São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2002

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O melodrama do conhecimento

Slavoj Zizek

Ao contrário da idéia de que a curiosidade é inata aos seres humanos, de que no fundo de cada pessoa existe um "Wissenstrieb", um desejo de conhecer, Jacques Lacan afirma que a atitude espontânea do ser humano é a de "não quero saber disso", o desejo fundamental é o de não saber muito. Todo verdadeiro progresso no conhecimento deve ser adquirido por meio de uma dolorosa luta contra nossas propensões espontâneas.
A biogenética atual não é a prova mais clara desses limites de nosso desejo de conhecer? O gene responsável pela doença de Huntington foi isolado, de modo que cada pessoa pode saber exatamente não apenas se terá a doença, mas também quando a terá. O início da doença depende de um erro de transcrição genética -a repetição da sequência CAG no meio do gene: a idade em que a loucura aparecerá depende estrita e implacavelmente do número de repetições de CAG em certo lugar desse gene (se houver 40 repetições, os primeiros sintomas surgirão aos 59 anos, se houver 41, aos 54 etc.). Uma boa vida, condicionamento físico, o melhor remédio, alimentação saudável, amor e apoio familiar não podem fazer nada a respeito -é pura fatalidade, reforçada pela variabilidade ambiental. Ainda não há cura, não podemos fazer nada sobre isso.
Então, o que devemos fazer ao saber que podemos nos submeter ao teste e assim adquirir um conhecimento que, em caso positivo, nos dirá exatamente quando ficaremos loucos e morreremos? Pode-se imaginar um confronto mais claro com a contingência sem sentido que determina nossa vida?
A doença de Huntington, portanto, nos confronta com uma alternativa perturbadora: se houver em minha família um caso da doença, eu devo fazer o teste que me dirá se (e quando) terei inexoravelmente a doença ou não? Qual a solução? Se eu não puder suportar a perspectiva de saber quando morrerei, a solução ideal (mais fantasiosa que realista) talvez seja a seguinte: autorizar outra pessoa ou instituição em que confio completamente a me testar e não me contar o resultado, apenas para me matar inesperadamente e sem dor enquanto eu dormir, pouco antes do início da doença fatal, caso o resultado seja positivo... No entanto o problema dessa solução é que eu sei que o Outro sabe (a verdade sobre minha doença), e isso estraga tudo, expondo-me a uma suspeita aterrorizante.
Lacan chamou a atenção para a situação paradoxal desse conhecimento do conhecimento do Outro. Lembrei da inversão final de "A Era da Inocência", de Edith Wharton, quando o marido, que durante muitos anos abrigou um amor apaixonado e ilícito pela condessa Olenska, fica sabendo que sua jovem esposa sabia o tempo todo de sua paixão secreta. Talvez isso também ofereça uma maneira de redimir o infeliz "As Pontes de Madison": se no final do filme a agonizante Francesca soubesse que seu marido supostamente simplório conhecera o tempo todo a história de seu breve caso de amor com o fotógrafo da "National Geographic", e o quanto isso significou para ela, mas se calou para não feri-la.
Aí reside o enigma do conhecimento: como é possível que toda a economia psíquica de uma situação mude radicalmente não quando o herói sabe diretamente de algo (algum segredo há muito reprimido), mas quando fica sabendo que o Outro (que ele considerava ignorante) também sabia o tempo todo e apenas fingiu não saber para manter as aparências -existe algo mais humilhante do que a situação de um marido que, depois de um longo caso de amor secreto, subitamente percebe que sua mulher sabia de tudo, mas manteve o silêncio por delicadeza ou, pior ainda, por amor a ele?
Então a solução ideal seria a oposta: se eu suspeito que meu filho pode ter a doença, faço o teste sem que ele saiba e depois o mato sem dor pouco antes da agressão da doença? A fantasia máxima seria a de uma instituição estatal anônima fazer isso por todos, sem nosso conhecimento, mas novamente salta a pergunta: nós sabemos disso (que o Outro sabe) ou não? O caminho para uma perfeita sociedade totalitária está aberto...
E se o que é falso aqui for a premissa subjacente, a idéia de que o dever ético máximo é o de proteger o Outro da dor, de mantê-lo numa ignorância protetora?


Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, autor de "Eles Não Sabem O Que Fazem" e "Um Mapa da Ideologia". Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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