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Em "Sublunar", o poeta Carlito Azevedo reúne seus quatro livros anteriores
O olhar extático do cotidiano ao supra-renal
Viviana Bosi
especial para a Folha
Em "Sublunar", o poeta Carlito
Azevedo reúne seus quatro livros
anteriores, correspondentes a dez
anos de produção: "Collapsus Linguae", "As Banhistas", "Sob a Noite Física" e "Versos de Circunstância". Ao fazer
a seleção, deles eliminou, basicamente,
os trocadilhos tipográficos afins ao primeiro concretismo (sem renegar sua influência, mais entranhada). Divide o livro em seis tópicos sob os quais agrupa
os poemas, encaixando-os de acordo
com temas abrangentes. Solução inteligente -inspirada na "Antologia Poética", de Drummond- que permite observar quais as vertentes principais de
sua poética.
Sobressai o olhar contemplativo, a
transfigurar a natureza (especialmente a
do Rio de Janeiro, sua cidade), a arte, a
mulher amada, amigos. Há um gosto
manifesto pelo imaginário requintado,
por vezes exótico, ou pela visão do instante de surpresa gravado na retina.
Uma flor no quarto, a fumaça da xícara
de café, a figura de um jarro são alguns
detonadores da reflexão poética, como
uma breve levitação. Pinturas de Mira
Schendel ou esculturas de Giacometti
também o colocam num estado de assombro propício. Muito do imagismo
objetivista frequenta os poemas. Carlito
mantém no geral distância relativa do
coloquial, do participante urbano, do
confessional biográfico: prevalece um refinamento meditado.
Certos momentos lembram a idéia da
beleza convulsiva em seus contrastes justapostos, criando ótimos efeitos de estranhamento metafórico. O respeito pela
artesania e engenho verbais da tradição
literária é constante, aliado à afinidade
com a linha francesa cubista-surrealista
de poetas "magros", que sabiam combinar imaginário exuberante e construção enxuta.
O aspecto visionário de
sutil imersão pictórica e
sonora, de quem busca,
pela aparência dos objetos e seres singularizados
em versos, afinação precisa com o sensível, vem
acompanhado pelo gosto da simetria e
das metamorfoses harmônicas, quando
o pequeno e o grande se complementam.
Há miniaturas delicadas, como fotogramas em que fundo e forma se encontram
numa consonância que acentua a estranheza do mundo pelos encontros insólitos: desde o infinito visto pela janela que
aparentemente o doma, mas em cujo parapeito uma flor desafia a geometria; até
os lagos do México que, quando secam,
deixam nascer as larvas de salamandra,
insensíveis ao sol; e o leve surrealismo cinematográfico das pálpebras batendo
enquanto borboletas saem de seus casulos e as cores variam entre o azul e seus
avessos.
Corpo amoroso
O corpo amoroso
do universo está na base das analogias e
correspondências poéticas (na expressão
de Octavio Paz) e explica as relações entre a luz da montanha dourando as costas da menina e o seu brilho refletido na
lagoa "a nos unir a quem amamos". Coisas simples, como o encanto da paisagem, aliado ao bem-estar sensorial da
habitação e do convívio, levam a um sentimento de reconciliação, numa efusão
com os amigos, o mar, a lua e a casa...
Em "Nova Passante" (que alude ao arquifamoso encontro amoroso fortuito e
fugaz de Baudelaire na multidão), qualquer impressão da cidade submergiu: a
aparição absorvente da mulher ocupa
completamente o campo de sensações,
instaurando um ritmo e um espaço próprios. No poema "Limiar", a serenidade
acompanha outra passante, que anda sobre a "inexistente relva do asfalto", e o espaço se torna "tão botticelliano quanto
num crepúsculo mediterrâneo". O leitor
pode se perguntar onde está a experiência da vida contemporânea, pois parece
que o mundo pedestre à volta do objeto
de contemplação é elidido e o poeta se
concentra totalmente no que descreve.
Esse pendor clássico-moderno, que prefere o fulgor súbito do
imaginário sonhado, é o
elogio da beleza possível,
a resistência do poético na
metrópole, como "lampejo do sublime entre pilotis", encontro de faróis na
"noite gris", "labareda"
na noite, "duplo incêndio
da lua e do neon", chispas de olhos cor de
glicínia que iluminam a vida: "A chegada
ao fundo /mais ardente, onde tornar a
reunir/ cada fragmento nosso, perdido,
de dor e de delicadeza".
Assim, "sublunar" não remete ao visceral das sensações imediatas, como a
epígrafe da poeta portuguesa Adília Lopes poderia sugerir ("Falo de ovos estrelados, coisa caricata, suja,/ sublunar, como as maminhas/ e o cão animal que ladra."). Apesar de "bene trovato, non è
vero"! Os poemas sugerem evocações do
passageiro, a emitir sinais de alumbramento e enigma -outro sentido plausível para o título.
Conhaque drummondiano
Um dos poemas mais significativos, "Sobre
uma Fotonovela de Felipe Nepomuceno", apresenta a transformação de um
acidente de carro numa circunstância lírica em que também comparecem a lua e
o conhaque drummondianos. Partindo
de uma bem-vinda (e rara) situação narrada em estilo coloquial, destaca-se a
tendência para a lenta transmutação do
real seguida de condensação expressiva
afiada: "Mas o poema ia crescendo, / como a ferrugem nas pontas espinhentas
da lataria, junto à moita de espinheiros,
logo após a derrapagem".
A poesia de Carlito Azevedo conhece
ainda tons noturnos de angústia e desordem, mas predomina a atenção extrema
que converte até mesmo a ausência em
vibração: como em "Três Encontros",
quando se recorda da visita ao zoológico
em menino, e da jaula vazia onde antes
habitara uma pantera negra, o que compara à solidão do abandono amoroso
-um vazio no presente- e, afinal, ao
fascínio do encontro com a poesia. Assim também em "No Museu", a arte, essa
desveladora em suspenso, é "objeto invisível/ de giacometti: antimonumento ao
que/ sumiu (mas por trás de tudo isso/ já
foi prece, carne, calafrio)".
Não à toa tantos poemas têm a forma
de um arco retesado ou triângulo cuja
ponta aguda se encontra voltada para a
direita: modo de preparar o vôo. Pode-se
recriar uma elegante salvação por meio
da mímesis, olhando o mundo através de
seus olhos e dela partindo como modelo,
mais depurado do que a vivência bruta,
focalizando a beleza que vai "contrastando imemorial com a transitoriedade de
tudo ali".
Viviana Bosi é professora do departamento de
teoria literária e literatura comparada da USP e autora de "John Ashbery - Um Módulo para o Vento"
(Edusp).
Sublunar
104 págs., R$ 18,00
de Carlito Azevedo. Ed. 7Letras
(r. Jardim Botânico, 674/417,
CEP 22461-000, Rio de Janeiro,
tel. 0/xx/21/2540-0037).
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