São Paulo, domingo, 18 de junho de 2006

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A vida breve

Reprodução
Cena do filme "Blow Up" de Michelangelo Antonioni, passado em Londres no final dos anos 60


Mario Vargas Llosa fala das revoluções da Paris existencialista e da "swinging London", cenários do recente "Travessuras de uma Menina Má", se diz decepcionado com a política e explica sua passagem do marxismo ao liberalismo

JUAN CRUZ

Mario Vargas Llosa, autor de "Conversa na Catedral" -romance protagonizado por Zavalita, em quem sempre enxergamos o próprio Mario quando era jovem jornalista-, completou 70 anos de idade no último 28 de março. Nesse dia ele estava no Peru, casando sua filha Morgana, que nasceu em Barcelona na época feliz do boom da literatura hispano-americana. Pouco tempo depois, iria lançar seu novo romance "Travessuras de uma Menina Má" [leia resenha na pág. 7]. Sempre se vê Mario como se ainda fosse Zavalita: juvenil, atlético, trabalhador, interessado em tudo o que acontece em sua casa e em todo o mundo; desajeitado com as máquinas, mas agilíssimo com a literatura e o jornalismo, ainda ousa viajar a todos os lugares em conflito (Iraque, Palestina) ou se aventurar por geografias e personagens remotos (Gauguin, Polinésia) para cumprir tarefas narrativas ou jornalísticas que não podem ser desempenhadas de um escritório. É reservado, com certeza; não anda por aí fazendo alarde nem de suas dores nem de seus pesadelos, mas já escreveu alguns livros relacionados a seu passado (com sua tia Julia, seus pais, sua infância, sua adolescência) e, em algum momento de sua vida (refletida sobretudo em "Peixe na Água", seu livro mais privado), tomou nota da pontada da desolação. Há 16 anos, quando perdeu as eleições para a presidência do Peru, Vargas Llosa foi a Paris, o lugar de seus sonhos juvenis, para se recuperar de uma campanha que acabou sendo dolorosa e frustrante -ele emagrecera mais de dez quilos. Ele apareceu nos lugares pelos quais sempre andou (as proximidades da editora Gallimard, sua casa parisiense -além disso, próxima do apartamento que possui ali), tomou café no Les Deux Magots e se dispôs a refazer sua vida literária, interrompida pela política. Aquele foi um momento especialmente doloroso para esse escritor de Arequipa, o autor muito jovem que saltou de um quarto de estudante em Madri ou Paris para a fama literária com um romance que ainda hoje se lê como excepcional, espécie de punhalada na barriga das convenções literárias da época: "A Cidade e os Cachorros", publicado em 1963. Muitas décadas se passaram, e agora aquele jovem que irrompeu na literatura daquele modo e que percorreu o mundo divulgando seus livros e contando suas idéias -que também variaram do marxismo ao liberalismo, fato que atraiu sobre ele as críticas dos ortodoxos e também dos heterodoxos- completa 70 anos. Tivemos esta conversa com Vargas Llosa em Madri, onde mora, diante de uma foto que nos levou ao colégio militar Leoncio Prado, de Lima, onde Mario foi interno, e onde acontece "A Cidade e os Cachorros". Anos atrás, quando [o ex-presidente peruano Alberto] Fujimori estava no poder, Mario foi com alguns amigos visitar esse centro de tão sombrias ressonâncias romanescas, e os amigos não o deixaram passar. Há pouco, porém, ele foi de novo, "e dessa vez pude entrar. Fui com dois amigos. Quando estávamos andando pelo colégio, apareceu o diretor, um coronel, que fez as vezes de guia. Depois apareceu um tenente: queria que eu fizesse um discurso para os cadetes. Por acaso você me vê fazendo um discurso para aqueles cadetes, que eram uns meninos? Pois eram como eu deveria ser na época que recordo em "A Cidade e os Cachorros'".

 

PERGUNTA - Afetivamente, como foi, para o sr., estar ali?
MARIO VARGAS LLOSA -
Não pude opor resistência ao internato -eu sentia um desejo espantoso de sair à rua. A disciplina militar, algo que eu odiava, representava um pouco o autoritarismo paterno. E, embora tenha sofrido ali, o fato é que o Leoncio Prado me ensinou muitas coisas. Mostrou-me o país no qual tinha nascido, que não era a vida protegida da classe média de Miraflores, mas um Peru que era um canteiro de obras em ebulição; o país de todas as raças, de todas as culturas que não se comunicavam entre elas. E descobri a violência nas relações humanas, coisas que depois se tornariam temas obsessivos e recorrentes em tudo o que escrevi. Esses dois anos me marcaram de maneira definitiva. É provável que, depois da relação com meu pai, a experiência no colégio tenha sido a mais decisiva de minha vida.

PERGUNTA - Por que o mandaram para lá?
VARGAS LLOSA -
Meu pai pensou que seria um antídoto contra a literatura. E, curiosamente, no Leoncio Prado eu li mais do que em qualquer outro lugar. Aquela vida enclausurada obrigava você a fazer alguma coisa para não se entediar, e, como a leitura me apaixonava, li toda a obra de Dumas; li também "Os Miseráveis", de Victor Hugo... "Os Miseráveis" foi provavelmente uma de minhas grandes leituras de menino. E depois, de maneira completamente inesperada, comecei a praticar a literatura de forma quase profissional, escrevendo cartas de amor encomendadas por meus colegas. Eu também escrevia pequenas novelas pornográficas, que vendia em troca de cigarros. Assim me converti em escritor profissional.

PERGUNTA - E dali nasceu "A Cidade e os Cachorros"?
VARGAS LLOSA -
Sim, todas as expectativas de meu pai se viram frustradas, porque o colégio fez de mim um grande leitor e me ajudou a me transformar em escritor e deu o tema para escrever meu primeiro romance.

PERGUNTA - Seu pai foi cruel assim?
VARGAS LLOSA -
Não sei se foi crueldade sua ou se eu era um menino muito mimado por meus avós, por meus tios; era o menino sem pai. Minha mãe era uma mulher divorciada, abandonada por seu marido. Era uma família muito conservadora, católica; me disseram que meu pai havia morrido, não podiam dizer que minha mãe estava divorciada. Toda essa proteção acabou quando fui viver com meu pai, quando eles refizeram seu casamento; desde o primeiro momento, ele impôs sua autoridade e, além disso, não tentou me conquistar nem ser carinhoso.

PERGUNTA - Um pesadelo...
VARGAS LLOSA -
O fato de ter um filho poeta o enchia de vergonha: um filho boêmio, um daqueles que andam pelos cafés, um personagem um tanto ridículo! Ler era a salvação. A verdadeira vida não era nem a rotina nem o medo, mas sim o que estava nos livros.

PERGUNTA - "Peixe na Água" deve ter lhe ajudado a explicar seu trauma de infância...
VARGAS LLOSA -
Esse livro era para ser uma memória de minha atividade política, para explicar a mim mesmo o que aconteceu durante os três anos de experiência como candidato à Presidência do Peru. Mas em muito pouco tempo me dei conta de que iria dar uma impressão muito distorcida e inexata do que sou, porque a parte principal de minha vida não é ocupada pela política, mas pela literatura. E isso me deu a idéia de fazer um contraponto: por um lado, a experiência política, e por outro, o relato de minha infância e juventude, quando nasce minha vocação literária. Veja bem, o livro conclui com essas duas partidas: a partida para a Europa, para me tornar escritor, e a partida para a Europa depois da campanha eleitoral.

PERGUNTA - Trata-se do símbolo de uma vida?
VARGAS LLOSA -
Quando eu era adolescente e descobri minha vocação, a política era quase inseparável da literatura. Eu era um sartriano apaixonado, acreditava na lenda de que, por meio da literatura, se podia mudar a história. Mas a política nunca tomou o lugar da literatura. Mesmo nos anos em que fui candidato, sempre tive presente a idéia de que iria retornar à literatura, que aquilo era transitório. Hoje acredito, como acreditava quando jovem, que a literatura pode ser uma arma política. Não acredito que a literatura seja algo distanciado da sociedade. Sem ela, eu seria uma pessoa muito menos imaginativa, com um senso crítico menos desenvolvido e com uma visão das coisas mais medíocre do que a que tenho.

PERGUNTA - O sr. acaba de publicar "Travessuras de uma Menina Má", no qual as cidades guardam relação com sua própria história.
VARGAS LLOSA -
Sim, se passa nas cidades onde vivi. A história em si não existiu, mas os lugares são os meus: o Peru quando eu era pequeno, Paris nos anos 1960, Londres nos 1970, a Espanha nos 1980.

PERGUNTA - Longe do ensaio e da novela histórica, o senhor volta à ficção autobiográfica.
VARGAS LLOSA -
Sim, este é um romance que eu queria escrever havia muito tempo. É uma história de amor, um amor moderno, condicionado pelo mundo em que vivemos e que está muito mais próximo da realidade que os amores românticos da literatura. O amor se estende ao longo de 40 anos e também serve para fazer uma espécie de grande afresco de um universo que mudou extraordinariamente. Se você pensar o que é o mundo para essas crianças dos anos 50, da primeira história do romance ou o que é o bairro de Lavapiés na Madri do fim dos anos 80, as transformações são prodigiosas.

PERGUNTA - Paris era nos anos 60 o epicentro de todas as ideologias.
VARGAS LLOSA -
Foi o grande centro de comunicações da revolução internacional. No romance utilizo material histórico do que foi o movimento guerrilheiro no Peru, o grande fracasso da primeira tentativa revolucionária séria que foi o Movimento de Esquerda Revolucionária, o MIR.


Em Londres, foi uma revolução dos sentidos; ao mesmo tempo, foi uma revolução de filhinhos de papai


E também descrevo o que é esse clima em que a utopia revolucionária se propagou de forma generalizada, como Paris se transformou no centro que exportava as idéias, os mitos e as fantasias da revolução e também o fracasso de tudo isso.

PERGUNTA - E da experiência revolucionária de Paris para outro tipo de revolução, a que seu protagonista -e o senhor, na vida real- vive em Londres. O pacifismo hedonista e anárquico dos hippies o seduziu?
VARGAS LLOSA -
A vida me deu a oportunidade de viver as duas coisas. Minha mudança para Londres coincidiu com a época da "swinging London". Além disso, caí no bairro que descrevo muito no romance, Earl's Court, na época em que era o coração desse movimento. A mudança foi radical em relação a Paris, cidade de onde vinha. Em Londres, a ideologia foi substituída pela mitologia da droga e a revolução da vestimenta, como um instrumento de libertação extraordinário. Ao invés de uma atitude beligerante, de querer mudar o mundo por meio das guerrilhas e da revolução, encontrei a atitude contemplativa dos hippies, a revolução psicodélica por meio da expansão da sensibilidade. Uma revolução total e bonita que não vivi de dentro, mas de fora, com um olhar muito benévolo, porque havia algo de inocente e idealista. Foi uma revolução estética: a vestimenta, a música, o modo de vida, os costumes, uma revolução dos sentidos que produziu uma liberação de costumes indiscutível. Ao mesmo tempo, foi uma revolução muito limitada, uma revolução de filhinhos de papai, mas com uma repercussão extraordinária na Europa e no mundo.

PERGUNTA - Falando dos aspectos positivos, quais foram as contribuições das duas revoluções?
VARGAS LLOSA -
Creio que nos anos 60 o mito da revolução não só não trouxe nada como confundiu e contribuiu para a desvalorização da cultura democrática, que aparecia como uma cultura desprezível, como uma máscara de exploração. Parece que a felicidade humana só pode vir com o fuzil, a guerra e a luta de classes. Ao mesmo tempo, nesses anos houve pela primeira vez na Europa progressista uma verdadeira descoberta do Terceiro Mundo e um fascínio por ele. Ocorreu uma grande identificação entre o progressismo europeu e o resto de um mundo que antes não existia para a Europa. Nos campos político, social e cultural, a Europa realmente se abriu para a América Latina e descobriu os escritores latino-americanos. Nos anos 70, a revolução hippie foi sobretudo uma revolução de costumes, muito mais individualista que social, mas foi uma revolução que teve alcances planetários, chegou ao Terceiro Mundo e abalou sociedades nas quais certos temas nem sequer eram tocados: drogas e sexo eram temas reprimidos e de repente passaram a fazer parte da atualidade. Creio também que a revolução hippie contribuiu para atenuar as fronteiras, tanto para os que vivem no Primeiro e no Terceiro mundos. O verdadeiro internacionalismo estava ali, os jovens iam para Katmandu, mas também vinham de lá para morar em Londres, e os peruanos iam a Barcelona.

PERGUNTA - O senhor sempre foi muito bem organizado. Quando começou a escrever, sabia que história vinha a seguir?
VARGAS LLOSA -
Não, nunca. Nos anos 1950, não havia escritores em tempo integral. O único escritor em tempo integral que conheci foi um escritor de radionovelas, que me serviu de modelo para escrever "Tia Julia e o Escrivinhador"; escrevia o dia todo, interpretava, dirigia, e com isso podia comer. Os outros escritores trabalhavam como profissionais que, em seus momentos livres, se dedicavam à literatura. Eu pensei que seria isso.

PERGUNTA - Quer dizer que não sabia como seria sua vida?
VARGAS LLOSA -
Não. Um momento fundamental foi em 1958, quando estava em Madri com Julia. Eu disse a ela que, se me dedicasse a pesquisar na universidade, a dar aulas, jamais conseguiria terminar o romance que tinha em mãos, que era "A Cidade e os Cachorros".


Nos anos 60, o mito da revolução contribuiu para a desvalorização da cultura democrática, que aparecia como desprezível


De modo que eu decidira procurar trabalhos pequenos, que não me tomassem muito tempo, mesmo que tivéssemos que viver mal. Então Julia, que era muito solidária, se ofereceu a trabalhar ela mesma: "Já vamos sair dessa. Você, dedique-se a escrever". Foi uma decisão psicologicamente muito importante. Viveria muito modestamente, mas me dedicaria à literatura. O resultado foi "A Cidade e os Cachorros".

PERGUNTA - E vocês foram a Paris.
VARGAS LLOSA -
E ali vivemos muito mal por um ano. Julia conseguiu trabalho antes de mim, na livraria de um anarquista espanhol, e eu comecei a recolher jornais em um carrinho de mão. Isso dava o suficiente para comer duas vezes ao dia. Era uma situação muito precária, mas eu me sentia absolutamente feliz. Escrevia, lia e, além disso, estava em Paris. A sorte me ajudou: o fato de o livro ter chegado a [o editor] Carlos Barral, de ter se entusiasmado por ele e tê-lo publicado. Foi a primeira surpresa. A segunda foi quando, já em Londres, casado com Patricia e com dois filhos, me apresentaram à agente Carmen Balcells, e ela me disse para desistir imediatamente da universidade, onde dava aulas, e me dedicasse exclusivamente a escrever.

PERGUNTA - O que o sr. pensou?
VARGAS LLOSA -
Fiquei apavorado. Ela me tranquilizou: "Garanto a você o que você ganha na universidade". Era 1970. Até então, nunca me passara pela cabeça dedicar-me apenas a escrever.

PERGUNTA - Enquanto isso, crescia seu sentimento de compromisso político.
VARGAS LLOSA -
Eu sempre o sentira. Escrevia sobre política, participava de atividades políticas; mas era um complemento ao meu trabalho de escritor. Quando de fato decidi intervir na política, eu estava no Peru, em 1987, e Alan García [então presidente do Peru, entre 1985 e 1990, e eleito novamente à Presidência neste mês] anunciou de maneira totalmente imprevista a decisão de nacionalizar os bancos e as seguradoras. Eu estava convencido de que isso seria uma catástrofe, que a democracia iria retroceder. Protestei, sem pensar no eco público que isso teria. O protesto cresceu, muita gente se somou a ele, até que 100 mil pessoas se reuniram na praça de San Martín. Esse protesto brecou a lei e criou um clima político muito diferente no Peru. Isso me levou a dar o grande passo, e aceitei ser candidato à Presidência [em 1990, sendo derrotado no pleito por Alberto Fujimori].

PERGUNTA - O senhor foi um esquerdista convicto, até abraçar posições liberais. O que aconteceu?
VARGAS LLOSA -
Foi um processo. Estive no Partido Comunista durante um ano, em 1958, quando estava na universidade. Eu era leitor voraz de Jean-Paul Sartre, dos existencialistas franceses. Essa influência me serviu para contrabalançar o caráter dogmático do marxismo defendido pelo Partido Comunista peruano e todos os partidos comunistas latino-americanos. Nessas reuniões, eu usava argumentos de Sartre contra o realismo socialista, e foi em uma dessas discussões que um companheiro de célula me chamou de subomem. Distanciei-me dos comunistas, mas continuei participando da luta dos movimentos de esquerda.

PERGUNTA - E depois veio a Revolução Cubana.
VARGAS LLOSA -
Parecia que ela criara aquilo que eu procurava e que procuravam muitas pessoas de esquerda que, como eu, rejeitavam o marxismo dogmático. Então comecei a militar por Cuba na Europa. Fui para lá, enviado pela radiotelevisão francesa, na época da crise dos mísseis; as mudanças já haviam começado, mas não as vi. E fui para lá todos os anos até 1966, até que foram criados os campos de concentração, onde, ao lado de criminosos comuns, eram detidos os homossexuais e também os opositores do regime. Essa foi minha primeira crise. Escrevi a Fidel Castro, e ele me chamou para ir lá; fui com [o escritor] Julio Cortázar, entre outros. E ele passou a noite toda falando conosco, explicando que se haviam cometido abusos. Fiz as pazes, mas restou dentro de mim um espírito crítico que não me abandonaria mais com relação à Revolução Cubana [1959]. Depois estive em Praga, durante a Primavera, e na União Soviética, e essa foi uma experiência muito deprimente. Comecei a ler outros pensadores, dei prioridade a Albert Camus, em lugar de Sartre, e descobri os pensadores liberais, como Isaiah Berlin e Karl Popper.

PERGUNTA - A partir dessa época, o senhor defendeu uma posição política basicamente liberal.
VARGAS LLOSA -
Um liberalismo que toma muitas coisas do socialismo e que reivindica a liberdade como algo mais importante do que o poder. Existe um aspecto importante do socialismo que continua fiel a suas origens libertárias, e isso o leva a ser confundido com o liberalismo. É esse o caso de pessoas como Felipe González [primeiro-ministro da Espanha entre 1982 e 1996], que levou a cabo uma política liberal para a economia, felizmente para a Espanha. Agora, existe um socialismo para o qual o poder é mais importante do que a liberdade, e é esse o socialismo que eu critico, porque é ele que nos conduz a Fidel Castro ou a [o presidente venezuelano] Hugo Chávez.

PERGUNTA - O boom foi uma época feliz da literatura latino-americana. O que aconteceu com a literatura em língua espanhola?
VARGAS LLOSA -
Para mim, descobri prontamente que os escritores latino-americanos formávamos uma comunidade que era reconhecida fora de nossas fronteiras de maneira entusiasta. Sempre tínhamos sido os inexistentes. E, de maneira imprevista, passamos a estar no centro de toda uma vida cultural! Foi um grande estímulo. Quando vivíamos em Barcelona, no início dos anos 70, dezenas de jovenzinhos iam para lá, como nós havíamos ido a Paris, pensando que era ali que se fazia literatura. Quebraram-se fronteiras e viveu-se uma época dourada, uma época de grandes entusiasmos, também políticos.

PERGUNTA - E qual foi o legado do boom?
VARGAS LLOSA -
Uma porta aberta na língua espanhola para a literatura. Graças ao boom, hoje não existem fronteiras para a literatura em espanhol.

PERGUNTA - Que livros do boom permanecem?
VARGAS LLOSA -
Tudo de Borges; "Cem Anos de Solidão", de García Márquez; "O Reino deste Mundo", de Alejo Carpentier; muitos contos de Cortázar; "A Vida Breve" e muitos contos de Onetti, o escritor que, com a distância proporcionada pelo tempo, eu hoje vejo como o melhor de todos nós.

PERGUNTA - E seu livro?
VARGAS LLOSA -
Não sei me colocar nessas classificações. Mas, se tivesse que salvar algum livro meu, provavelmente seria "Conversa na Catedral". Porque é o livro que mais trabalho me deu para escrever.

PERGUNTA - Em seu novo romance existem épocas fatais. Quais foram as suas?
VARGAS LLOSA -
O primeiro ano com meu pai foi uma época fatal. Os primeiros meses de Paris. E em 1962, em Paris, estive a ponto de cometer uma loucura: me alistar na Legião Estrangeira. Teria sido o mais grandioso disparate de minha vida.

PERGUNTA - E quando o senhor perdeu as eleições?
VARGAS LLOSA -
Houve um grande esforço de muitíssimas pessoas que não tinham ambição política, que estavam ali para mudar as coisas, e esse esforço inútil me deixou muito entristecido e exausto; perdi dez quilos na campanha, foi uma decepção. Mas foi fantástico voltar a meus livros. Já tive fracassos, políticos e literários. Mas não tenho o direito de me queixar. Considero-me um grande privilegiado, posso me dedicar àquilo de que gosto, e isso é algo extraordinário. Isso compensa as frustrações e os fracassos de que é feita a vida se você não é um imbecil. Fazendo as contas, não posso me queixar. E tenho saúde, o que me permite me meter em todo tipo de aventuras. Há pessoas que se angustiam ao chegar aos 70. Eu não me angustio, me considero vivo; repleto de curiosidades, de ilusões, com muitos desejos de fazer coisas. É preciso estar vivo até o fim. Esse espetáculo dos que morrem antes de morrer me horroriza.

PERGUNTA - Setenta anos. O senhor é jornalista. Diga um título para este momento.
VARGAS LLOSA -
Setenta anos, e continua caminhando.


A íntegra da entrevista acima saiu no jornal espanhol "El País".
Tradução de Clara Allain.


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