São Paulo, domingo, 19 de junho de 2005

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Filmes na lata de lixo

Lógica de financiamento e "gargalo" na distribuição fazem com que o cinema brasileiro produza para não exibir

CARLOS ALBERTO DÓRIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um cinema nacional vigoroso seria o mesmo que "acharmos a nossa expressão", conforme fórmula modernista de Jorge de Lima [poeta alagoano]. Mas por que 365 longas-metragens em produção não nos dão essa sensação de achamento? Por que o divórcio entre o país e oseu cinema, quando o cinema argentino vive um momento de grande sintonia?
Digamos que cinema é filme na tela, como futebol é bola na rede. Mas sobram filmes ou faltam salas de projeção, como se houvesse um cinema estrangulado, a ponto de o governo, a toque de caixa, ter montado um programa especial no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social para financiar salas de cinema, preocupado com a queda da participação do cinema nacional no mercado (estimada em 10%). Mas deixemos momentaneamente o objeto de fruição (o filme) para observar o seu modo de produção.
Ao tempo do cinema como vanguarda da indústria cultural, o desenvolvimentismo e o "cinema nacional" andavam juntos, determinando o apoio público a esta pedagogia civilizatória inspirada na experiência soviética (Eisenstein). Faltava-nos uma revolução e uma nova cultura vertebrando a nova arte, mas Glauber Rocha indicou uma vereda que uniu Estado, intelectuais e uma certa idéia de povo. A busca de sustentabilidade para essa aliança gerou o modo de produção cinematográfico e os seus sucessivos "modelos de negócio".


Não há consumo, mas a produção não pára


Hoje, a Ancine tem uma definição clara do que seja "cinema nacional": empresa, diretor, autor, artistas e técnicos brasileiros; um conselho que decide as políticas, composto por servidores públicos e pessoas do ramo mas que "não podem ser sócios-controladores de empresas relacionadas com o cinema" (supondo possível despir o empresário dos próprios interesses e reter a sua experiência abstrata para favorecer o interesse público).
Essa desincorporação de interesses é a chave do nosso cinema, pois o Estado passa a ser o novo "corpo" que o defende das ameaças de outros agentes econômicos, em especial o capital externo. De fato, o Estado foi eficaz para impedir que esse capital controlasse a produção, mas não a distribuição e a exibição; o que parecia suficiente, pois os intelectuais são produtores de cultura, não mercadores de cultura.
Funcionários públicos Mas a integração da burguesia brasileira no mundo globalizado e a volatilização dos projetos "nacionais" foi também o fim de um horizonte civilizatório e já não há necessidade desse espelho de Próspero onde se refletir. Então, o cinema tentou se aninhar no mercado, mas esbarrou nos velhos monopólios, agora controlando os multiplexes que ancoram a cultura de shopping-centers, onde o consumo do "nacional" é diminuto.
Não há consumo, mas a produção não pára. Por quê? Porque a diretriz do Estado é proteger o produtor e resolver a crise de superprodução comprando o "excedente" com a renúncia fiscal Äo que gera o "filme na lata", ou filme que jamais será exibido. Não se marca gol nesse jogo. Dos 365 longas-metragens em produção nos próximos cinco anos, 337 não possuem contrato de distribuição. Com a média anual de 15 filmes exibidos, serão necessários 20 anos para consumir o estoque.
Assim, o dinheiro público parece desperdiçado, e os cineastas, uma espécie esdrúxula de funcionários públicos sem concurso, apelidados de "coronéis do acetato", que negociam os seus próximos filmes como deputados e senadores negociam as suas "emendas parlamentares". Mas como o Estado incorporou o sujeito mercantil do negócio, produtores e contribuintes são, ambos, vítimas da perversidade do modo de produção.
Paradoxalmente, a "salvação" do cinema (e aqui voltamos ao objeto de fruição) está na dissolução do seu atual modo de produção, o que se dará pela convergência das várias mídias, deixando o cinema de ser a mídia hegemônica. Isso não significará a incorporação dos excluídos no universo de consumidores culturais, ampliando o mercado do cinema, mas criará um novo modo de produção que poderá ser modelado politicamente com vistas à democracia moderna.

Carlos Alberto Dória é sociólogo e escreve
regularmente sobre gastronomia na revista
eletrônica "Trópico". Â


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