São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2002

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Os escritores Philippe Sollers e Cees Nooteboom discutem a necessidade de abandonar a idéia de uma grande Europa

Uma democracia de detalhes

do "Le Monde"

Dois escritores da mesma geração, que reivindicam uma cultura, dialogam a seguir não sobre uma Europa abstrata, mas sobre a "democracia de detalhes" e a arte de viver em um continente em acelerada transformação.
Nascido em Haia (Holanda), em 1933, Cees Nooteboom tornou-se conhecido em 1956 com o romance "Philip e os Outros". Esteve na África do Sul como marinheiro e hoje vive em constante nomadismo entre a Holanda, Espanha, Oriente e Estados Unidos, fazendo da viagem o seu modo de vida. Tradutor de poesia espanhola, catalã, francesa e alemã, tem vários livros de ensaio, viagens, romances e poemas, como "O Caminho para Santiago" (Nova Fronteira) e "Dia de Finados" (Companhia das Letras). Em 1982 foi agraciado com o Prêmio Pegasus de literatura.
Philippe Sollers, um dos escritores franceses mais influentes e ativos de sua geração, nasceu em Bordeaux em 1936 com o nome de Philippe Joyaux. Em 1957 adotou o pseudônimo Sollers e publicou sua primeira narrativa, "Le Défi" (O Desafio). Quatro anos depois recebeu o Prêmio Médicis por "Le Parc". Entre suas muitas obras de ficção e ensaio, estão publicadas no Brasil "Sade contra o Ser Supremo" (Estação Liberdade) e "Mulheres" (Siciliano).

Pergunta - A Europa da cultura não estaria em estágio de regressão?
Cees Nooteboom - Regressão? Seria preciso especificar o termo. Há sempre um debate em curso. Basta um momento. Os políticos falam da Europa que precisam construir, a Europa do espírito, mas ela sempre existiu. A Europa de Voltaire... cujos trabalhos foram impressos em Amsterdã.
Philippe Sollers - Podem-se multiplicar os colóquios sobre a Europa, idéia abstrata. No fim, sempre perceberemos que um certo número de elos comuns foram mencionados e compreenderemos por que Nooteboom se sente fatigado. Quem imagina a Europa? De um ponto de vista francês, há um desinteresse, quase uma resistência. A regressão, não da cultura européia, mas da cultura francesa, espanhola, italiana... já é antiga, simplesmente porque essas culturas foram dominadas não só pela devastação da Europa, mas pelo duelo entre os russos e os norte-americanos. Estamos exatamente no momento em que este continente poderia relembrar que um dia foi culturalmente grandioso. É principalmente sobre a amnésia com respeito à cultura européia que é preciso interrogar a Europa.
Nooteboom - Vivo uma vida européia, falo quatro idiomas europeus, não tenho nenhum sentimento de regressão. Mas quando eu, o único ocidental, participei de um encontro com o chanceler (primeiro-ministro) alemão e alguns escritores do Leste Europeu sobre a ampliação da Europa, percebi -eu que vivo na Espanha- que naquele país há uma certa recusa à ampliação, porque a Espanha sabe que ficará cada vez mais na periferia e o peso econômico se concentrará cada vez mais na Alemanha. Retornemos à cultura e ao fato de que depois da Segunda Guerra Mundial os europeus deixaram de se encarar entre eles. Tomemos um escritor norte-americano médio, como John Irving: constata-se que na França se interessam mais por ele do que por Nooteboom, e na Holanda se interessam mais por ele do que por Sollers.
Sollers - Você está falando de mercado...
Nooteboom - É preciso definir o nível da questão. Aqui, sim, é um problema de mercado.
Sollers - Somos ambos escritores, nossas referências são outras. É preciso retornar à experiência bastante concreta da vida cotidiana, da língua. Como passar de uma culinária a outra.
Nooteboom - Eu cozinho.
Sollers - De uma forma de nutrição a outra. É preciso falar de música, de pintura. Nesses debates, aquilo que fica sempre esquecido é a vida. A vida feita de coisas concretas.
Nooteboom - Exatamente. E eu não sou derrotista. Mas compreendo o problema singular da França. Quando se está na place de la Concorde, é difícil não se sentir no centro do mundo, e de uma certa maneira se trata do centro do mundo, mesmo.
Sollers - De fato os franceses têm um problema, eles desaprenderam sua história, não sabem como encarar a idéia de que um dia foram o centro europeu do mundo, que não o são mais, e perderam a memória. Quando estou na place de la Concorde me vejo obrigado, por força do lugar, a me sentir estrangeiro, da mesma maneira que os franceses se encaram, deprimidos, devorados por uma inquietude com respeito à sua identidade.


Estamos exatamente no momento em que este continente poderia relembrar que um dia foi culturalmente grandioso


Nooteboom - Os franceses deveriam compreender quem de fato são. Não é o caso, e são os francófilos externos, como eu, que querem saber o que se passa.
Sollers - Cees Nooteboom, você disse não ser derrotista, mas em "L'Enlèvement d'Europe" (O Sequestro da Europa) você escreveu que "devemos retomar nossa Europa antes que seja tarde"...
Nooteboom - Sim, mas depois de tê-lo escrito fui engolido pela Europa institucional e me senti...
Sollers - Tratado como uma "garota de programa".
Nooteboom - Exatamente. Não se pode passar a vida sendo europeu, isso seria como um falso dublê de mim mesmo, e os esforços de imaginação das pessoas para encontrar suas ligações com a Europa são infinitos.
Sollers - Nós nos encontramos em Amsterdã, uma noite. Hoje nos reencontramos e começamos imediatamente a conversar, enquanto os fotógrafos trabalhavam. Queria falar com Nooteboom de sua formação entre os agostinianos, sua paixão pela pintura de Zurbaran, sua vida nas ilhas Baleares. É isso que importa. O interessante é a maneira de viver. Como ele vai de lugar a lugar, de Amsterdã à sua ilha, na mais completa solidão. Isso é europeu, poder passar de uma cena a outra não como turista, mas como habitante permanentemente estrangeiro.
Nooteboom - Cada vez mais.
Sollers - Depois, evocamos um personagem de seu último livro, "Dia de Finados", Arno, que não deixa de ter pontos em comum com o filósofo Rudiger Safranski.
Nooteboom - Estou em uma abadia beneditina... Converso com um filósofo alemão, Safranski, que me fala de outro filósofo alemão, Heidegger, e depois conto a história a um escritor francês. É esse o gênero de diálogo que não poderia acontecer em um colóquio. Entre escritores, encontros individuais são precisos. Não é possível tê-los com muita frequência, mas os livros também servem como encontro.
Sollers - Se eu tivesse tempo, insistiria nessa "Europa policromática" que Nooteboom evoca. A Europa de que se fala em termos abstratos é monocromática. A Europa dos intercâmbios organizados. Nós nos interessamos pelos detalhes, por determinados gostos, linguagens, poesia, em resumo, pela arte de viver. É isso que precisa não ser revivido ou renascer, mas sim ser divulgado. É preciso abandonar o conceito vago de uma grande Europa unificada e ver que tudo acontece nos detalhes. O destino da Europa é ser uma democracia de detalhes, culturas, religiões...
Nooteboom - Acabo de visitar uma exposição sobre a Europa Central, em Berlim. Isso nos ajuda a tomar consciência dos tesouros da Europa, tesouros ressurgidos de países como a ex-Tchecoslováquia. Trata-se de uma herança que é preciso retomar. Após 50 anos de barbárie, é preciso não recomeçar, mas continuar.
Pergunta - A idéia dessa Europa é a possibilidade de que um indivíduo encontre outro indivíduo. Para além da prescrição social. Se visão de mundo pressupõe que tudo seja social, no fundo não há Europa. Por fim, uma adivinha: a propósito de qual de vocês foi escrito o seguinte: "Em sua lira, seus arpejos de virtuoso, seus engastes, suas falsas confianças... está sua maneira inimitável de cativar o leitor"...
Nooteboom - "... às vezes temos a impressão de que o brilho da forma, a riqueza da invenção o conduzem por sobre a solidez do discurso".
Sollers - Ah, esse devo ser eu.
Nooteboom - Não, é o que um holandês escreveu sobre o meu trabalho. Está na crítica do "Le Monde" sobre "L'Enlèvement d'Europe", em 9 de dezembro de 1994.
Sollers e Nooteboom (rindo) - Não é uma demonstração perfeita?


Entrevista concedida a Josyane Savigneau.
Tradução de Paulo Migliacci.


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