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+ literatura
O escritor Julian Barnes fala de seus dois novos livros, que serão lançados no Brasil em 2006, diz que
pretende voltar a escrever sobre culinária e defende que o romance é a melhor forma de entender o real
É tudo verdade
Tuca Vieira - 3.ago.2003/Folha Imagem
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O escritor inglês Julian Barnes (ao fundo) passeia de barco com o historiador Eric Hobsbawm, em Parati (RJ) |
LOURDES GOMEZ
Acabam de completar-se 20
anos desde o lançamento
em inglês de "O Papagaio de
Flaubert" (Rocco), mas, aos
59 anos, seu autor, Julian Barnes,
continua à frente da mais relevante
geração de romancistas britânicos
dos últimos tempos.
Estou convencido de que
o romance descobre
mais verdades do que ensaios,
documen-tários de TV
e trabalhos baseados em fatos
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Barnes lançou recentemente um
novo livro no Reino Unido, "Arthur
& George" [ed. Jonathan Cape, 352
págs., 17,99 libras, R$ 72], no qual
entrecruza um caso real de injustiça
penal com uma aventura amorosa
extraconjugal de Arthur Conan
Doyle [1859-1930], o criador do detetive Sherlock Holmes.
O livro, que foi finalista do Booker
Prize e que deve ser lançado no Brasil em março pela Rocco, talvez seja
seu trabalho mais ambicioso até hoje. Essa é a razão pela qual Barnes
passou tanto tempo encerrado, por
vontade própria, em sua confortável
residência no norte de Londres.
Barnes também fala de sua coleção
de contos "The Lemon Table" [A
Mesa Limão, que também deve ser
publicado no Brasil em 2006]. Todas
as narrativas desse livro giram em
torno da velhice e da aproximação
da morte, temas que povoam a mente do autor desde sua infância.
Pergunta - Que reflexões o senhor
tem a fazer, 20 anos após a publicação
de "O Papagaio de Flaubert"?
Julian Barnes - É estranho, porque
não sinto que tenha se passado tanto
tempo. É agradável comprovar que
o livro continua atual, vendendo
exemplares regularmente a toda
uma nova geração de leitores. Isso é
muito encorajador. Tenho orgulho
de todos os meus trabalhos, mas sinto um carinho especial por "O Papagaio de Flaubert".
Meus dois primeiros romances
-"Metroland" [1981] e "Before She
Met Me" [1982]- eram bastante
convencionais e, com o terceiro, eu
quis alterar a forma. Surpreendentemente, as pessoas gostaram. Isso me
deu muita confiança para trabalhar
de maneira diferente. Tudo relacionado a "O Papagaio de Flaubert" foi
puro prazer.
Pergunta - A proximidade dos seus
60 anos levou o sr. a meditar sobre a
velhice?
Barnes - Venho pensando na morte desde os 12 anos de idade. Naquela época, havia três assuntos nos
quais não se falava na sociedade que
me cercava, isto é, a classe média inglesa: sexo, morte e política. Hoje todo mundo fala de sexo e política,
mas a morte continua a ser tabu.
Nunca falo sobre a morte com
meus amigos, exceto em referências
isoladas de caráter religioso. Isso me
surpreende. Meus amigos são ateus
ou agnósticos, mas não falamos da
dificuldade que cerca o morrer, a
dor ou o sofrimento implícitos no
desaparecer da existência.
Pergunta - O sr. mantém um diálogo
sobre a morte consigo mesmo?
Barnes - Sim. E não cheguei a nenhuma conclusão, nem descobri nada interessante. Mas o controle sobre esse diálogo não está em meu
poder. Faz parte de meu temperamento e de minha natureza. Talvez
eu devesse procurar um psiquiatra.
Pergunta - O que o preocupa mais:
envelhecer ou morrer?
Barnes - A maioria das pessoas
transfere o medo da morte para o
medo de envelhecer. A idéia de envelhecer não me incomoda, desde
que eu não morra no final do processo. A velhice é outro dos medos
da sociedade moderna.
A expectativa de vida foi ampliada,
mas as doenças geriátricas são assustadoras: a idéia de perder a capacidade mental, de ter um fim tremendamente indigno, de que mantenham você vivo quando você deseja morrer.
Pergunta - Os personagens de "A
Mesa Limão" se ressentem de muitos
aspectos de suas vidas. A velhice supõe insatisfação?
Barnes - À medida que envelhecemos, o contraste entre o que acreditávamos que aconteceria em nossas
vidas e o que realmente aconteceu se
acentua, e por isso aumenta nossa
capacidade de arrependimento e
nosso sentimento de culpa. Nos damos conta de que é impossível retornar ao ponto onde o caminho se bifurcou, para tomar a direção oposta
à que tomamos antes.
Além disso, a sociedade nos apresenta uma ilusão da vida humana
como sendo algo que cada um pode
criar pessoalmente, que está sob
nosso próprio controle e nos faz crer
que seremos recompensados se nos
comportarmos de determinada forma. Isso é mentira. Mas só nos damos conta disso quando já é tarde
demais. Essa é minha perspectiva
pessimista da vida.
Pergunta - Não é a única idéia sobre
a velhice que o sr. questiona.
Barnes - Meu livro rejeita a idéia da
velhice serena. Quando somos jovens, nos dizem que tudo fica mais
lento na velhice. Que a desaceleração
do corpo, coração e espírito se processa no mesmo ritmo compassado.
A sociedade se envergonha e rejeita a idéia de que o coração dos mais
velhos possa não acompanhar o estado físico de seus corpos. Não acredito que nos tornemos mais serenos
na velhice e não tenho visto nenhuma prova disso. Por isso abordo esse
tema sem sentimentalismos nessa
coletânea de contos.
Pergunta - Como o senhor se imagina aos 80 anos?
Barnes - Não prevejo ter ânimo sereno nem ser mais alegre do que sou
hoje. É provável que seja mais resmungão, mas tenho autocontrole
demais sobre meu caráter para me
comportar como se comportam alguns dos personagens do livro.
Eu acredito que continuarei a ter
emoções fortes e a não me envergonhar delas.
Pergunta - Seus relatos se baseiam
em pessoas tão reais quanto os artistas neles mencionados?
Barnes - Não costumo descobrir
histórias em coisas próximas a mim,
pessoalmente. A proximidade não
me ajuda no trabalho. Prefiro partir
de alguma coisa que alguém tenha
comentado comigo acerca de uma
terceira pessoa. A partir de um pequeno detalhe, decido que personagens preciso e para onde a história
vai se dirigir. Com "Arthur & George", no qual mergulho na vida privada de Conan Doyle, comprovei que é
mais fácil controlar um personagem
fictício do que um real.
Ao inventar um personagem, você
o constrói de acordo com o propósito que ele tem no livro. Você não pode moldar um personagem real nem
conduzi-lo para um lado ou para outro, porque ele tem sua vida própria.
Nesses casos, por exemplo em
"The Revival" [de "A Mesa Limão"],
no qual evoco o último amor de Turguêniev [1818-83], eu me meto em
uma área da vida do escritor da qual
nunca se falou. É isso que quero fazer: penetrar em áreas não incluídas
no conhecimento prévio.
Pergunta - É como caminhar no limite entre a ficção e a realidade?
Barnes - Sim, mas as duas coisas estão muito próximas em minha cabeça. A ficção é uma forma de contar a
verdade. É por isso que sou escritor
de ficção: porque estou convencido
de que o romance descobre mais
verdades do que ensaios, documentários de televisão e todo tipo de trabalho baseado em fatos.
Pergunta - Alcançar a verdade é seu
objetivo como escritor?
Barnes - Evidentemente. É o que
todos nós procuramos, embora nem
sempre o consigamos. Às vezes descobrimos uma verdade que acreditamos ser original e inovadora, mas
não demoramos a comprovar que
alguém já chegou a uma conclusão
semelhante 500 anos atrás.
Ao ler "Dom Quixote", você se dá
conta, por exemplo, de que o modernismo no romance, o realismo
mágico, já estão plenamente presentes em Cervantes. O romance não
avança em linha reta, progredindo e
melhorando. Ele é mais como um
círculo grande no qual nos olhamos
de frente, uns aos outros.
Pergunta - Flaubert, Turguêniev,
Conan Doyle... O diálogo fictício com
outros autores o atrai?
Barnes - Sim, e, além disso, isso
acontece contra minha vontade. É
algo que surpreende a mim mesmo.
Gustave Flaubert [1821-80] é um
grande herói, e era óbvio que alguém iria escrever sobre ele algum
dia. Mas nunca imaginei que Arthur
Conan Doyle algum dia fosse se tornar co-protagonista de um livro
meu. Num primeiro momento, tive
vergonha disso.
Pareceu-me, inicialmente, que teria sido mais interessante se tivesse
sido Rudyard Kipling [1865-1936]
ou Thomas Hardy [1840-1928]. Eu
os admiro mais. Mas Conan Doyle
está implicado na história que eu
queria contar. Ele escreveu um panfleto sofre o caso e o menciona em
sua autobiografia.
Na realidade, o que me interessou
foi a história, que havia sido totalmente esquecida e sobre a qual existe muito pouca documentação. Os
livros nunca deixam de nos surpreender. Eles surgem dos lugares
menos esperados.
Pergunta - É por isso que o sr. assina
seus romances policiais com o pseudônimo Dan Kavanagh?
Barnes - Escrevi o último deles há
cerca de 20 anos. Era o início de minha carreira, e eu estava experimentando diferentes estilos e gêneros.
Levei sete anos para escrever meu
primeiro romance como Julian Barnes, "Metroland"; mas o primeiro
policial, "Duffy", terminei em dez
dias. As pessoas diferenciam a narrativa popular da literária, e suponho que, inicialmente, eu também o
tenha feito. Mas minha ficção literária vendia melhor que a de detetive,
por isso deixei de escrever policiais.
Pergunta - Qual é a trama de "Arthur & George"?
Barnes - O livro traça um paralelo
entre um caso público que aconteceu na Inglaterra entre 1905 e 1907,
sobre uma pessoa erroneamente
condenada a três anos de prisão, e
uma fase de dificuldades conjugais
na vida de Conan Doyle. Sua mulher
tinha contraído tuberculose, e ele era
fiel a ela, mas, em certo momento, se
apaixonou catastroficamente por
outra mulher. Meu interesse como
romancista é levar a questão da inocência e da culpa da esfera pública
para a da vida privada.
Pergunta - O seu livro é um romance
histórico?
Barnes - Não realmente. Nunca escrevi um romance histórico, no sentido formal do termo. Os detalhes
históricos são muito leves, e, por outro lado, o livro contém elementos
muito relevantes para a sociedade
contemporânea.
Eu traço muitos paralelos com o
que acontece hoje à nossa volta.
Pergunta - Arte e vida, trabalho e família estão em conflito, para o sr.?
Barnes - Existe uma frase famosa
do poeta irlandês W.B. Yeats [1865-1939]sobre "a luta entre a perfeição
da vida e da arte". É uma falsidade,
na minha opinião. Tentamos fazer o
melhor possível nos dois âmbitos e,
à medida que amadurecemos, vamos sentindo pressões diferentes
como autor e como ser humano.
No meu caso, as pressões são externas, geralmente relacionadas à
promoção de livros. São tarefas que
não me ajudam a melhorar como
autor. Minha mulher é agente literária e, portanto, entende os escritores.
Não tenho filhos, o que faz uma
grande diferença. Para as mulheres,
em especial, os filhos são um inimigo, um perigo para a arte.
Pergunta - Você tem vontade de retomar outros projetos, como seus livros de cozinha?
Barnes - É possível. Sobre receitas,
eu já disse tudo o que queria dizer.
Talvez agora eu escreva sobre a comida na literatura, de como os autores tratam os alimentos. Serão peças
concretas, e talvez eu baseie uma delas em "Dom Quixote". Cervantes
fala muito de comida em "Dom Quixote" e escreve uma das primeiras
histórias de degustação de vinho. Ele
a conta na voz de Sancho Pança,
principalmente, e é uma história
maravilhosa.
Este texto foi publicado no "El País".
Tradução de Clara Allain.
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