São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2002

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Em "Sublunar", o poeta Carlito Azevedo reúne seus quatro livros anteriores

O olhar extático do cotidiano ao supra-renal

Viviana Bosi
especial para a Folha

Em "Sublunar", o poeta Carlito Azevedo reúne seus quatro livros anteriores, correspondentes a dez anos de produção: "Collapsus Linguae", "As Banhistas", "Sob a Noite Física" e "Versos de Circunstância". Ao fazer a seleção, deles eliminou, basicamente, os trocadilhos tipográficos afins ao primeiro concretismo (sem renegar sua influência, mais entranhada). Divide o livro em seis tópicos sob os quais agrupa os poemas, encaixando-os de acordo com temas abrangentes. Solução inteligente -inspirada na "Antologia Poética", de Drummond- que permite observar quais as vertentes principais de sua poética.
Sobressai o olhar contemplativo, a transfigurar a natureza (especialmente a do Rio de Janeiro, sua cidade), a arte, a mulher amada, amigos. Há um gosto manifesto pelo imaginário requintado, por vezes exótico, ou pela visão do instante de surpresa gravado na retina. Uma flor no quarto, a fumaça da xícara de café, a figura de um jarro são alguns detonadores da reflexão poética, como uma breve levitação. Pinturas de Mira Schendel ou esculturas de Giacometti também o colocam num estado de assombro propício. Muito do imagismo objetivista frequenta os poemas. Carlito mantém no geral distância relativa do coloquial, do participante urbano, do confessional biográfico: prevalece um refinamento meditado.
Certos momentos lembram a idéia da beleza convulsiva em seus contrastes justapostos, criando ótimos efeitos de estranhamento metafórico. O respeito pela artesania e engenho verbais da tradição literária é constante, aliado à afinidade com a linha francesa cubista-surrealista de poetas "magros", que sabiam combinar imaginário exuberante e construção enxuta.
O aspecto visionário de sutil imersão pictórica e sonora, de quem busca, pela aparência dos objetos e seres singularizados em versos, afinação precisa com o sensível, vem acompanhado pelo gosto da simetria e das metamorfoses harmônicas, quando o pequeno e o grande se complementam. Há miniaturas delicadas, como fotogramas em que fundo e forma se encontram numa consonância que acentua a estranheza do mundo pelos encontros insólitos: desde o infinito visto pela janela que aparentemente o doma, mas em cujo parapeito uma flor desafia a geometria; até os lagos do México que, quando secam, deixam nascer as larvas de salamandra, insensíveis ao sol; e o leve surrealismo cinematográfico das pálpebras batendo enquanto borboletas saem de seus casulos e as cores variam entre o azul e seus avessos.

Corpo amoroso
O corpo amoroso do universo está na base das analogias e correspondências poéticas (na expressão de Octavio Paz) e explica as relações entre a luz da montanha dourando as costas da menina e o seu brilho refletido na lagoa "a nos unir a quem amamos". Coisas simples, como o encanto da paisagem, aliado ao bem-estar sensorial da habitação e do convívio, levam a um sentimento de reconciliação, numa efusão com os amigos, o mar, a lua e a casa...
Em "Nova Passante" (que alude ao arquifamoso encontro amoroso fortuito e fugaz de Baudelaire na multidão), qualquer impressão da cidade submergiu: a aparição absorvente da mulher ocupa completamente o campo de sensações, instaurando um ritmo e um espaço próprios. No poema "Limiar", a serenidade acompanha outra passante, que anda sobre a "inexistente relva do asfalto", e o espaço se torna "tão botticelliano quanto num crepúsculo mediterrâneo". O leitor pode se perguntar onde está a experiência da vida contemporânea, pois parece que o mundo pedestre à volta do objeto de contemplação é elidido e o poeta se concentra totalmente no que descreve. Esse pendor clássico-moderno, que prefere o fulgor súbito do imaginário sonhado, é o elogio da beleza possível, a resistência do poético na metrópole, como "lampejo do sublime entre pilotis", encontro de faróis na "noite gris", "labareda" na noite, "duplo incêndio da lua e do neon", chispas de olhos cor de glicínia que iluminam a vida: "A chegada ao fundo /mais ardente, onde tornar a reunir/ cada fragmento nosso, perdido, de dor e de delicadeza". Assim, "sublunar" não remete ao visceral das sensações imediatas, como a epígrafe da poeta portuguesa Adília Lopes poderia sugerir ("Falo de ovos estrelados, coisa caricata, suja,/ sublunar, como as maminhas/ e o cão animal que ladra."). Apesar de "bene trovato, non è vero"! Os poemas sugerem evocações do passageiro, a emitir sinais de alumbramento e enigma -outro sentido plausível para o título.

Conhaque drummondiano
Um dos poemas mais significativos, "Sobre uma Fotonovela de Felipe Nepomuceno", apresenta a transformação de um acidente de carro numa circunstância lírica em que também comparecem a lua e o conhaque drummondianos. Partindo de uma bem-vinda (e rara) situação narrada em estilo coloquial, destaca-se a tendência para a lenta transmutação do real seguida de condensação expressiva afiada: "Mas o poema ia crescendo, / como a ferrugem nas pontas espinhentas da lataria, junto à moita de espinheiros, logo após a derrapagem".
A poesia de Carlito Azevedo conhece ainda tons noturnos de angústia e desordem, mas predomina a atenção extrema que converte até mesmo a ausência em vibração: como em "Três Encontros", quando se recorda da visita ao zoológico em menino, e da jaula vazia onde antes habitara uma pantera negra, o que compara à solidão do abandono amoroso -um vazio no presente- e, afinal, ao fascínio do encontro com a poesia. Assim também em "No Museu", a arte, essa desveladora em suspenso, é "objeto invisível/ de giacometti: antimonumento ao que/ sumiu (mas por trás de tudo isso/ já foi prece, carne, calafrio)".
Não à toa tantos poemas têm a forma de um arco retesado ou triângulo cuja ponta aguda se encontra voltada para a direita: modo de preparar o vôo. Pode-se recriar uma elegante salvação por meio da mímesis, olhando o mundo através de seus olhos e dela partindo como modelo, mais depurado do que a vivência bruta, focalizando a beleza que vai "contrastando imemorial com a transitoriedade de tudo ali".


Viviana Bosi é professora do departamento de teoria literária e literatura comparada da USP e autora de "John Ashbery - Um Módulo para o Vento" (Edusp).


Sublunar
104 págs., R$ 18,00
de Carlito Azevedo. Ed. 7Letras (r. Jardim Botânico, 674/417, CEP 22461-000, Rio de Janeiro, tel. 0/xx/21/2540-0037).



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