|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Memórias da terra amarga
Amanhã se completam cem anos do nascimento do poeta
italiano Salvatore Quasimodo, que ganhou o Nobel em 1959
Fernando Monteiro
especial para a Folha
O único dos agraciados com o
Nobel que viu o prêmio estigmatizá-lo: assim se poderia
emoldurar o perfil de Salvatore
Quasimodo, siciliano que ganhou a cobiçada láurea em 1959, antes dos 60 anos e
para a Itália no lugar de pelo menos dois
poetas mais velhos e mais amados. Um
dos mais importantes nomes da moderna poesia italiana, Quasimodo nasceu
em 20 de agosto de 1901, numa Siracusa
que ele costumava recordar como mais
grega do que italiana: "No feroz calor da
planície de enxofre, tilintava sem interrupção a sineta que anunciava os raríssimos trens. As aldeias dos arredores se
chamavam Megara, Iblea e Sferro. Eu estava cercado da Grécia e da aspereza de
suas paisagens. Fui batizado em Roccalumera, a alguns quilômetros de Taormina. Minha avó era uma autêntica grega
de Patras".
Como pôde acontecer de a Itália ficar
"insatisfeita"? A Academia Sueca havia
buscado, longe, o filho do "sono e da falta
da chuva", na região pobre e desvalida
das luzes dos centros culturais que se interrogavam: por que Quasimodo?
Lição dos clássicos
A própria pergunta era uma daquelas injustiças típicas, insuladas no caminho de pedras da
literatura: o mundo cultural italiano esperava, há muito, por um Nobel peninsular para Giuseppe Ungaretti ou para
Eugenio Montale. Haveria até um terceiro lugar para o triestino Umberto Saba
(duplamente marginal, na geografia e na
cultura, por ter nascido em Trieste e por
nunca haver deixado a cidade "impenetrada" das vanguardas do começo do século) no coração encolhido do país que
recebeu o prêmio para o siciliano com o
dar de ombros e o velho olhar, para o lado, dos romanos decepcionados.
Pois era, já, o "país amargo", que o século vinha preparando para perder as últimas ilusões políticas desde os tempos
da juventude de Salvatore até a corrupção dos ideais da Resistência, no difícil
pós-guerra.
"Em 1919, deixei a Sicília e fui para Roma. Embora frequentando a Escola Politécnica, eu estava constantemente à procura de um trabalho para ganhar minha
vida. Assim, tornei-me desenhista técnico numa grande empresa de construção,
caixeiro numa casa de ferragem e empregado numa loja da Piazza Colonna. Minha carreira terminou entre policiais a
cavalo, porque eu havia organizado uma
greve justamente na véspera de entrar
em vigor a lei que as proibia. Nesse meio
tempo eu terminara meus estudos e o
problema do trabalho se me apresentava
novamente. Meus amigos queriam fazer-me ingressar na imprensa, mas eu
preferi trabalhar na engenharia civil. Enviaram-me para Reggio Calabria e desse
modo eu retornei ao Sul e à poesia."
Tradutor de Safo e de Catulo, de Anacreonte e de Virgílio, Quasimodo aprendeu com os clássicos a lição de claridade
e frescor ignorada pelos parnasianos, de
modo que a simbologia clássica não o interessa para nada se não for para lavar do
limo a palavra luminosa (e para apurar a
linha melódica tornada austera e trágica
com o tom de Leopardi). Poeta italianíssimo, o autor de "Oboé Submerso" na
verdade "complicara" o hermetismo
com a sua vertente de um classicismo renovado pela memória íntima. Ele canta
os afrescos, mas eles jazem em cacos pisados por algum caçador da infância silenciosa.
Sua mão pode tocar numa ânfora
etrusca, numa máscara carcomida, mas
a cal nova dos muros lhe recorda um colo vivo, quente e queimado pelo sol que
inunda o campo limpo e as casas destelhadas: "A minha terra é uma "dor ativa",
à qual uma parte da memória recorre,
quando nasce o diálogo interior com um
ser amado, quer ele esteja distante ou tenha passado à outra margem de afetos.
Poderia dizer ainda: talvez seja por isso
que as imagens nasçam sempre no meu
próprio dialeto. Meu limite é a Sicília: nela há antigas civilizações, necrópoles, ruínas que se destacam na relva, minas de
sal e enxofre e mulheres que choram durante séculos os filhos mortos, os furores
contidos ou desencadeados...".
Tempo anulado
Esse "limite" da
poesia de Quasimodo é, talvez, o valor
mais perene incorporado à obra do poeta que a guerra viu emergir como ser responsável pelo outro "agora" na hora
agônica que prova os mitos longínquos
com a dor da carne mortal que só conhece a breve felicidade do instante (e só pode recolher na sombra a duvidosa dádiva
do presente interminável).
Diferentemente do tempo "pulverizado" de Montale, há algo como um tempo
"anulado" na duração quasimodiana,
um tom acima daquele "hermetismo" a
que, no final, Salvatore só pertencia por
se situar, também ele, na vaga de libertação da longa "doença" dannunziana (vaga que reuniu em torno da revista florentina "Solaria" alguns jovens que se tornariam os mais importantes nomes da moderna literatura italiana).
Para demonstração disso, escolhemos
traduzir um poema cujo acento, essencial, de fragmentação e extatismo, expressasse o mais possível a estranha música conseguida pelo ouvido de fauno do
poeta do visível/invisível. "Uma Ânfora
de Cobre", do livro "La Terra Impreggiabile (1955-1958)", parte da evocação mais
íntima para a fixação do mundo evanescente de formas que desaparecem com a
própria visão que se harmoniza no limite
da finitude.
Salvatore Quasimodo morreu em Nápoles, em 1968.
Fernando Monteiro é poeta e romancista, autor
de "A Múmia do Rosto Dourado do Rio de Janeiro"
(ed. Globo), "Aspades, ETs Etc." e "A Cabeça no
Fundo do Entulho" (ed. Record), entre outros.
Texto Anterior: O enigma da pureza Próximo Texto: Uma ânfora de cobre Índice
|