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Laranjas e bananas no mesmo saco
Socióloga critica pesquisa sobre a desigualdade na Antigüidade por limitar-se
a discutir
renda
CELI SCALON
ESPECIAL PARA A FOLHA
P
esquisas sobre desigualdade são sempre
bem-vindas, em especial estudos de
comparação internacional e histórica. O trabalho
de Milanovic, Peter e Williamson surge com uma promessa
difícil de ser cumprida. Nem
vale a pena comentar as fragilidades metodológicas, apontadas pelos próprios autores. Os
dados são incompatíveis, coletados com técnicas diferentes e
sem qualquer garantia de qualidade.
Isso já seria grave se os autores estivessem tratando de sociedades comparáveis, mas não
é o caso. Eles embrulham no
mesmo pacote contextos histórico-sociais heterogêneos, em
que os valores do rendimento e
do dinheiro são distintos.
Não me refiro ao valor da
moeda como medida; mas ao
valor simbólico, social. O que o
trabalho faz é comparar laranjas, maçãs e bananas. Não quero fazer crítica vazia das pesquisas comparativas. Devemos
investir na comparação internacional porque permite perceber facetas do Brasil. Mas a
pesquisa comparativa tem critérios que devem ser seguidos.
Dois deles, que não podem ser
desrespeitados, são: (1) as variáveis devem ser originadas a
partir de questões semelhantes, se não idênticas, e (2) a metodologia de coleta deve ser
compatível. O estudo passa ao
largo de ambos.
Apesar de os autores anunciarem o uso de novos "conceitos", o que de fato nos apresentam são medidas baseadas em
diferenças de rendimentos.
Mas é necessário refletir sobre a opção, comum entre economistas, de focar a discussão
sobre desigualdades na análise
das disparidades de renda.
Há pelo menos três décadas,
o Prêmio Nobel Amartya Sen
prega que a discussão sobre desigualdade não pode estar restrita à distribuição de renda.
Quando se trata de uma análise
histórica, esse "monoteísmo"
torna-se ainda mais grave.
Talvez seja, justamente, o fato de limitar a análise às desigualdades de rendimentos que
impede que esta pesquisa
avance em relação à simples
constatação de que desigualdades existiram e ainda existem.
É impossível desconsiderar a
diferença óbvia nos tipos de relações sociais e econômicas das
sociedades anteriores ao século 20 e das que vigoram nas sociedades contemporâneas.
Ainda que os resultados demonstrem alguma paridade
entre intervalos de renda nas
sociedades, essas conclusões
não nos levam longe. São contextos sociais e econômicos
díspares, não comparáveis.
Nas sociedades pré-capitalistas a renda tinha valor muito
distinto do que lhe foi conferido nas sociedades industriais.
A atividade econômica estava
imersa na vida social, não havia
separação entre as esferas econômica, moral, política e religiosa. Logo, a primazia do econômico é algo moderno.
É fácil concluir que nesse
contexto o dinheiro adquiria
significados variados e contingentes. Segundo [Karl] Polanyi,
somente com a expansão capitalista a terra, o trabalho e o dinheiro foram transformados
em mercadorias fictícias. Daí a
impossibilidade de caracterizar a moeda como um elemento singular antes do século 18.
Propor um entendimento contrário é não reconhecer os elementos culturais e sociais do
dinheiro.
Vários autores já sustentaram que as desigualdades persistem ao tempo e ao espaço.
Tilly, em "Durable Inequality",
e Erikson e Goldthorpe, em
"The Constant Flux", são apenas três autores que buscaram
não só diagnosticar a estabilidade das desigualdades, mas
revelar suas causas.
São estudos que incorporam
cuidado metodológico com visão ampla das desigualdades,
para além da renda. Ser multicausal é da natureza dos fenômenos sociais. E essa é uma lição que aprendemos, há tempos, com Max Weber.
CELI SCALON é socióloga e professora titular da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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