São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2006

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Uma nova história

Biógrafo de Hitler, o inglês Ian Kershaw diz que terrorismo atual explica interesse pelo livro

MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO

Desde os anos 1970, o historiador britânico Ian Kershaw se dedica ao estudo do nazismo. Professor na Universidade de Sheffield, no Reino Unido, ele é famoso por suas biografias de Hitler. Foi discípulo do historiador alemão Martin Broszat, que abordou a ideologia nazista relativizando a sua caracterização como totalitarismo.
Broszat preferia reduzir o nazismo a emoções primitivas e irracionais, marcadas pelo anticomunismo, anti-semitismo e pela idéia do "renascimento" da nação alemã. Kershaw é autor dos elogiados "Hitler, 1936-2000 - Nemesis" (2000) e "Hitler, 1889-1936 - Hubris" (1998) -ambos lançados no Reino Unido pela Penguin. No Brasil já teve editado seu "Hitler - Um Perfil do Poder" (ed. Jorge Zahar), biografia do ditador nazista que escreveu em 1991.
A seguir, o acadêmico comenta a evolução na abordagem literária de personagens nazistas e como a luta contra o terrorismo globalizado tem se beneficiado dos estudos históricos sobre o nazismo.

FOLHA - Por que só hoje se está dando voz a personagens "nazistas" na literatura, como no caso de "As Benevolentes", de Jonathan Littell?
IAN KERSHAW
- Acho que devido à passagem do tempo. Mas talvez haja outro ponto relevante. Atualmente, com os terroristas, procuramos entender de alguma forma como suas mentes funcionam, o que causa o terrorismo.
Acho que existe mais interesse em relação ao nazismo porque se procura entender a razão pela qual os responsáveis por esses crimes horríveis contra a humanidade agiram da forma como agiram.
Tentamos capturar suas mentalidades, ainda que deformadas. É por isso, talvez, que em literatura agora seja possível dar "voz narrativa" a personagens nazistas.

FOLHA - Por que temas ligados ao nazismo estão sendo revalorizados com força na literatura e no cinema? O assunto está sendo mais abordado pelos historiadores?
KERSHAW
- Se houve realmente essa revalorização, acho que tem a ver também com a passagem do tempo -já faz mais de 60 anos que a era do nazismo se foi- e com uma diminuição na crueza das emoções em uma geração que nunca experimentou o fenômeno. Como objeto de estudo histórico, não acho que esteja voltando a ser abordado. O nazismo continua a ser, como sempre foi, um tópico central de pesquisa histórica.

FOLHA - A Alemanha e a Europa estão mais "abertas" a discussões delicadas a respeito do passado e do Holocausto?
KERSHAW
- A Alemanha tem se engajado em debates públicos acalorados sobre o passado nazista desde os anos 60. O Holocausto tem sido um tema público de discussão constantemente, há mais de 20 anos. As tentativas dos alemães de enfrentarem o seu passado têm sido recomendáveis em vários aspectos. Em outros lugares, demorou mais tempo. E é um processo ainda longe de se encerrar.
Mas tem se acentuado desde o fim do bloco soviético e da abertura dos arquivos da Europa Oriental.
Também contribuiu o aumento de pressão, por exemplo, com a recuperação de obras de arte roubadas pelos nazistas ou pelas indenizações aos trabalhadores escravizados. Essas questões, de diferentes maneiras, forçaram as sociedades a reabrir períodos negros de suas próprias histórias.

FOLHA - Terrorismo e globalização mudaram a "percepção" das pessoas em relação aos horrores da Segunda Guerra?
KERSHAW
- Não acho que a globalização e o terrorismo alteraram significativamente a percepção em relação à Segunda Guerra. Qualquer reflexão ainda considera essa guerra, e o genocídio que fez parte dela, como a era definidora do século 20. Contudo, o aniversário de 60 anos do fim da guerra, em 2005, marcou, de alguma forma, uma cesura. A geração que lutou na guerra ou que a vivenciou está morrendo.
Isso significa que a Segunda Guerra não está mais presente na memória como já esteve. Ao mesmo tempo, desde o 11 de Setembro, entramos em uma nova era, dominada pela ameaça do terrorismo global e por questões que têm a ver com o Oriente Médio e que não são determinadas pelo legado da Segunda Guerra.
As TVs e os jornais abordam diariamente o terrorismo. Conseqüentemente, a Segunda Guerra está em algum grau sendo apagada da consciência. Mesmo assim, ainda que não esteja presente na consciência como antes, a "percepção" em relação a ela mudou pouco.


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