São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2006

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"Não lamento nada; fiz meu trabalho, só isso"

JONATHAN LITTELL

Irmãos humanos, permitam-me contar como tudo aconteceu. Vocês dirão que não são meus irmãos e que não querem saber. E é verdade, é uma história sombria, mas edificante também, um verdadeiro conto moral, posso garantir. Talvez um tanto longo, afinal de contas aconteceu muita coisa, mas, quem sabe, com um pouco de sorte, vocês não arranjam o tempo?
Além do mais, tem a ver com vocês, vão logo ver que tem a ver com vocês. Não pensem que eu quero convencer vocês disso ou daquilo; podem ficar com as suas opiniões. Se me resolvi a escrever, depois de tantos anos, é porque eu quero deixar tudo em ordem, para mim, não para vocês.
Passamos a vida rastejando feito uma lagarta, à espera da borboleta esplêndida e diáfana que guardamos em nós mesmos. E então o tempo passa, a ninfose não vem, continuamos em estado de larva, constatação aflitiva, mas fazer o quê? O suicídio, claro, é sempre uma opção.
Mas, para dizer a verdade, o suicídio não me seduz. Pensei muito a respeito, claro; e, se fosse o caso, eu faria o seguinte: apertaria uma granada contra o peito e partiria numa bela explosão de alegria. Uma granadinha redonda, eu tiraria o pino com delicadeza antes de soltar a trava, sorrindo ao barulhinho metálico da mola, o último que eu chegaria a ouvir, exceção feita às batidas do meu coração.
E, então, a felicidade, ou pelo menos a paz, e as paredes do escritório decoradas de farrapos humanos. As faxineiras que limpem, são pagas para isso, azar delas. Mas, como eu dizia, o suicídio não me seduz. De resto, não sei por quê -talvez por um resquício antigo de moral filosófica que me faz pensar que não viemos à terra para alcançar a felicidade. Mas então para quê? Não faço a menor idéia, para persistir, para matar o tempo enquanto o tempo não mata. E, sendo assim, como ocupação nas horas vagas, por que não escrever?
Não que eu tenha lá muitas horas vagas, sou um homem ocupado; tenho isso que chamam família, trabalho, responsabilidade, tudo isso toma tempo, não sobra muito para contar minhas memórias. Até porque eu tenho lá minhas memórias, uma quantidade considerável, aliás. Sou uma verdadeira fábrica de idéias. Poderia ter passado a vida produzindo memórias, mesmo que me paguem melhor, hoje em dia, para fabricar renda.
E, na verdade, eu poderia perfeitamente passar sem escrever. Afinal de contas, não é minha obrigação. Desde a guerra, sou um homem discreto; graças a Deus, ao contrário de meus velhos colegas, não precisei escrever minhas memórias para me justificar, pois não tenho nada a justificar, ou para ganhar a vida, pois a vida vai bem do jeito que está.

"Fui além da conta"
Uma vez, na Alemanha, numa viagem de negócios, eu estava conversando com o diretor de uma grande casa de lingerie para quem eu queria vender minha renda. Ele me fora recomendado por uns velhos amigos, de modo que, sem ter de perguntar nada, nós dois sabíamos em que pé estávamos. Depois da conversa, que, aliás, foi muito positiva, ele se levantou, foi até a estante e me deu um livro.
Eram as memórias póstumas de Hans Frank, o governador-geral da Polônia; o título era "Diante do Cadafalso". "Recebi uma carta da viúva", disse meu interlocutor. "Ela pagou a edição do manuscrito que redigiu após o processo e vende o livro para cobrir os gastos dos filhos. O senhor imagina, chegar a esse ponto? A mulher do governador-geral! Encomendei 20 exemplares para dar de presente. Ela me escreveu uma carta de agradecimento."
[...] O livro, aliás, era muito ruim [...]. Talvez estas minhas notas também sejam confusas e ruins, mas vou dar o melhor de mim para ser claro; posso garantir que continuarão livres de toda contrição. Não lamento nada; fiz meu trabalho, só isso; quanto a minhas histórias de família, que talvez eu conte também, só dizem respeito a mim mesmo; sei muito bem que, no fim da história, fui além da conta, mas então eu já não era eu mesmo, eu hesitava e o mundo inteiro estremecia ao meu redor, não fui o único a perder a cabeça, reconheçam.


Trecho extraído de "As Benevolentes".
Tradução de Samuel Titan Jr.


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