São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2002

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Para o historiador, continente busca um novo Outro ao qual se contrapor desde os atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos

Um projeto chamado Europa

por Timothy Garton Ash

As identidades se definem não apenas pelo que você defende e com quem você está, mas principalmente por quem ou o que você é contra, ou o que você acha que é contra você. Muitas vezes é um inimigo declarado, mas pode ser apenas um grande rival -o outro time, por assim dizer. No jargão dos estudos da identidade, é o Outro. A pergunta mais profunda que se faz à Europa nesta "guerra contra o terrorismo" é: quem ou o que é o Outro da Europa?
Durante a Guerra Fria a resposta era simples: o Outro da Europa era a ameaça do "Leste" comunista. Havia também outros Outros: o próprio passado sangrento da Europa era uma espécie de Outro histórico, e os EUA, um rival muito importante para gaullistas de todos os países. Mas esse era o principal.
Desde o fim da Guerra Fria a Europa é um continente em busca de seu Outro. Na última década, muitos membros da esquerda européia viram o Outro nos Estados Unidos. A Europa deveria ser definida como a não-América. A Europa preservaria um modelo diferente, mais "social", de capitalismo democrático, mesmo na era da globalização. A Europa seria um contrapeso para a rude e impiedosa superpotência sobrevivente, com sua confusa política no Oriente Médio, uma atuação lamentável na ajuda ao Terceiro Mundo e a tendência geral a impor seu peso em toda parte.
Essa opinião não desapareceu simplesmente depois de 11 de setembro. Na verdade houve muitas críticas aos Estados Unidos durante a guerra, e muitos europeus afirmam que o 11 de setembro mostra a necessidade de uma abordagem mais sofisticada, multilateral, de um mundo complexo e insubordinado. Mas é mais difícil alguém se definir basicamente contra os Estados Unidos numa época em que tanto os Estados Unidos quanto a Europa parecem estar sendo atacados como parte de uma civilização ocidental, cristã ou pós-cristã, materialista e decadente.
Nesse ataque, Osama bin Laden atribui à Europa a perspectiva de outro Outro, ao mesmo tempo muito novo e o mais antigo de todos. Pois a "Europa" era originalmente definida como uma entidade consciente no conflito com o mundo islâmico. O primeiro uso político do termo surge nos séculos 8º e 9º, quando os discípulos do profeta -os "infiéis", no jargão cristão- penetravam, pela força das armas ligada a uma fé que hoje chamaríamos de fanática, o baixo-ventre da Europa. A "Europa" inicia sua história contínua como conceito político nos séculos 14 e 15, primeiro como sinônimo e depois como sucessora da noção de cristandade dos cruzados -e mais uma vez seu Outro é simplesmente o mundo árabe-islâmico.
Existe uma verdadeira tentação de reviver esse antigo fantasma europeu. Um líder europeu sucumbiu de modo espetacular a essa tentação. O primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, disse a jornalistas italianos que devemos confiar na superioridade de nossa cultura. "O Ocidente, dada a superioridade de seus valores, tende a ocidentalizar e conquistar povos", ele disse. "Fez isso com o mundo comunista e parte do mundo islâmico, mas infelizmente uma parte do mundo islâmico está 1.400 anos atrasada." Esse sentimento seria aplaudido pelos cavaleiros templários e pelo papa Pio 11. Num ensaio vulcânico, a veterana jornalista italiana Oriana Falacci acrescentou: "Uma coisa temos de admitir. Nossas igrejas e catedrais são mais belas que suas mesquitas". E descreveu a imigração árabe para a Itália como uma "invasão secreta". Seria por acaso que essas duas vozes vêm de Roma, o centro da cristandade ocidental?
No entanto isso não se refere apenas à cristandade ocidental. A notável reação estratégica do presidente Vladimir Putin ao 11 de setembro, posicionando imediata e completamente a Rússia ao lado da Europa e do Ocidente, justifica-se ideologicamente por uma afirmação implícita de que o mundo da cristandade oriental, da ortodoxia, se posiciona na linha de frente contra a barbárie islâmica e "asiática" (exemplificada por Putin nos terroristas tchetchenos e afegãos). Samuel Huntington teceu a idéia de que uma linha divisória do choque de civilizações passa pela Europa Oriental, entre a "civilização ocidental", incluindo a Europa da cristandade ocidental e a América do Norte, e a "civilização ortodoxa". Putin retruca que a verdadeira linha corre entre um Ocidente que inclui toda a pós-cristandade e um Oriente ameaçador, exemplificado pela Ásia Central e islâmica. A voz da "terceira Roma" (Rússia) reforça as da segunda Roma. E Berlusconi de fato fez seu comentário hoje famoso depois de um café da manhã com Vladimir Putin.

A rejeição dos intelectuais
A maioria dos líderes e intelectuais europeus rejeitam, é claro, essa polêmica (re)construção de nossa identidade. Mesmo que algumas reivindicações de superioridade cultural fossem justificadas -e o registro da barbárie européia no século 20 deve nos tornar humildes nesse sentido-, seria loucura a Europa adotar essa retórica. Todo o Ocidente já corre o risco de alienar os muçulmanos do mundo inteiro no que George W. Bush certa vez chamou inadvertidamente de nossa "cruzada". Isso seria particularmente perigoso para a Europa, que se situa a poucos quilômetros ao norte e a oeste de um mundo islâmico e árabe diversificado, frustrado e na maior parte pobre, no que os europeus costumavam chamar de Oriente Próximo, na África do Norte, no Cáucaso e na Ásia Central. Seria sobretudo suicida para um continente em que talvez já vivam 20 milhões de muçulmanos.
Escrevo estas linhas sentado em North Oxford. O jornaleiro de quem comprei os jornais hoje é muçulmano. O farmacêutico local é muçulmano. A jovem que trabalha na lavanderia é muçulmana. Todos eles são simpáticos, educados, altamente competentes, falam um inglês perfeito e, até onde posso ver, aceitam a sociedade britânica e são totalmente aceitos por ela. Até 11 de setembro não me teria ocorrido descrevê-los como "muçulmanos", assim como eu não descreveria o gerente dos correios ou da loja de ferragens como "cristãos". Mas recentemente ouvimos pelo rádio as vozes de muçulmanos britânicos dizendo que o Islã, e não o Reino Unido, é seu país, e que eles vão lutar pelo Taleban. Representam uma pequena ou ínfima minoria dos muçulmanos britânicos, mas são os que aparecem nas manchetes, e pessoas simples começarão a suspeitar de todos os muçulmanos. Eu soube por amigos abalizados que até mesmo muçulmanos britânicos totalmente pacíficos, liberais e moderados já sentiam certa crise de identidade antes de 11 de setembro. É muito importante que nós os ajudemos a se sentir em casa.
Embora Londres e algumas outras cidades inglesas tenham sua parcela de radicais islâmicos, a integração cívica da maioria dos muçulmanos britânicos é relativamente avançada. As comunidades turcas na Alemanha, por exemplo, não são tão integradas. Um antigo político liberal alemão me disse que a Alemanha tem mais professores islâmicos extremistas do que a Turquia. E algumas semanas atrás, num bairro operário de Madri, conversei com um imigrante ilegal do Marrocos chamado Yacine, 23. Ele veio para a Espanha escondido embaixo de um ônibus. Não tem documentos para conseguir trabalho, por isso vive de furtos. "Eu vivo como um lobo", disse. Ele acha que a reação ocidental ao 11 de setembro foi dirigida contra o Islã? "Sim, é um ataque ao Islã." E acrescentou que muitos de seus parentes no Marrocos "acham que os judeus participarão do ataque e eu também penso assim".
As pessoas não serão tranquilizadas simplesmente pelos pronunciamentos do presidente Bush ou de Tony Blair, como estudiosos do Corão recém-saídos do forno, de que a mensagem de Osama bin Laden é uma perversão do islamismo. Como afirmou o escritor francês Olivier Roy, precisamos de uma reflexão muito mais profunda sobre o que significa falar em muçulmanos e europeus ou em "Islã europeu". Essa idéia em si desafia profundas hipóteses sobre a Europa como pós-cristandade, que muitas vezes se percebem sob a elevada retórica da unificação européia. (Você pode retrucar que a decisão da UE de admitir a Turquia contradiz essa afirmação, e é um passo importante, mas a Turquia está sendo encorajada exatamente para que não se torne um país islâmico.)
Devemos portanto esperar que esse último novo-velho Outro seja imediatamente guardado em sua caixa, e a tampa firmemente fechada, embora alguns muçulmanos já suspeitem de que Berlusconi estivesse simplesmente dizendo o que os europeus realmente pensam. Enquanto isso, o Outro russo praticamente desapareceu, especialmente se Putin mantiver sua rota pró-Ocidente. O Outro americano continua sendo um candidato, mas que parece bastante deslocado no mundo pós-11 de setembro. Afinal não seria adequado, pois na verdade não são duas civilizações separadas, mas uma só, embora contenham um amplo espectro de modelos sociais, econômicos e políticos que vão desde a direita americana até a esquerda francesa. E não há outro Outro à vista.
Portanto a tarefa dos que, como eu, acreditam em um projeto chamado "Europa" é construir uma identidade européia forte e positiva, que una as pessoas emocionalmente a um conjunto de instituições, sem a ajuda de um Outro claro e presente. A "guerra contra o terrorismo" esclarece essa tarefa, mas também a complica. Por enquanto devo concluir que este é mais um momento de definição em que a Europa se recusa a ser definida.


Timothy Garton Ash é diretor do Centro de Estudos Europeus no St. Anthony's College, em Oxford. Seu livro mais recente é "History of the Present".

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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