São Paulo, domingo, 18 de junho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Melodrama de uma arrivista

Em ótima forma, Vargas Llosa faz uma homenagem ao romance em "Travessuras de uma Menina Má"

JULIO ORTEGA

Talvez para comemorar seus 70 anos de vida, Mario Vargas Llosa nos presenteia com "Travessuras de uma Menina Má" [que sai no Brasil pela editora Objetiva, em setembro], o mais divertido, apaixonado e comovente romance de todos que já escreveu. É um tributo feliz à própria tradição do romance e até mesmo uma celebração da arte de ler romances.
Em seus sete capítulos, que são outros tantos romances, ele se abre por dentro para histórias distintas, reveladas como ficção em nome de sua verdade provisória.
Com humor cúmplice, o livro refaz nossa leitura por diversas vezes e nos convence de que o fascínio da história está no prazer de relatá-la.
Como se ilustrasse um tratado sobre as possibilidades do romance, "Travessuras" corresponde ao narrador, cujo romance (o primeiro que escreve) é uma biografia (uma educação sentimental) de sua época (dos anos 50 aos 80) que gira em torno da "menina má" (seu amor adiado por toda a vida).
Pouco a pouco, o leitor vai compreendendo que este romance é uma história do desengano, que começa com os contos do caminho de Boccaccio, continua na história de um fidalgo de La Mancha e culmina em Flaubert e sua magnífica heroína, mulher má como Anna Kariênina [de Tolstói], com cuja morte o romance precisa concluir para o bem da paz do código social.

Arrivismo e simulação
Depois de tudo, as "mulheres más" são as mulheres livres, e sua passagem pelo romance cobra o preço de suas vidas.
Filha dessas heroínas contraditórias, essa "menina má" exercita sua liberdade ao preço mais alto (o próximo amante rico), mas sua origem (modestamente peruana) a revela como filha do trauma (bela, mas pobre, filha de mãe cozinheira, reinventando a si mesma). Em suma, seu destino (arrivismo e simulação) é o melodrama.
Como um personagem de Balzac, ela funda a sociedade moderna: sua paixão de ser alguém confirma as regras. Mas, sendo seu pecado original sua classe social, ela carece de legitimidade (seu amante, o inocente narrador, a cada fracasso a devolve ao horizonte do literal); e, sem liberdade no romance, a imaginação melodramática a recupera.
Trata-se, é claro, de um grande melodrama. Vítima de sua paixão perpétua pela "menina má", o narrador é traído por diversas vezes, mas sempre volta a acreditar nela. Mas ele é também sua maior testemunha e seu maior juiz.
E, ao relatar sua suposta violação, parece um protetor fantasioso (o corpo violado é uma anatomia sadista). Não em vão, esse narrador recusa a psicanálise e sua reprodução analítica.
Reveladoramente, os personagens da paixão impensada vão morrendo à sua volta: Paul, o guerrilheiro; Juan, com Aids; Salomón, o apaixonado suicida; e ela própria, que, ao final, se rende à sombra da origem, o "bom menino", a quem doa seus bens, incluindo o maior deles: o romance que lemos.

Folhetim
O romance se resolve debatendo suas opções, entre a narração episódica e o relato sentimental. E, com valor e audácia, num gesto que revela a mão magistral que governa os fios, opta pelo folhetim.
"Você me conhece mal", diz ela, muito tranqüila. "Talvez a outros eu pudesse fazer maldades. Mas a você, não."
"A mim você já vez as piores maldades que uma mulher pode fazer a um homem. Você me fez acreditar que me amava..."
Ela fala a partir da tradição do romance: "Você não sabe me ler, sou irrepresentável, porque a mulher (esse sintoma masculino, disse Lacan) é sua própria indefinição, e por isso você se conhece mal".
Mas ele relata na magnífica convenção do melodrama, no qual os sujeitos são transparentes porque a sociedade é tópica: "Sou inocente", diz ele a ela, "e sua história agora é minha". Antes, lhe havia dito: "Você me converte num personagem de telenovela".
Ao final das contas, ela tem seu túmulo na costa de Sète, entre os do escritor Paul Valéry e do compositor George Brassens. Torna-se, com doçura, uma alpinista social realizada. E essa é uma celebração compartilhada da liberdade romanesca.


Este texto foi publicado no "El País".
Tradução de Clara Allain.


Texto Anterior: A vida breve
Próximo Texto: Com García Márquez, Vargas Llosa é expoente do realismo mágico
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.