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O melodrama do conhecimento
Slavoj Zizek
Ao contrário da idéia de que a curiosidade é inata aos seres humanos, de que no fundo de cada
pessoa existe um "Wissenstrieb", um desejo de conhecer, Jacques
Lacan afirma que a atitude espontânea
do ser humano é a de "não quero saber
disso", o desejo fundamental é o de não
saber muito. Todo verdadeiro progresso
no conhecimento deve ser adquirido por
meio de uma dolorosa luta contra nossas
propensões espontâneas.
A biogenética atual não é a prova mais
clara desses limites de nosso desejo de
conhecer? O gene responsável pela doença de Huntington foi isolado, de modo
que cada pessoa pode saber exatamente
não apenas se terá a doença, mas também quando a terá. O início da doença
depende de um erro de transcrição genética -a repetição da sequência CAG no
meio do gene: a idade em que a loucura
aparecerá depende estrita e implacavelmente do número de repetições de CAG
em certo lugar desse gene (se houver 40
repetições, os primeiros sintomas surgirão aos 59 anos, se houver 41, aos 54 etc.).
Uma boa vida, condicionamento físico, o
melhor remédio, alimentação saudável,
amor e apoio familiar não podem fazer
nada a respeito -é pura fatalidade, reforçada pela variabilidade ambiental.
Ainda não há cura, não podemos fazer
nada sobre isso.
Então, o que devemos fazer ao saber
que podemos nos submeter ao teste e assim adquirir um conhecimento que, em
caso positivo, nos dirá exatamente quando ficaremos loucos e morreremos? Pode-se imaginar um confronto mais claro
com a contingência sem sentido que determina nossa vida?
A doença de Huntington, portanto,
nos confronta com uma alternativa perturbadora: se houver em minha família
um caso da doença, eu devo fazer o teste
que me dirá se (e quando) terei inexoravelmente a doença ou não? Qual a solução? Se eu não puder suportar a perspectiva de saber quando morrerei, a solução
ideal (mais fantasiosa que realista) talvez
seja a seguinte: autorizar outra pessoa ou
instituição em que confio completamente a me testar e não me contar o resultado, apenas para me matar inesperadamente e sem dor enquanto eu dormir,
pouco antes do início da doença fatal, caso o resultado seja positivo... No entanto
o problema dessa solução é que eu sei
que o Outro sabe (a verdade sobre minha
doença), e isso estraga tudo, expondo-me a uma suspeita aterrorizante.
Lacan chamou a atenção para a situação paradoxal desse conhecimento do
conhecimento do Outro. Lembrei da inversão final de "A Era da Inocência", de
Edith Wharton, quando o marido, que
durante muitos anos abrigou um amor
apaixonado e ilícito pela condessa Olenska, fica sabendo que sua jovem esposa
sabia o tempo todo de sua paixão secreta.
Talvez isso também ofereça uma maneira de redimir o infeliz "As Pontes de Madison": se no final do filme a agonizante
Francesca soubesse que seu marido supostamente simplório conhecera o tempo todo a história de seu breve caso de
amor com o fotógrafo da "National Geographic", e o quanto isso significou para
ela, mas se calou para não feri-la.
Aí reside o enigma do conhecimento:
como é possível que toda a economia
psíquica de uma situação mude radicalmente não quando o herói sabe diretamente de algo (algum segredo há muito
reprimido), mas quando fica sabendo
que o Outro (que ele considerava ignorante) também sabia o tempo todo e apenas fingiu não saber para manter as aparências -existe algo mais humilhante
do que a situação de um marido que, depois de um longo caso de amor secreto,
subitamente percebe que sua mulher sabia de tudo, mas manteve o silêncio por
delicadeza ou, pior ainda, por amor a ele?
Então a solução ideal seria a oposta: se
eu suspeito que meu filho pode ter a
doença, faço o teste sem que ele saiba e
depois o mato sem dor pouco antes da
agressão da doença? A fantasia máxima
seria a de uma instituição estatal anônima fazer isso por todos, sem nosso conhecimento, mas novamente salta a pergunta: nós sabemos disso (que o Outro
sabe) ou não? O caminho para uma perfeita sociedade totalitária está aberto...
E se o que é falso aqui for a premissa
subjacente, a idéia de que o dever ético
máximo é o de proteger o Outro da dor,
de mantê-lo numa ignorância protetora?
Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana,
autor de "Eles Não Sabem O Que Fazem" e "Um
Mapa da Ideologia". Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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