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Melodrama de uma arrivista
Em ótima
forma,
Vargas Llosa
faz uma homenagem
ao romance em
"Travessuras
de uma
Menina Má"
JULIO ORTEGA
Talvez para comemorar seus 70 anos de vida, Mario Vargas Llosa nos presenteia com
"Travessuras de uma
Menina Má" [que sai no Brasil
pela editora Objetiva, em setembro], o mais divertido, apaixonado e comovente romance
de todos que já escreveu. É um
tributo feliz à própria tradição
do romance e até mesmo uma
celebração da arte de ler romances.
Em seus sete capítulos, que
são outros tantos romances,
ele se abre por dentro para histórias distintas, reveladas como ficção em nome de sua verdade provisória.
Com humor cúmplice, o livro
refaz nossa leitura por diversas
vezes e nos convence de que o
fascínio da história está no prazer de relatá-la.
Como se ilustrasse um tratado sobre as possibilidades do
romance, "Travessuras" corresponde ao narrador, cujo romance (o primeiro que escreve) é uma biografia (uma educação sentimental) de sua época (dos anos 50 aos 80) que gira
em torno da "menina má" (seu
amor adiado por toda a vida).
Pouco a pouco, o leitor vai
compreendendo que este romance é uma história do desengano, que começa com os
contos do caminho de Boccaccio, continua na história de um
fidalgo de La Mancha e culmina em Flaubert e sua magnífica
heroína, mulher má como Anna Kariênina [de Tolstói], com
cuja morte o romance precisa
concluir para o bem da paz do
código social.
Arrivismo e simulação
Depois de tudo, as "mulheres
más" são as mulheres livres, e
sua passagem pelo romance cobra o preço de suas vidas.
Filha dessas heroínas contraditórias, essa "menina má"
exercita sua liberdade ao preço
mais alto (o próximo amante rico), mas sua origem (modestamente peruana) a revela como
filha do trauma (bela, mas pobre, filha de mãe cozinheira,
reinventando a si mesma). Em
suma, seu destino (arrivismo e
simulação) é o melodrama.
Como um personagem de
Balzac, ela funda a sociedade
moderna: sua paixão de ser alguém confirma as regras. Mas,
sendo seu pecado original sua
classe social, ela carece de legitimidade (seu amante, o inocente narrador, a cada fracasso
a devolve ao horizonte do literal); e, sem liberdade no romance, a imaginação melodramática a recupera.
Trata-se, é claro, de um grande melodrama. Vítima de sua
paixão perpétua pela "menina
má", o narrador é traído por diversas vezes, mas sempre volta
a acreditar nela. Mas ele é também sua maior testemunha e
seu maior juiz.
E, ao relatar sua suposta violação, parece um protetor fantasioso (o corpo violado é uma
anatomia sadista). Não em vão,
esse narrador recusa a psicanálise e sua reprodução analítica.
Reveladoramente, os personagens da paixão impensada
vão morrendo à sua volta: Paul,
o guerrilheiro; Juan, com Aids;
Salomón, o apaixonado suicida;
e ela própria, que, ao final, se
rende à sombra da origem, o
"bom menino", a quem doa
seus bens, incluindo o maior
deles: o romance que lemos.
Folhetim
O romance se resolve debatendo suas opções, entre a narração episódica e o relato sentimental. E, com valor e audácia,
num gesto que revela a mão
magistral que governa os fios,
opta pelo folhetim.
"Você me conhece mal", diz
ela, muito tranqüila. "Talvez a
outros eu pudesse fazer maldades. Mas a você, não."
"A mim você já vez as piores
maldades que uma mulher pode fazer a um homem. Você me
fez acreditar que me amava..."
Ela fala a partir da tradição
do romance: "Você não sabe me
ler, sou irrepresentável, porque
a mulher (esse sintoma masculino, disse Lacan) é sua própria
indefinição, e por isso você se
conhece mal".
Mas ele relata na magnífica
convenção do melodrama, no
qual os sujeitos são transparentes porque a sociedade é tópica:
"Sou inocente", diz ele a ela, "e
sua história agora é minha".
Antes, lhe havia dito: "Você me
converte num personagem de
telenovela".
Ao final das contas, ela tem
seu túmulo na costa de Sète,
entre os do escritor Paul Valéry
e do compositor George Brassens. Torna-se, com doçura,
uma alpinista social realizada.
E essa é uma celebração compartilhada da liberdade romanesca.
Este texto foi publicado no "El País".
Tradução de Clara Allain.
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