São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2006

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Documento distorcido

Diretor de "Shoah", Claude Lanzmann acusa Littel de fazer de seu personagem um ventríloquo dos livros de história

CLAUDE LANZMANN

Existe em "As Benevolentes" um paradoxo incrível. Jonathan Littell declarou em entrevistas que os soldados da SS não têm palavra, que eles não falam. Também não têm memória. "Eu nem sabia mais o que era uma lembrança", diz em certo momento Max Aue, o SS que é o personagem principal do livro.
Tudo isso é verdade, estou bem situado para saber: durante a filmagem de "Shoah", tive de usar mil estratagemas para arrancar dos nazistas suas palavras e suas imagens. Ofereci-lhes dinheiro para que concordassem em me encontrar, filmava-os com uma câmera escondida, correndo grandes riscos, e às vezes não conseguia fazê-los falar.
Ora, o "herói" de Littell fala torrencialmente durante mais de 900 páginas -esse homem que não sabe mais o que é uma lembrança se lembra de absolutamente tudo. Temos o direito de nos perguntar: Aue está encarnado? Aue é um homem? Aue existe? Ele fala como um livro, como todos os livros de história lidos por Littell.

Memória e história
No momento em que as últimas testemunhas do Shoah desaparecem e os judeus se inquietam porque a memória vai se tornar história, Jonathan Littell inverte os termos da alternativa e dá a seu SS, um "herói" sem memória, a história como memória.
Outra inversão de termos: será que hoje leremos "As Benevolentes" ao invés de "A Destruição dos Judeus da Europa", do historiador Raul Hilberg? Será que o romance vai substituir a história? Eu me interrogo sobre a maneira como esse livro pode ser recebido.
Por exemplo, Littell escreve que os nazistas traçavam um paralelo entre o nacional-socialismo e a lei dos judeus. Era verdadeiramente uma obsessão dos nazistas, ele não se engana. Mas escrever isso sem precaução, no momento da ascensão do anti-semitismo, da inversão sistemática dos papéis e emblemas -estrela de Davi, suástica- que efeito pode produzir?
Em outra parte, um SS diz a Aue que descobriu no pátio de uma prisão centenas de cadáveres de nacionalistas ucranianos: "Foram os judeus que fizeram isso". Nem uma palavra de explicação suplementar.
Sim, a documentação de Littell é formidável, não há um erro, é de uma erudição perfeita. Ele leu todas as obras dos historiadores, os depoimentos dos agentes da época, as minutas dos processos. Ele conhece muito bem "Shoah", o qual diz que foi para ele um estopim.
Devido sobretudo a seu enorme trabalho, às vezes me senti próximo dele ao longo da leitura e dos diversos estados pelos quais me fez passar. Quase todos os personagens do romance (exceto Max Aue e alguns outros) são reais. Assim, Otto Ohlendorf, Paul Blobel e Heinz Schubert, chefes das unidades móveis de extermínio, foram condenados à morte no processo dos Einsatzgruppen [os "grupos de mobilização" que chefiavam], depois da guerra.

Verdade preexistente
Os dois primeiros foram enforcados; Schubert -descendente do compositor- foi agraciado pelo alto comissário americano na Alemanha, John MacCloy. Tentei entrevistá-lo em sua casa com uma câmera escondida, em 1979, mas fui apanhado: seus filhos e amigos deles me quebraram a cara.
Persegui Werner Best, que, em "As Benevolentes", é um dos mentores de Max Aue. Jantei em Munique com Brun] Streckenbach, que formou os Einsatzgruppen em Pretsch e em Duben. Mas a exatidão da documentação é uma condição necessária e não suficiente. Em si, ela não diz como o livro vai marcar -ou não- os espíritos.
Uma ficção bem-sucedida revela a verdade, conduz ao cerne das coisas. Aqui, a verdade preexiste ao personagem de ficção, criado como um ventríloquo dos livros de história. Para humanizá-lo e tentar lhe dar verossimilhança, Littell lhe confere uma psicologia invasora, atribui-lhe náuseas, vômitos, diarréias fabulosas, perversões sexuais e reflexões metafísicas. Essa ficção é inútil para o leitor que já sabe e que não aprenderá mais nada com ela.
Ela não ajudará o leitor que não sabe e que nada aprenderá.

Saturação do cérebro
Pois esse livro é de uma leitura muito difícil. O acúmulo de siglas, episódios, horrores, o acúmulo de tudo, produz uma saturação do cérebro. Mas Littell é um grande narrador. Algumas passagens sobre o caos da guerra e os massacres são magníficas e insuportáveis.
Mas elas desaparecem rapidamente, levadas na indiferenciação da logorréia -equivalente verbal às diarréias que Max Aue sofre. Nada se fixa, nada resta, tudo se mistura. Eu quase não brinco quando lhes digo que esse livro só pode ser compreendido de cabo a rabo por duas pessoas: Raul Hilberg e eu... "Shoah" segue o procedimento inverso: nenhum voyeurismo do horror, nenhum cadáver na tela e nenhuma psicologia. Essa foi minha lei impiedosa.
Em "Shoah", quando os judeus falam, jamais dizem "eu", dizem "nós"; eles falam em nome de seu povo, são os porta-vozes dos mortos. Quando eu forço os nazistas a falar, digo-lhes: "Não estamos aqui para falar de vocês, mas do que aconteceu e de como aconteceu". Littell, ao contrário, é fascinado pelo horror e o cenário da morte. E seu livro está bem mais próximo de "Kaputt" de Malaparte [Bertrand Brasil] do que de "Guerra e Paz", de Tolstói, ou de "Vida e Destino", de Vassili Grossman, como se afirmou rapidamente.


CLAUDE LANZMANN é cineasta e diretor da revista "Les Temps Modernes".
Este texto saiu na "Nouvel Observateur".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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