São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2002

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+ brasil 502 d.C.

O estado da universidade brasileira

Luiz Costa Lima

Um pouco antes do fim do ano encerrou-se a greve das universidades federais. Ela durara três meses. Como saberá qualquer um razoavelmente informado, não foi sequer a única dos últimos anos. Que reclamavam os grevistas? A reposição das perdas salariais dos últimos sete anos. Um defensor da atual política universitária dirá: as associações representativas dos grevistas não tinham disposição negociadora. Não sou professor de nenhuma universidade federal e não estive por dentro do movimento para que pudesse contestá-lo. Admita-se que seja verdade.
Se assim o for, as autoridades do Ministério da Educação descobriram, proposital ou involuntariamente, o que podemos chamar a "tática Sharon". Ela consiste em enraivecer o adversário para que ele, por suas respostas violentas, justifique a escalada das ações contrárias. Como resultado, temos o prolongamento da deterioração, do desmonte do ensino acadêmico no país. "Nunca como hoje a universidade pública foi tão amesquinhada pelos governantes (...). Virou um item das despesas públicas: gasto, não investimento" (Marco Aurélio Nogueira, no "Jornal da Tarde", 27/11/2001). Tal reconhecimento não é isolado. No boletim de notícias da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o professor Reinaldo Guimarães comenta: a política universitária "tornou-se rigorosamente funcional diante das políticas neoliberais de desfinanciamento da universidade pública nos anos 90" (26/11/01). Chamar a atenção para o fato não deve, pois, ser entendido como oferta de matéria a ser explorada na próxima campanha presidencial. Viso sim a atentar para algo que raia o incompreensível: o desmonte da universidade de um país que demorou a constituí-la.

Substituição
Diga-se que a conclusão é apressada, pois teríamos o desmonte da universidade pública, a qual, embora as autoridades neguem esse propósito, seria a médio prazo substituída por universidades privadas. Mas tampouco aqui a resposta é satisfatória. Como escreve Elio Gaspari: "Noves fora as PUCs e a maioria das instituições comunitárias do Sul, o negócio de boa parte das universidades privadas é vender vagas e facilitar o acesso a diplomas" (Folha, 12/12/2001). A entrevista do proprietário desde então famoso -"As faculdades não fazem pesquisa porque não querem jogar dinheiro fora" (apud Gaspari)- e a aprovação em vestibular de um analfabeto nos deixam com a cabeça mais tonta. Que está se passando em nosso país, diante de nós e com a nossa implícita conivência?
A questão é tão mais arrepiante porque só é discutida pelo meio mais ágil, a televisão, quando alcança o nível do escandaloso. Que análise, por exemplo, foi feita da sucessão de greves acadêmicas longas? Ao contrário, somos cotidianamente informados de que novas montanhas foram bombardeadas no Afeganistão, a quanto subiu a recompensa prometida pela captura de Bin Laden, onde ele ainda estaria escondido. Cotidianamente sabemos da lenta agonia financeira e agora política de um país vizinho. Mas a questão da universidade não parece ser assunto de interesse público. Ou não ser notícia que aumente os níveis de audiência. Pois, qualquer que seja o interesse efetivo do governo, uma coisa parece óbvia: as nossas cadeias televisivas estão de acordo com ele.


Busco chamar a atenção para algo que raia o incompreensível: o desmonte da universidade de um país que demorou a constituí-la


Se não nos contentarmos com o óbvio, haveremos, em algum momento, de nos perguntar: como se explica o massacre das instituições acadêmicas e o silêncio das TVs? Uma primeira maneira de tentar entendê-los combinaria, por um lado, um vetor financeiro -o custeio das universidades é caro- e, por outro, um vetor "comunicacional" -sua discussão não afeta a grande massa, aquela de que dependem os níveis de audiência e os votos que contam. O vetor financeiro engrossa a voz pelo reforço de outro argumento: procura-se compensar o encolhimento das verbas federais pela participação de grandes empresas no financiamento das "pesquisas úteis". Ora, como saberá qualquer pessoa razoavelmente informada, em nenhum país as grandes empresas financiam pesquisas, salvo aquelas que digam respeito a seu bolso. A idéia, difundida por nossos meios de comunicação, de que a universidade norte-americana é basicamente privada é uma balela tão gritante que custa crer que não seja proposital.

Descoberta do Brasil
O exame da situação se torna mais premente se ainda se consideram outros fatores. O primeiro, usando as palavras de Reinaldo Guimarães, "é o papel da pesquisa acadêmica no desvendamento do próprio país, na permanente "descoberta do Brasil'". Confiar a pesquisa acadêmica a instituições de ensino que mal pagam uma miserável hora-aula ou às verbas que lhe reservem alguma multiempresa só pode ser uma piada. A reflexão sobre o segundo fator é ainda mais grave: quando se lêem as instruções dos órgãos federais de incremento à pesquisa se mostra claramente que, para seus responsáveis, pesquisa é uma atividade que se confunde com a ciência, dito melhor, com as chamadas ciências duras. Alguém poderá dizer que assim é e deve ser, pois são as ciências duras (se preferirem, sejam elas chamadas exatas) que comandam o mundo; que, apesar de sermos um país periférico, não podemos mais do que seguir sua lição.
Embora pudesse contestar que a "permanente descoberta do Brasil" não depende tão-só das ciências duras, a réplica principal não seria essa. Para formulá-la, recorro a comentário do conhecido cientista Stephen Jay Gould sobre livro recém-lançado: "A ciência clássica, com suas preferências pela redução a uns poucos fatores controlantes da causalidade, teve enorme êxito em sistemas relativamente simples como o movimento planetário e a tabela periódica dos elementos. Mas fenômenos irredutivelmente complexos, ou seja, os mais interessantes fenômenos da biologia, da sociedade humana e da história, não podem ser assim explicados" ("The New York Review of Books", 29/11/2001).

Caráter trivial
A afirmação não chega a ser nova. Tanto assim que é agora usada como publicidade. Mas o que nos importa aqui é mesmo seu caráter quase trivial. Note-se que Gould não restringe os fenômenos complexos a uma área reconhecidamente científica, como a da biologia, senão que inclui a sociedade humana e a história. O que então se constata senão o provincianismo dos responsáveis pela mesquinharia com que se trata a universidade? O reconhecimento dos sistemas complexos põe em xeque o que se costuma reconhecer como ciência exata (!) e mais do que isso: mostra que já não há razão para que se tenha a ciência como o único discurso socialmente legitimável.
Ora, é no exato instante em que essa compreensão se amplia que o governo brasileiro decide ou atua como se houvesse decidido destroçar o campo de pesquisa nacional. A tal ponto isso é escandaloso que esfrego os olhos e me digo: não, só posso estar enganado. Mas por que os responsáveis não dizem o que pretendem? É a arrogância de seu silêncio que nos convence de que a verdade está no óbvio: sim, se pretende "substituir" a universidade pública brasileira. Como se manter indiferente diante desse quadro?

Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de "Vida e Mímesis" (ed. 34) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve a cada dois meses na seção "Brasil 502 d.C.".


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