São Paulo, domingo, 19 de agosto de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Memórias da terra amarga

Amanhã se completam cem anos do nascimento do poeta italiano Salvatore Quasimodo, que ganhou o Nobel em 1959

Fernando Monteiro
especial para a Folha

O único dos agraciados com o Nobel que viu o prêmio estigmatizá-lo: assim se poderia emoldurar o perfil de Salvatore Quasimodo, siciliano que ganhou a cobiçada láurea em 1959, antes dos 60 anos e para a Itália no lugar de pelo menos dois poetas mais velhos e mais amados. Um dos mais importantes nomes da moderna poesia italiana, Quasimodo nasceu em 20 de agosto de 1901, numa Siracusa que ele costumava recordar como mais grega do que italiana: "No feroz calor da planície de enxofre, tilintava sem interrupção a sineta que anunciava os raríssimos trens. As aldeias dos arredores se chamavam Megara, Iblea e Sferro. Eu estava cercado da Grécia e da aspereza de suas paisagens. Fui batizado em Roccalumera, a alguns quilômetros de Taormina. Minha avó era uma autêntica grega de Patras". Como pôde acontecer de a Itália ficar "insatisfeita"? A Academia Sueca havia buscado, longe, o filho do "sono e da falta da chuva", na região pobre e desvalida das luzes dos centros culturais que se interrogavam: por que Quasimodo?

Lição dos clássicos
A própria pergunta era uma daquelas injustiças típicas, insuladas no caminho de pedras da literatura: o mundo cultural italiano esperava, há muito, por um Nobel peninsular para Giuseppe Ungaretti ou para Eugenio Montale. Haveria até um terceiro lugar para o triestino Umberto Saba (duplamente marginal, na geografia e na cultura, por ter nascido em Trieste e por nunca haver deixado a cidade "impenetrada" das vanguardas do começo do século) no coração encolhido do país que recebeu o prêmio para o siciliano com o dar de ombros e o velho olhar, para o lado, dos romanos decepcionados. Pois era, já, o "país amargo", que o século vinha preparando para perder as últimas ilusões políticas desde os tempos da juventude de Salvatore até a corrupção dos ideais da Resistência, no difícil pós-guerra. "Em 1919, deixei a Sicília e fui para Roma. Embora frequentando a Escola Politécnica, eu estava constantemente à procura de um trabalho para ganhar minha vida. Assim, tornei-me desenhista técnico numa grande empresa de construção, caixeiro numa casa de ferragem e empregado numa loja da Piazza Colonna. Minha carreira terminou entre policiais a cavalo, porque eu havia organizado uma greve justamente na véspera de entrar em vigor a lei que as proibia. Nesse meio tempo eu terminara meus estudos e o problema do trabalho se me apresentava novamente. Meus amigos queriam fazer-me ingressar na imprensa, mas eu preferi trabalhar na engenharia civil. Enviaram-me para Reggio Calabria e desse modo eu retornei ao Sul e à poesia." Tradutor de Safo e de Catulo, de Anacreonte e de Virgílio, Quasimodo aprendeu com os clássicos a lição de claridade e frescor ignorada pelos parnasianos, de modo que a simbologia clássica não o interessa para nada se não for para lavar do limo a palavra luminosa (e para apurar a linha melódica tornada austera e trágica com o tom de Leopardi). Poeta italianíssimo, o autor de "Oboé Submerso" na verdade "complicara" o hermetismo com a sua vertente de um classicismo renovado pela memória íntima. Ele canta os afrescos, mas eles jazem em cacos pisados por algum caçador da infância silenciosa. Sua mão pode tocar numa ânfora etrusca, numa máscara carcomida, mas a cal nova dos muros lhe recorda um colo vivo, quente e queimado pelo sol que inunda o campo limpo e as casas destelhadas: "A minha terra é uma "dor ativa", à qual uma parte da memória recorre, quando nasce o diálogo interior com um ser amado, quer ele esteja distante ou tenha passado à outra margem de afetos. Poderia dizer ainda: talvez seja por isso que as imagens nasçam sempre no meu próprio dialeto. Meu limite é a Sicília: nela há antigas civilizações, necrópoles, ruínas que se destacam na relva, minas de sal e enxofre e mulheres que choram durante séculos os filhos mortos, os furores contidos ou desencadeados...".

Tempo anulado
Esse "limite" da poesia de Quasimodo é, talvez, o valor mais perene incorporado à obra do poeta que a guerra viu emergir como ser responsável pelo outro "agora" na hora agônica que prova os mitos longínquos com a dor da carne mortal que só conhece a breve felicidade do instante (e só pode recolher na sombra a duvidosa dádiva do presente interminável).
Diferentemente do tempo "pulverizado" de Montale, há algo como um tempo "anulado" na duração quasimodiana, um tom acima daquele "hermetismo" a que, no final, Salvatore só pertencia por se situar, também ele, na vaga de libertação da longa "doença" dannunziana (vaga que reuniu em torno da revista florentina "Solaria" alguns jovens que se tornariam os mais importantes nomes da moderna literatura italiana).
Para demonstração disso, escolhemos traduzir um poema cujo acento, essencial, de fragmentação e extatismo, expressasse o mais possível a estranha música conseguida pelo ouvido de fauno do poeta do visível/invisível. "Uma Ânfora de Cobre", do livro "La Terra Impreggiabile (1955-1958)", parte da evocação mais íntima para a fixação do mundo evanescente de formas que desaparecem com a própria visão que se harmoniza no limite da finitude.
Salvatore Quasimodo morreu em Nápoles, em 1968.


Fernando Monteiro é poeta e romancista, autor de "A Múmia do Rosto Dourado do Rio de Janeiro" (ed. Globo), "Aspades, ETs Etc." e "A Cabeça no Fundo do Entulho" (ed. Record), entre outros.



Texto Anterior: O enigma da pureza
Próximo Texto: Uma ânfora de cobre
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.