São Paulo, domingo, 19 de junho de 2005

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+ cinema

"Um Filme Falado", de Manoel de Oliveira, faz a defesa da civilização ao contrapor sutileza e humildade ao excesso de informações do mundo atual, que por sua opulência de dados nos empobrece de respostas

A Idade Média de agora

LEYLA PERRONE-MOISÉS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Falou-se pouco, entre nós, de "Um Filme Falado" (2003), de Manoel de Oliveira. Muito menos do que mereceria. Talvez porque seja uma obra sutil demais para os tempos bárbaros em que estamos vivendo. O que é sutil é visto hoje como ingênuo, antigo ou simplesmente chato. Manoel de Oliveira não tem nada de ingênuo e, na vetustez de seus 96 anos, está atualizadíssimo. A sutileza e a força de seu filme só nos aparecem "a posteriori", quando saímos do cinema, atônitos como a personagem de John Malkovich, na imagem final congelada, e continuamos a pensar no que vimos.


O que Oliveira pretende é fazer-nos voltar a um estado de humildade diante do mundo e da história


A primeira cena do filme mostra as pessoas no cais de Lisboa acenando lenços brancos para os que partem no navio. Em cada um dos portos visitados, repete-se a cena do adeus. É um adeus como qualquer outro, dirigido de pessoas a pessoas, ou um adeus a algo maior? A professora que vai à Índia com a filha refaz, na rota encurtada pelo Canal de Suez, a heróica viagem de Vasco da Gama, o maior feito português e europeu do século 15. Tudo é voluntariamente singelo. A começar dos nomes das personagens: Rosa Maria e Joaninha. As perguntas que vão sendo feitas pela menina, e pacientemente respondidas pela mãe, podem parecer tolas para os que pensam que sabem tudo. Algumas são claramente inverossímeis: qualquer menina de sete anos sabe o que é uma sereia ou um vulcão. O que Oliveira pretende, com essas perguntas elementares e insistentes, é fazer-nos voltar a um estado de humildade diante do mundo e da história, ensinar-nos a paciência de parar para pensar nas coisas mais antigas e mais sabidas, separando mitos de fatos, antes de tentarmos compreender a complexidade informacional da atualidade, que nos enriquece de dados e nos empobrece de respostas.
Da mesma forma, a indigência e a falsidade dos cenários de batalha, em outro filme de Oliveira, ""Non", ou A Vã Glória de Mandar" (1990), era voluntária. Tratava-se da história de Portugal contada pelo capitão a rudes soldados mandados para morrer na inglória guerra da África. A contraprova da intenção quase paródica de Oliveira, naquele filme, é a magnificência dos cenários e dos figurinos em "O Quinto Império" (2004), em que a loucura de dom Sebastião é apresentada de maneira solene e teatral. Assim como houve espectadores que acharam "pobre" o primeiro filme, houve outros que acharam "empolado" o segundo, dando prova de ignorância daquilo que é importante para a compreensão do mundo de hoje.

O salvador da pátria
Em "Um Filme Falado", há uma resposta falsa e irônica dada pela professora à filha. A menina pergunta se, ainda hoje, os cristãos combatem os mouros. A mãe sorri e responde que não. O "sebastianismo", isto é, a espera do rei salvador que morreu combatendo os mouros e que voltará, num dia de nevoeiro, foi um mito tão danoso para Portugal quanto para o Brasil, onde ele ainda persiste, sob a forma imaginária do miraculoso salvador da pátria.
As escalas feitas pelo navio se fazem em cidades que foram fundamentais para a civilização ocidental: Marselha, a partir de onde os gregos difundiram sua cultura, Nápoles e Pompéia, Atenas, o berço de tudo, Istambul, a antiga Constantinopla da biblioteca destruída, Cairo, Aden, onde já entramos plenamente no mundo muçulmano. Em cada uma dessas cidades, restos, ruínas. Ruínas causadas por desastres guerreiros, naturais ou, simplesmente, pelo tempo. O que Oliveira mostra, tão claramente que parece escusado dizê-lo, é o que dizia Valéry: "Agora sabemos que as civilizações são mortais". A menina pergunta, candidamente: "O que é civilização?", e a mãe responde: "É o que os homens vão criando por sua inteligência através dos tempos".
Pelo menos dois grandes temas, que estão ligados, atravessam o filme: o da sabedoria e o da proteção. Atena, a deusa da sabedoria, protegia a cidade com sua estátua monumental. Mas a deusa foi roubada, e a cidade, agora, só tem os gregos para protegê-la. Santa Sofia, em Istambul, não era uma santa, mas a santa Sabedoria. Depois de ter sido igreja cristã, tornou-se mesquita e agora é apenas museu. A "casa do Poeta", em Pompéia, era protegida pelo cão: "Cave canem". Agora, o azulejo que representava o poeta e os músicos está no museu, só o cão permanece ali, inofensivo. A esse cão corresponde o cachorrinho real que, em Marselha, está na triste situação de ser arrastado para a água e de resistir, como pode, ao naufrágio. Ele se chama "Farrusca", que significa espada velha, enferrujada.

Império fraco
Três mulheres sobem ao navio, nas escalas: em Marselha, uma francesa feminista e neoliberal, mulher de negócios essencialmente prática e gananciosa. Em Nápoles, uma italiana, ex-atriz cuja vida se resume ao amor pelo marido morto e à tristeza de não ter tido filhos. Em Atenas, uma cantora famosa que acha sentido em sua vida madura pela dedicação ao ensino de sua arte. Três tipos de mulher: a executiva, a amorosa, a artista. O comandante do navio é norte-americano, em clara alusão ao comando sob o qual estão a Europa e o mundo. Mas nada é simples e maniqueísta no filme: esse norte-americano é gentil, quase pede desculpas por todos falarem inglês no mundo atual e age até o fim como uma boa pessoa, impotente e perplexa como todos nós.
Durante o jantar no navio, o comandante e cada uma das três mulheres fala em sua língua natal, e todos se compreendem, o que até é verossímil para o inglês, o francês e o italiano, mas inverossímil para o grego, que no entanto está na base de todas essas línguas. Na conversa, há alguns laivos de esperança: uma convivência pacífica na torre de Babel (onde a mulher de negócios logo pensa em instalar um shopping), um mundo dirigido pelas mulheres, a busca de "valores de convergência" entre as culturas. Mas tudo é tratado com certa displicência, como mera conversa da salão que se dissipa em galanteios.
A portuguesa não é inicialmente convidada para a mesa do comandante. Fica com a filha numa mesa ao lado, na situação marginal que há séculos é a de Portugal, mesmo depois do ingresso do país na União Européia, na qual Oliveira parece descrer. Quando finalmente vai à mesa do comandante, ela se dispõe gentilmente a falar inglês, porque embora seja uma mesa poliglota, ninguém ali fala português. Só o comandante entende o português, por ter estado no Brasil.
Oliveira não deixa de nos fazer observar que, enquanto o grego só é falado na Grécia, o português é falado em numerosas partes do mundo. O império português é lingüístico, mas o que sabemos é que se trata de um império fraco, porque muitos de seus falantes são pobres ou analfabetos. Um quinto império imaginário, em que apenas o Brasil tem chances de alcançar, um dia, algum destaque. Isso se deixar de esperar por dom Sebastião.
A pedido do comandante, a grega canta uma canção. É uma canção singela, plangente, sobre uma laranjeira destruída pelos "ventos do norte". Essa canção, veremos alguns instantes depois, é um réquiem. Agora que todo o mundo já viu o filme, posso falar do final. A morte da professora e de sua filha, na explosão do navio, causada por bombas terroristas colocadas no porto de Aden, é a vitória da irracionalidade, o absurdo puro e simples. O atraso das duas, que as impede de alcançar a balsa salvadora, é causado pelo desejo da menina de salvar a boneca muçulmana que lhe dera o comandante. Uma boneca pretensamente protegida por uma menina, duas mulheres sem proteção, e tudo vai pelos ares, como a laranjeira ao vento.
Só fica o espanto do comandante, o nosso espanto diante do que é tão inadmissível que a câmera não o mostra. Nenhuma explicação, nenhuma conclusão. Uma das perguntas supostamente inocentes da menina fora: "Mãe, em que Idade Média estamos agora?". Resta, porém, o misterioso ovo do castelo napolitano que, segundo a lenda, protegeria a cidade. Alguma coisa de novo poderá ainda nascer das ruínas mediterrâneas?

Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autora de, entre outros, "Altas Literaturas"(Cia. das Letras).


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