris para a fama literária
com um romance que ainda
hoje se lê como excepcional,
espécie de punhalada na barriga das convenções literárias da
época: "A Cidade e os Cachorros", publicado em 1963.
Muitas décadas se passaram,
e agora aquele jovem que irrompeu na literatura daquele
modo e que percorreu o mundo
divulgando seus livros e contando suas idéias -que também variaram do marxismo ao
liberalismo, fato que atraiu sobre ele as críticas dos ortodoxos e também dos heterodoxos- completa 70 anos.
Tivemos esta conversa com
Vargas Llosa em Madri, onde
mora, diante de uma foto que
nos levou ao colégio militar
Leoncio Prado, de Lima, onde
Mario foi interno, e onde acontece "A Cidade e os Cachorros".
Anos atrás, quando [o ex-presidente peruano Alberto]
Fujimori estava no poder, Mario foi com alguns amigos visitar esse centro de tão sombrias
ressonâncias romanescas, e os
amigos não o deixaram passar.
Há pouco, porém, ele foi de
novo, "e dessa vez pude entrar.
Fui com dois amigos. Quando
estávamos andando pelo colégio, apareceu o diretor, um coronel, que fez as vezes de guia.
Depois apareceu um tenente:
queria que eu fizesse um discurso para os cadetes. Por acaso você me vê fazendo um discurso para aqueles cadetes, que
eram uns meninos? Pois eram
como eu deveria ser na época
que recordo em "A Cidade e os
Cachorros'".
PERGUNTA - Afetivamente, como
foi, para o sr., estar ali?
MARIO VARGAS LLOSA - Não pude
opor resistência ao internato
-eu sentia um desejo espantoso de sair à rua. A disciplina militar, algo que eu odiava, representava um pouco o autoritarismo paterno.
E, embora tenha sofrido ali, o
fato é que o Leoncio Prado me
ensinou muitas coisas. Mostrou-me o país no qual tinha
nascido, que não era a vida protegida da classe média de Miraflores, mas um Peru que era um
canteiro de obras em ebulição;
o país de todas as raças, de todas as culturas que não se comunicavam entre elas.
E descobri a violência nas relações humanas, coisas que depois se tornariam temas obsessivos e recorrentes em tudo o
que escrevi. Esses dois anos me
marcaram de maneira definitiva. É provável que, depois da
relação com meu pai, a experiência no colégio tenha sido a
mais decisiva de minha vida.
PERGUNTA - Por que o mandaram
para lá?
VARGAS LLOSA - Meu pai pensou
que seria um antídoto contra a
literatura. E, curiosamente, no
Leoncio Prado eu li mais do que
em qualquer outro lugar. Aquela vida enclausurada obrigava
você a fazer alguma coisa para
não se entediar, e, como a leitura me apaixonava, li toda a obra
de Dumas; li também "Os Miseráveis", de Victor Hugo...
"Os Miseráveis" foi provavelmente uma de minhas grandes
leituras de menino. E depois,
de maneira completamente
inesperada, comecei a praticar
a literatura de forma quase profissional, escrevendo cartas de
amor encomendadas por meus
colegas. Eu também escrevia
pequenas novelas pornográficas, que vendia em troca de cigarros. Assim me converti em
escritor profissional.
PERGUNTA - E dali nasceu "A Cidade e os Cachorros"?
VARGAS LLOSA - Sim, todas as expectativas de meu pai se viram
frustradas, porque o colégio fez
de mim um grande leitor e me
ajudou a me transformar em
escritor e deu o tema para escrever meu primeiro romance.
PERGUNTA - Seu pai foi cruel assim?
VARGAS LLOSA - Não sei se foi
crueldade sua ou se eu era um
menino muito mimado por
meus avós, por meus tios; era o
menino sem pai. Minha mãe
era uma mulher divorciada,
abandonada por seu marido.
Era uma família muito conservadora, católica; me disseram que meu pai havia morrido, não podiam dizer que minha mãe estava divorciada. Toda essa proteção acabou quando fui viver com meu pai, quando eles refizeram seu casamento; desde o primeiro momento,
ele impôs sua autoridade e,
além disso, não tentou me conquistar nem ser carinhoso.
PERGUNTA - Um pesadelo...
VARGAS LLOSA - O fato de ter um
filho poeta o enchia de vergonha: um filho boêmio, um daqueles que andam pelos cafés,
um personagem um tanto ridículo! Ler era a salvação. A verdadeira vida não era nem a rotina nem o medo, mas sim o que
estava nos livros.
PERGUNTA - "Peixe na Água" deve
ter lhe ajudado a explicar seu trauma de infância...
VARGAS LLOSA - Esse livro era
para ser uma memória de minha atividade política, para explicar a mim mesmo o que
aconteceu durante os três anos
de experiência como candidato
à Presidência do Peru.
Mas em muito pouco tempo
me dei conta de que iria dar
uma impressão muito distorcida e inexata do que sou, porque
a parte principal de minha vida
não é ocupada pela política,
mas pela literatura.
E isso me deu a idéia de fazer
um contraponto: por um lado, a
experiência política, e por outro, o relato de minha infância e
juventude, quando nasce minha vocação literária. Veja
bem, o livro conclui com essas
duas partidas: a partida para a
Europa, para me tornar escritor, e a partida para a Europa
depois da campanha eleitoral.
PERGUNTA - Trata-se do símbolo de
uma vida?
VARGAS LLOSA - Quando eu era
adolescente e descobri minha
vocação, a política era quase inseparável da literatura. Eu era
um sartriano apaixonado, acreditava na lenda de que, por
meio da literatura, se podia
mudar a história. Mas a política
nunca tomou o lugar da literatura. Mesmo nos anos em que
fui candidato, sempre tive presente a idéia de que iria retornar à literatura, que aquilo era
transitório.
Hoje acredito, como acreditava quando jovem, que a literatura pode ser uma arma política. Não acredito que a literatura seja algo distanciado da sociedade. Sem ela, eu seria uma
pessoa muito menos imaginativa, com um senso crítico menos
desenvolvido e com uma visão
das coisas mais medíocre do
que a que tenho.
PERGUNTA - O sr. acaba de publicar
"Travessuras de uma Menina Má",
no qual as cidades guardam relação
com sua própria história.
VARGAS LLOSA - Sim, se passa nas
cidades onde vivi. A história em
si não existiu, mas os lugares
são os meus: o Peru quando eu
era pequeno, Paris nos anos
1960, Londres nos 1970, a Espanha nos 1980.
PERGUNTA - Longe do ensaio e da
novela histórica, o senhor volta à ficção autobiográfica.
VARGAS LLOSA - Sim, este é um
romance que eu queria escrever havia muito tempo. É uma
história de amor, um amor moderno, condicionado pelo mundo em que vivemos e que está
muito mais próximo da realidade que os amores românticos
da literatura.
O amor se estende ao longo
de 40 anos e também serve para fazer uma espécie de grande
afresco de um universo que
mudou extraordinariamente.
Se você pensar o que é o
mundo para essas crianças dos
anos 50, da primeira história do
romance ou o que é o bairro de
Lavapiés na Madri do fim dos
anos 80, as transformações são
prodigiosas.
PERGUNTA - Paris era nos anos 60 o
epicentro de todas as ideologias.
VARGAS LLOSA - Foi o grande
centro de comunicações da revolução internacional. No romance utilizo material histórico do que foi o movimento
guerrilheiro no Peru, o grande
fracasso da primeira tentativa
revolucionária séria que foi o
Movimento de Esquerda Revolucionária, o MIR.
Em Londres, foi uma revolução
dos sentidos;
ao mesmo tempo,
foi uma revolução
de filhinhos
de papai
|
E também descrevo o que é
esse clima em que a utopia revolucionária se propagou de
forma generalizada, como Paris
se transformou no centro que
exportava as idéias, os mitos e
as fantasias da revolução e também o fracasso de tudo isso.
PERGUNTA - E da experiência revolucionária de Paris para outro tipo
de revolução, a que seu protagonista -e o senhor, na vida real- vive
em Londres. O pacifismo hedonista
e anárquico dos hippies o seduziu?
VARGAS LLOSA - A vida me deu a
oportunidade de viver as duas
coisas. Minha mudança para
Londres coincidiu com a época
da "swinging London". Além
disso, caí no bairro que descrevo muito no romance, Earl's
Court, na época em que era o
coração desse movimento. A
mudança foi radical em relação
a Paris, cidade de onde vinha.
Em Londres, a ideologia foi
substituída pela mitologia da
droga e a revolução da vestimenta, como um instrumento
de libertação extraordinário.
Ao invés de uma atitude beligerante, de querer mudar o
mundo por meio das guerrilhas
e da revolução, encontrei a atitude contemplativa dos hippies, a revolução psicodélica
por meio da expansão da sensibilidade. Uma revolução total e
bonita que não vivi de dentro,
mas de fora, com um olhar muito benévolo, porque havia algo
de inocente e idealista.
Foi uma revolução estética: a
vestimenta, a música, o modo
de vida, os costumes, uma revolução dos sentidos que produziu uma liberação de costumes
indiscutível. Ao mesmo tempo,
foi uma revolução muito limitada, uma revolução de filhinhos de papai, mas com uma
repercussão extraordinária na
Europa e no mundo.
PERGUNTA - Falando dos aspectos
positivos, quais foram as contribuições das duas revoluções?
VARGAS LLOSA - Creio que nos
anos 60 o mito da revolução
não só não trouxe nada como
confundiu e contribuiu para a
desvalorização da cultura democrática, que aparecia como
uma cultura desprezível, como
uma máscara de exploração.
Parece que a felicidade humana só pode vir com o fuzil, a
guerra e a luta de classes. Ao
mesmo tempo, nesses anos
houve pela primeira vez na Europa progressista uma verdadeira descoberta do Terceiro
Mundo e um fascínio por ele.
Ocorreu uma grande identificação entre o progressismo
europeu e o resto de um mundo
que antes não existia para a Europa. Nos campos político, social e cultural, a Europa realmente se abriu para a América
Latina e descobriu os escritores
latino-americanos.
Nos anos 70, a revolução hippie foi sobretudo uma revolução de costumes, muito mais
individualista que social, mas
foi uma revolução que teve alcances planetários, chegou ao
Terceiro Mundo e abalou sociedades nas quais certos temas
nem sequer eram tocados: drogas e sexo eram temas reprimidos e de repente passaram a fazer parte da atualidade.
Creio também que a revolução hippie contribuiu para atenuar as fronteiras, tanto para
os que vivem no Primeiro e no
Terceiro mundos. O verdadeiro
internacionalismo estava ali, os
jovens iam para Katmandu,
mas também vinham de lá para
morar em Londres, e os peruanos iam a Barcelona.
PERGUNTA - O senhor sempre foi
muito bem organizado. Quando começou a escrever, sabia que história
vinha a seguir?
VARGAS LLOSA - Não, nunca. Nos
anos 1950, não havia escritores
em tempo integral. O único escritor em tempo integral que
conheci foi um escritor de radionovelas, que me serviu de
modelo para escrever "Tia Julia
e o Escrivinhador"; escrevia o
dia todo, interpretava, dirigia, e
com isso podia comer.
Os outros escritores trabalhavam como profissionais que,
em seus momentos livres, se
dedicavam à literatura.
Eu pensei que seria isso.
PERGUNTA - Quer dizer que não sabia como seria sua vida?
VARGAS LLOSA - Não. Um momento fundamental foi em
1958, quando estava em Madri
com Julia. Eu disse a ela que, se
me dedicasse a pesquisar na
universidade, a dar aulas, jamais conseguiria terminar o romance que tinha em mãos, que
era "A Cidade e os Cachorros".
Nos anos 60,
o mito
da revolução
contribuiu
para a
desvalorização da cultura democrática, que aparecia como desprezível
|
De modo que eu decidira
procurar trabalhos pequenos,
que não me tomassem muito
tempo, mesmo que tivéssemos
que viver mal. Então Julia, que
era muito solidária, se ofereceu
a trabalhar ela mesma: "Já vamos sair dessa. Você, dedique-se a escrever". Foi uma decisão
psicologicamente muito importante. Viveria muito modestamente, mas me dedicaria à literatura. O resultado foi "A Cidade e os Cachorros".
PERGUNTA - E vocês foram a Paris.
VARGAS LLOSA - E ali vivemos
muito mal por um ano. Julia
conseguiu trabalho antes de
mim, na livraria de um anarquista espanhol, e eu comecei a
recolher jornais em um carrinho de mão. Isso dava o suficiente para comer duas vezes
ao dia. Era uma situação muito
precária, mas eu me sentia absolutamente feliz. Escrevia, lia
e, além disso, estava em Paris.
A sorte me ajudou: o fato de o
livro ter chegado a [o editor]
Carlos Barral, de ter se entusiasmado por ele e tê-lo publicado. Foi a primeira surpresa.
A segunda foi quando, já em
Londres, casado com Patricia e
com dois filhos, me apresentaram à agente Carmen Balcells,
e ela me disse para desistir imediatamente da universidade,
onde dava aulas, e me dedicasse
exclusivamente a escrever.
PERGUNTA - O que o sr. pensou?
VARGAS LLOSA - Fiquei apavorado. Ela me tranquilizou: "Garanto a você o que você ganha
na universidade".
Era 1970. Até então, nunca
me passara pela cabeça dedicar-me apenas a escrever.
PERGUNTA - Enquanto isso, crescia
seu sentimento de compromisso
político.
VARGAS LLOSA - Eu sempre o
sentira. Escrevia sobre política,
participava de atividades políticas; mas era um complemento
ao meu trabalho de escritor.
Quando de fato decidi intervir na política, eu estava no Peru, em 1987, e Alan García [então presidente do Peru, entre
1985 e 1990, e eleito novamente
à Presidência neste mês] anunciou de maneira totalmente
imprevista a decisão de nacionalizar os bancos e as seguradoras. Eu estava convencido de
que isso seria uma catástrofe,
que a democracia iria retroceder. Protestei, sem pensar no
eco público que isso teria.
O protesto cresceu, muita
gente se somou a ele, até que
100 mil pessoas se reuniram na
praça de San Martín. Esse protesto brecou a lei e criou um clima político muito diferente no
Peru. Isso me levou a dar o
grande passo, e aceitei ser candidato à Presidência [em 1990,
sendo derrotado no pleito por
Alberto Fujimori].
PERGUNTA - O senhor foi um esquerdista convicto, até abraçar posições liberais. O que aconteceu?
VARGAS LLOSA - Foi um processo. Estive no Partido Comunista durante um ano, em 1958,
quando estava na universidade.
Eu era leitor voraz de Jean-Paul Sartre, dos existencialistas
franceses. Essa influência me
serviu para contrabalançar o
caráter dogmático do marxismo defendido pelo Partido Comunista peruano e todos os
partidos comunistas latino-americanos.
Nessas reuniões, eu usava argumentos de Sartre contra o
realismo socialista, e foi em
uma dessas discussões que um
companheiro de célula me chamou de subomem. Distanciei-me dos comunistas, mas continuei participando da luta dos
movimentos de esquerda.
PERGUNTA - E depois veio a Revolução Cubana.
VARGAS LLOSA - Parecia que ela
criara aquilo que eu procurava
e que procuravam muitas pessoas de esquerda que, como eu,
rejeitavam o marxismo dogmático. Então comecei a militar
por Cuba na Europa. Fui para
lá, enviado pela radiotelevisão
francesa, na época da crise dos
mísseis; as mudanças já haviam
começado, mas não as vi.
E fui para lá todos os anos até
1966, até que foram criados os
campos de concentração, onde,
ao lado de criminosos comuns,
eram detidos os homossexuais
e também os opositores do regime. Essa foi minha primeira
crise. Escrevi a Fidel Castro, e
ele me chamou para ir lá; fui
com [o escritor] Julio Cortázar,
entre outros. E ele passou a
noite toda falando conosco, explicando que se haviam cometido abusos. Fiz as pazes, mas
restou dentro de mim um espírito crítico que não me abandonaria mais com relação à Revolução Cubana [1959].
Depois estive em Praga, durante a Primavera, e na União
Soviética, e essa foi uma experiência muito deprimente. Comecei a ler outros pensadores,
dei prioridade a Albert Camus,
em lugar de Sartre, e descobri
os pensadores liberais, como
Isaiah Berlin e Karl Popper.
PERGUNTA - A partir dessa época, o
senhor defendeu uma posição política basicamente liberal.
VARGAS LLOSA - Um liberalismo
que toma muitas coisas do socialismo e que reivindica a liberdade como algo mais importante do que o poder.
Existe um aspecto importante do socialismo que continua
fiel a suas origens libertárias, e
isso o leva a ser confundido
com o liberalismo. É esse o caso
de pessoas como Felipe González [primeiro-ministro da Espanha entre 1982 e 1996], que
levou a cabo uma política liberal para a economia, felizmente
para a Espanha.
Agora, existe um socialismo
para o qual o poder é mais importante do que a liberdade, e é
esse o socialismo que eu critico,
porque é ele que nos conduz a
Fidel Castro ou a [o presidente
venezuelano] Hugo Chávez.
PERGUNTA - O boom foi uma época
feliz da literatura latino-americana.
O que aconteceu com a literatura
em língua espanhola?
VARGAS LLOSA - Para mim, descobri prontamente que os escritores latino-americanos formávamos uma comunidade
que era reconhecida fora de
nossas fronteiras de maneira
entusiasta. Sempre tínhamos
sido os inexistentes. E, de maneira imprevista, passamos a
estar no centro de toda uma vida cultural!
Foi um grande estímulo.
Quando vivíamos em Barcelona, no início dos anos 70, dezenas de jovenzinhos iam para lá,
como nós havíamos ido a Paris,
pensando que era ali que se fazia literatura.
Quebraram-se fronteiras e
viveu-se uma época dourada,
uma época de grandes entusiasmos, também políticos.
PERGUNTA - E qual foi o legado do
boom?
VARGAS LLOSA - Uma porta aberta na língua espanhola para a literatura. Graças ao boom, hoje
não existem fronteiras para a literatura em espanhol.
PERGUNTA - Que livros do boom
permanecem?
VARGAS LLOSA - Tudo de Borges;
"Cem Anos de Solidão", de García Márquez; "O Reino deste
Mundo", de Alejo Carpentier;
muitos contos de Cortázar; "A
Vida Breve" e muitos contos de
Onetti, o escritor que, com a
distância proporcionada pelo
tempo, eu hoje vejo como o melhor de todos nós.
PERGUNTA - E seu livro?
VARGAS LLOSA - Não sei me colocar nessas classificações. Mas,
se tivesse que salvar algum livro meu, provavelmente seria
"Conversa na Catedral". Porque é o livro que mais trabalho
me deu para escrever.
PERGUNTA - Em seu novo romance
existem épocas fatais. Quais foram
as suas?
VARGAS LLOSA - O primeiro ano
com meu pai foi uma época fatal. Os primeiros meses de Paris. E em 1962, em Paris, estive
a ponto de cometer uma loucura: me alistar na Legião Estrangeira. Teria sido o mais grandioso disparate de minha vida.
PERGUNTA - E quando o senhor perdeu as eleições?
VARGAS LLOSA - Houve um grande esforço de muitíssimas pessoas que não tinham ambição
política, que estavam ali para
mudar as coisas, e esse esforço
inútil me deixou muito entristecido e exausto; perdi dez quilos na campanha, foi uma decepção. Mas foi fantástico voltar a meus livros.
Já tive fracassos, políticos e
literários. Mas não tenho o direito de me queixar. Considero-me um grande privilegiado,
posso me dedicar àquilo de que
gosto, e isso é algo extraordinário. Isso compensa as frustrações e os fracassos de que é feita
a vida se você não é um imbecil.
Fazendo as contas, não posso
me queixar.
E tenho saúde, o que me permite me meter em todo tipo de
aventuras. Há pessoas que se
angustiam ao chegar aos 70. Eu
não me angustio, me considero
vivo; repleto de curiosidades,
de ilusões, com muitos desejos
de fazer coisas. É preciso estar
vivo até o fim. Esse espetáculo
dos que morrem antes de morrer me horroriza.
PERGUNTA - Setenta anos. O senhor é jornalista. Diga um título para este momento.
VARGAS LLOSA - Setenta anos, e
continua caminhando.
A íntegra da entrevista acima saiu no jornal espanhol "El País".
Tradução de Clara Allain.
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