São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 2005

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+ literatura

O escritor Julian Barnes fala de seus dois novos livros, que serão lançados no Brasil em 2006, diz que pretende voltar a escrever sobre culinária e defende que o romance é a melhor forma de entender o real

É tudo verdade

Tuca Vieira - 3.ago.2003/Folha Imagem
O escritor inglês Julian Barnes (ao fundo) passeia de barco com o historiador Eric Hobsbawm, em Parati (RJ)


LOURDES GOMEZ

Acabam de completar-se 20 anos desde o lançamento em inglês de "O Papagaio de Flaubert" (Rocco), mas, aos 59 anos, seu autor, Julian Barnes, continua à frente da mais relevante geração de romancistas britânicos dos últimos tempos.


Estou convencido de que o romance descobre mais verdades do que ensaios, documen-tários de TV e trabalhos baseados em fatos


Barnes lançou recentemente um novo livro no Reino Unido, "Arthur & George" [ed. Jonathan Cape, 352 págs., 17,99 libras, R$ 72], no qual entrecruza um caso real de injustiça penal com uma aventura amorosa extraconjugal de Arthur Conan Doyle [1859-1930], o criador do detetive Sherlock Holmes.
O livro, que foi finalista do Booker Prize e que deve ser lançado no Brasil em março pela Rocco, talvez seja seu trabalho mais ambicioso até hoje. Essa é a razão pela qual Barnes passou tanto tempo encerrado, por vontade própria, em sua confortável residência no norte de Londres.
Barnes também fala de sua coleção de contos "The Lemon Table" [A Mesa Limão, que também deve ser publicado no Brasil em 2006]. Todas as narrativas desse livro giram em torno da velhice e da aproximação da morte, temas que povoam a mente do autor desde sua infância.
 

Pergunta - Que reflexões o senhor tem a fazer, 20 anos após a publicação de "O Papagaio de Flaubert"?
Julian Barnes -
É estranho, porque não sinto que tenha se passado tanto tempo. É agradável comprovar que o livro continua atual, vendendo exemplares regularmente a toda uma nova geração de leitores. Isso é muito encorajador. Tenho orgulho de todos os meus trabalhos, mas sinto um carinho especial por "O Papagaio de Flaubert".
Meus dois primeiros romances -"Metroland" [1981] e "Before She Met Me" [1982]- eram bastante convencionais e, com o terceiro, eu quis alterar a forma. Surpreendentemente, as pessoas gostaram. Isso me deu muita confiança para trabalhar de maneira diferente. Tudo relacionado a "O Papagaio de Flaubert" foi puro prazer.

Pergunta - A proximidade dos seus 60 anos levou o sr. a meditar sobre a velhice?
Barnes -
Venho pensando na morte desde os 12 anos de idade. Naquela época, havia três assuntos nos quais não se falava na sociedade que me cercava, isto é, a classe média inglesa: sexo, morte e política. Hoje todo mundo fala de sexo e política, mas a morte continua a ser tabu.
Nunca falo sobre a morte com meus amigos, exceto em referências isoladas de caráter religioso. Isso me surpreende. Meus amigos são ateus ou agnósticos, mas não falamos da dificuldade que cerca o morrer, a dor ou o sofrimento implícitos no desaparecer da existência.

Pergunta - O sr. mantém um diálogo sobre a morte consigo mesmo?
Barnes -
Sim. E não cheguei a nenhuma conclusão, nem descobri nada interessante. Mas o controle sobre esse diálogo não está em meu poder. Faz parte de meu temperamento e de minha natureza. Talvez eu devesse procurar um psiquiatra.

Pergunta - O que o preocupa mais: envelhecer ou morrer?
Barnes -
A maioria das pessoas transfere o medo da morte para o medo de envelhecer. A idéia de envelhecer não me incomoda, desde que eu não morra no final do processo. A velhice é outro dos medos da sociedade moderna.
A expectativa de vida foi ampliada, mas as doenças geriátricas são assustadoras: a idéia de perder a capacidade mental, de ter um fim tremendamente indigno, de que mantenham você vivo quando você deseja morrer.

Pergunta - Os personagens de "A Mesa Limão" se ressentem de muitos aspectos de suas vidas. A velhice supõe insatisfação?
Barnes -
À medida que envelhecemos, o contraste entre o que acreditávamos que aconteceria em nossas vidas e o que realmente aconteceu se acentua, e por isso aumenta nossa capacidade de arrependimento e nosso sentimento de culpa. Nos damos conta de que é impossível retornar ao ponto onde o caminho se bifurcou, para tomar a direção oposta à que tomamos antes.
Além disso, a sociedade nos apresenta uma ilusão da vida humana como sendo algo que cada um pode criar pessoalmente, que está sob nosso próprio controle e nos faz crer que seremos recompensados se nos comportarmos de determinada forma. Isso é mentira. Mas só nos damos conta disso quando já é tarde demais. Essa é minha perspectiva pessimista da vida.

Pergunta - Não é a única idéia sobre a velhice que o sr. questiona.
Barnes -
Meu livro rejeita a idéia da velhice serena. Quando somos jovens, nos dizem que tudo fica mais lento na velhice. Que a desaceleração do corpo, coração e espírito se processa no mesmo ritmo compassado.
A sociedade se envergonha e rejeita a idéia de que o coração dos mais velhos possa não acompanhar o estado físico de seus corpos. Não acredito que nos tornemos mais serenos na velhice e não tenho visto nenhuma prova disso. Por isso abordo esse tema sem sentimentalismos nessa coletânea de contos.

Pergunta - Como o senhor se imagina aos 80 anos?
Barnes -
Não prevejo ter ânimo sereno nem ser mais alegre do que sou hoje. É provável que seja mais resmungão, mas tenho autocontrole demais sobre meu caráter para me comportar como se comportam alguns dos personagens do livro.
Eu acredito que continuarei a ter emoções fortes e a não me envergonhar delas.

Pergunta - Seus relatos se baseiam em pessoas tão reais quanto os artistas neles mencionados?
Barnes -
Não costumo descobrir histórias em coisas próximas a mim, pessoalmente. A proximidade não me ajuda no trabalho. Prefiro partir de alguma coisa que alguém tenha comentado comigo acerca de uma terceira pessoa. A partir de um pequeno detalhe, decido que personagens preciso e para onde a história vai se dirigir. Com "Arthur & George", no qual mergulho na vida privada de Conan Doyle, comprovei que é mais fácil controlar um personagem fictício do que um real.
Ao inventar um personagem, você o constrói de acordo com o propósito que ele tem no livro. Você não pode moldar um personagem real nem conduzi-lo para um lado ou para outro, porque ele tem sua vida própria.
Nesses casos, por exemplo em "The Revival" [de "A Mesa Limão"], no qual evoco o último amor de Turguêniev [1818-83], eu me meto em uma área da vida do escritor da qual nunca se falou. É isso que quero fazer: penetrar em áreas não incluídas no conhecimento prévio.

Pergunta - É como caminhar no limite entre a ficção e a realidade?
Barnes -
Sim, mas as duas coisas estão muito próximas em minha cabeça. A ficção é uma forma de contar a verdade. É por isso que sou escritor de ficção: porque estou convencido de que o romance descobre mais verdades do que ensaios, documentários de televisão e todo tipo de trabalho baseado em fatos.

Pergunta - Alcançar a verdade é seu objetivo como escritor?
Barnes -
Evidentemente. É o que todos nós procuramos, embora nem sempre o consigamos. Às vezes descobrimos uma verdade que acreditamos ser original e inovadora, mas não demoramos a comprovar que alguém já chegou a uma conclusão semelhante 500 anos atrás.
Ao ler "Dom Quixote", você se dá conta, por exemplo, de que o modernismo no romance, o realismo mágico, já estão plenamente presentes em Cervantes. O romance não avança em linha reta, progredindo e melhorando. Ele é mais como um círculo grande no qual nos olhamos de frente, uns aos outros.

Pergunta - Flaubert, Turguêniev, Conan Doyle... O diálogo fictício com outros autores o atrai?
Barnes -
Sim, e, além disso, isso acontece contra minha vontade. É algo que surpreende a mim mesmo. Gustave Flaubert [1821-80] é um grande herói, e era óbvio que alguém iria escrever sobre ele algum dia. Mas nunca imaginei que Arthur Conan Doyle algum dia fosse se tornar co-protagonista de um livro meu. Num primeiro momento, tive vergonha disso.
Pareceu-me, inicialmente, que teria sido mais interessante se tivesse sido Rudyard Kipling [1865-1936] ou Thomas Hardy [1840-1928]. Eu os admiro mais. Mas Conan Doyle está implicado na história que eu queria contar. Ele escreveu um panfleto sofre o caso e o menciona em sua autobiografia.
Na realidade, o que me interessou foi a história, que havia sido totalmente esquecida e sobre a qual existe muito pouca documentação. Os livros nunca deixam de nos surpreender. Eles surgem dos lugares menos esperados.

Pergunta - É por isso que o sr. assina seus romances policiais com o pseudônimo Dan Kavanagh?
Barnes -
Escrevi o último deles há cerca de 20 anos. Era o início de minha carreira, e eu estava experimentando diferentes estilos e gêneros. Levei sete anos para escrever meu primeiro romance como Julian Barnes, "Metroland"; mas o primeiro policial, "Duffy", terminei em dez dias. As pessoas diferenciam a narrativa popular da literária, e suponho que, inicialmente, eu também o tenha feito. Mas minha ficção literária vendia melhor que a de detetive, por isso deixei de escrever policiais.

Pergunta - Qual é a trama de "Arthur & George"?
Barnes -
O livro traça um paralelo entre um caso público que aconteceu na Inglaterra entre 1905 e 1907, sobre uma pessoa erroneamente condenada a três anos de prisão, e uma fase de dificuldades conjugais na vida de Conan Doyle. Sua mulher tinha contraído tuberculose, e ele era fiel a ela, mas, em certo momento, se apaixonou catastroficamente por outra mulher. Meu interesse como romancista é levar a questão da inocência e da culpa da esfera pública para a da vida privada.

Pergunta - O seu livro é um romance histórico?
Barnes -
Não realmente. Nunca escrevi um romance histórico, no sentido formal do termo. Os detalhes históricos são muito leves, e, por outro lado, o livro contém elementos muito relevantes para a sociedade contemporânea.
Eu traço muitos paralelos com o que acontece hoje à nossa volta.

Pergunta - Arte e vida, trabalho e família estão em conflito, para o sr.?
Barnes -
Existe uma frase famosa do poeta irlandês W.B. Yeats [1865-1939]sobre "a luta entre a perfeição da vida e da arte". É uma falsidade, na minha opinião. Tentamos fazer o melhor possível nos dois âmbitos e, à medida que amadurecemos, vamos sentindo pressões diferentes como autor e como ser humano.
No meu caso, as pressões são externas, geralmente relacionadas à promoção de livros. São tarefas que não me ajudam a melhorar como autor. Minha mulher é agente literária e, portanto, entende os escritores. Não tenho filhos, o que faz uma grande diferença. Para as mulheres, em especial, os filhos são um inimigo, um perigo para a arte.

Pergunta - Você tem vontade de retomar outros projetos, como seus livros de cozinha?
Barnes -
É possível. Sobre receitas, eu já disse tudo o que queria dizer. Talvez agora eu escreva sobre a comida na literatura, de como os autores tratam os alimentos. Serão peças concretas, e talvez eu baseie uma delas em "Dom Quixote". Cervantes fala muito de comida em "Dom Quixote" e escreve uma das primeiras histórias de degustação de vinho. Ele a conta na voz de Sancho Pança, principalmente, e é uma história maravilhosa.


Este texto foi publicado no "El País".
Tradução de Clara Allain.


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