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Documento distorcido
Diretor de "Shoah", Claude Lanzmann acusa Littel de fazer de seu personagem
um ventríloquo dos livros
de história
CLAUDE LANZMANN
Existe em "As Benevolentes" um paradoxo
incrível. Jonathan Littell declarou em entrevistas que os soldados da SS não têm palavra, que
eles não falam. Também não
têm memória. "Eu nem sabia
mais o que era uma lembrança", diz em certo momento
Max Aue, o SS que é o personagem principal do livro.
Tudo isso é verdade, estou
bem situado para saber: durante a filmagem de "Shoah", tive
de usar mil estratagemas para
arrancar dos nazistas suas palavras e suas imagens. Ofereci-lhes dinheiro para que concordassem em me encontrar, filmava-os com uma câmera escondida, correndo grandes riscos, e às vezes não conseguia
fazê-los falar.
Ora, o "herói" de Littell fala
torrencialmente durante mais
de 900 páginas -esse homem
que não sabe mais o que é uma
lembrança se lembra de absolutamente tudo. Temos o direito de nos perguntar: Aue está
encarnado? Aue é um homem?
Aue existe? Ele fala como um
livro, como todos os livros de
história lidos por Littell.
Memória e história
No momento em que as últimas testemunhas do Shoah desaparecem e os judeus se inquietam porque a memória vai
se tornar história, Jonathan
Littell inverte os termos da alternativa e dá a seu SS, um "herói" sem memória, a história
como memória.
Outra inversão de termos: será que hoje leremos "As Benevolentes" ao invés de "A Destruição dos Judeus da Europa",
do historiador Raul Hilberg?
Será que o romance vai substituir a história? Eu me interrogo
sobre a maneira como esse livro pode ser recebido.
Por exemplo, Littell escreve
que os nazistas traçavam um
paralelo entre o nacional-socialismo e a lei dos judeus.
Era verdadeiramente uma
obsessão dos nazistas, ele não
se engana. Mas escrever isso
sem precaução, no momento
da ascensão do anti-semitismo,
da inversão sistemática dos papéis e emblemas -estrela de
Davi, suástica- que efeito pode
produzir?
Em outra parte, um SS diz a
Aue que descobriu no pátio de
uma prisão centenas de cadáveres de nacionalistas ucranianos: "Foram os judeus que fizeram isso". Nem uma palavra de
explicação suplementar.
Sim, a documentação de Littell é formidável, não há um erro, é de uma erudição perfeita.
Ele leu todas as obras dos historiadores, os depoimentos dos
agentes da época, as minutas
dos processos. Ele conhece
muito bem "Shoah", o qual diz
que foi para ele um estopim.
Devido sobretudo a seu enorme trabalho, às vezes me senti
próximo dele ao longo da leitura e dos diversos estados pelos
quais me fez passar. Quase todos os personagens do romance (exceto Max Aue e alguns
outros) são reais. Assim, Otto
Ohlendorf, Paul Blobel e Heinz
Schubert, chefes das unidades
móveis de extermínio, foram
condenados à morte no processo dos Einsatzgruppen [os
"grupos de mobilização" que
chefiavam], depois da guerra.
Verdade preexistente
Os dois primeiros foram enforcados; Schubert -descendente do compositor- foi agraciado pelo alto comissário americano na Alemanha, John
MacCloy. Tentei entrevistá-lo
em sua casa com uma câmera
escondida, em 1979, mas fui
apanhado: seus filhos e amigos
deles me quebraram a cara.
Persegui Werner Best, que,
em "As Benevolentes", é um
dos mentores de Max Aue. Jantei em Munique com Brun]
Streckenbach, que formou os
Einsatzgruppen em Pretsch e
em Duben. Mas a exatidão da
documentação é uma condição
necessária e não suficiente. Em
si, ela não diz como o livro vai
marcar -ou não- os espíritos.
Uma ficção bem-sucedida revela a verdade, conduz ao cerne
das coisas. Aqui, a verdade
preexiste ao personagem de ficção, criado como um ventríloquo dos livros de história.
Para humanizá-lo e tentar
lhe dar verossimilhança, Littell
lhe confere uma psicologia invasora, atribui-lhe náuseas, vômitos, diarréias fabulosas, perversões sexuais e reflexões metafísicas. Essa ficção é inútil para o leitor que já sabe e que não
aprenderá mais nada com ela.
Ela não ajudará o leitor que não
sabe e que nada aprenderá.
Saturação do cérebro
Pois esse livro é de uma leitura muito difícil. O acúmulo de
siglas, episódios, horrores, o
acúmulo de tudo, produz uma
saturação do cérebro. Mas Littell é um grande narrador. Algumas passagens sobre o caos
da guerra e os massacres são
magníficas e insuportáveis.
Mas elas desaparecem rapidamente, levadas na indiferenciação da logorréia -equivalente verbal às diarréias que
Max Aue sofre. Nada se fixa, nada resta, tudo se mistura.
Eu quase não brinco quando
lhes digo que esse livro só pode
ser compreendido de cabo a rabo por duas pessoas: Raul Hilberg e eu... "Shoah" segue o procedimento inverso: nenhum
voyeurismo do horror, nenhum cadáver na tela e nenhuma psicologia. Essa foi minha
lei impiedosa.
Em "Shoah", quando os judeus falam, jamais dizem "eu",
dizem "nós"; eles falam em nome de seu povo, são os porta-vozes dos mortos.
Quando eu forço os nazistas a
falar, digo-lhes: "Não estamos
aqui para falar de vocês, mas do
que aconteceu e de como aconteceu". Littell, ao contrário, é
fascinado pelo horror e o cenário da morte. E seu livro está
bem mais próximo de "Kaputt"
de Malaparte [Bertrand Brasil]
do que de "Guerra e Paz", de
Tolstói, ou de "Vida e Destino",
de Vassili Grossman, como se
afirmou rapidamente.
CLAUDE LANZMANN é cineasta e diretor da
revista "Les Temps Modernes".
Este texto saiu na "Nouvel Observateur".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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