São Paulo, domingo, 20 de janeiro de 2008

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Laranjas e bananas no mesmo saco

Socióloga critica pesquisa sobre a desigualdade na Antigüidade por limitar-se a discutir renda

CELI SCALON
ESPECIAL PARA A FOLHA

P esquisas sobre desigualdade são sempre bem-vindas, em especial estudos de comparação internacional e histórica. O trabalho de Milanovic, Peter e Williamson surge com uma promessa difícil de ser cumprida. Nem vale a pena comentar as fragilidades metodológicas, apontadas pelos próprios autores. Os dados são incompatíveis, coletados com técnicas diferentes e sem qualquer garantia de qualidade. Isso já seria grave se os autores estivessem tratando de sociedades comparáveis, mas não é o caso. Eles embrulham no mesmo pacote contextos histórico-sociais heterogêneos, em que os valores do rendimento e do dinheiro são distintos.
Não me refiro ao valor da moeda como medida; mas ao valor simbólico, social. O que o trabalho faz é comparar laranjas, maçãs e bananas. Não quero fazer crítica vazia das pesquisas comparativas. Devemos investir na comparação internacional porque permite perceber facetas do Brasil. Mas a pesquisa comparativa tem critérios que devem ser seguidos. Dois deles, que não podem ser desrespeitados, são: (1) as variáveis devem ser originadas a partir de questões semelhantes, se não idênticas, e (2) a metodologia de coleta deve ser compatível. O estudo passa ao largo de ambos.
Apesar de os autores anunciarem o uso de novos "conceitos", o que de fato nos apresentam são medidas baseadas em diferenças de rendimentos. Mas é necessário refletir sobre a opção, comum entre economistas, de focar a discussão sobre desigualdades na análise das disparidades de renda.
Há pelo menos três décadas, o Prêmio Nobel Amartya Sen prega que a discussão sobre desigualdade não pode estar restrita à distribuição de renda. Quando se trata de uma análise histórica, esse "monoteísmo" torna-se ainda mais grave.
Talvez seja, justamente, o fato de limitar a análise às desigualdades de rendimentos que impede que esta pesquisa avance em relação à simples constatação de que desigualdades existiram e ainda existem. É impossível desconsiderar a diferença óbvia nos tipos de relações sociais e econômicas das sociedades anteriores ao século 20 e das que vigoram nas sociedades contemporâneas.
Ainda que os resultados demonstrem alguma paridade entre intervalos de renda nas sociedades, essas conclusões não nos levam longe. São contextos sociais e econômicos díspares, não comparáveis. Nas sociedades pré-capitalistas a renda tinha valor muito distinto do que lhe foi conferido nas sociedades industriais.
A atividade econômica estava imersa na vida social, não havia separação entre as esferas econômica, moral, política e religiosa. Logo, a primazia do econômico é algo moderno. É fácil concluir que nesse contexto o dinheiro adquiria significados variados e contingentes. Segundo [Karl] Polanyi, somente com a expansão capitalista a terra, o trabalho e o dinheiro foram transformados em mercadorias fictícias. Daí a impossibilidade de caracterizar a moeda como um elemento singular antes do século 18. Propor um entendimento contrário é não reconhecer os elementos culturais e sociais do dinheiro.
Vários autores já sustentaram que as desigualdades persistem ao tempo e ao espaço. Tilly, em "Durable Inequality", e Erikson e Goldthorpe, em "The Constant Flux", são apenas três autores que buscaram não só diagnosticar a estabilidade das desigualdades, mas revelar suas causas.
São estudos que incorporam cuidado metodológico com visão ampla das desigualdades, para além da renda. Ser multicausal é da natureza dos fenômenos sociais. E essa é uma lição que aprendemos, há tempos, com Max Weber.


CELI SCALON é socióloga e professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


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