São Paulo, domingo, 20 de setembro de 1998

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DESIGN
Embora de alto nível, o design gráfico no Brasil ainda é incapaz de definir uma identidade própria
Prisma da visão

ANA LUISA ESCOREL
especial para a Folha

É muito difícil para um contemporâneo avaliar com lucidez as tendências culturais de seu tempo. A excessiva proximidade tende a desnortear o juízo. Vistos à distância, no entanto, de outro momento histórico, os traços dominantes de uma época costumam mostrar tal solidariedade que é como se tivessem irradiado de um mesmo centro, já que o afastamento propicia a visão abrangente dos códigos e facilita a leitura de suas relações.
É por isso que, quando nos detemos na observação de um dado período e de suas tendências, podemos constatar a coerência existente entre manifestações de natureza diferente: obras literárias, pictóricas, escultóricas, arquitetônicas, musicais, tipográficas Äe entre elas e a maneira das pessoas se vestirem, falarem, escreverem e se portarem nas relações interpessoais, naquele preciso contexto. Para conseguir essa perspectiva, no entanto, é preciso que o período examinado esteja distante algumas dezenas de anos.
Aceito esse pressuposto, pode-se concluir que, na sincronia que todos temos com a atual produção cultural brasileira, de maneira geral, e com o design gráfico, em particular, fica extremamente difícil a avaliação equilibrada das tendências, a menos que se acate um prisma de total relatividade que coloque o raciocínio que vamos tentar desenvolver no terreno da mera conjectura. Só assim poderemos arriscar a hipótese de que, em nossos dias, o design gráfico brasileiro revela duas inclinações principais: uma, derivada do desejo de quem contrata os trabalhos profissionais do designer; outra, da atitude projetual do próprio designer. Ambas produzem um resultado que está longe de nos exprimir como nação.
Nesse quadro, pode-se dizer que a primeira tendência se ressente da desinformação que envolve a atividade e de um certo medo do novo. Assim, na encomenda ao designer costuma vir embutida a recomendação de que siga um determinado modelo, conhecido, testado e aceito, via de regra no Primeiro Mundo. Essa atitude exprime não apenas os vícios culturais de quem compra os serviços do designer, mas também falta de confiança na capacidade de leitura simbólica do usuário. Ou seja, se por um lado o cliente do designer gráfico não costuma aceitar senão aquilo que valoriza culturalmente, que já conhece e a que se habituou, por outro, duvida dos recursos do público ao qual dirige seus produtos.
As duas atitudes funcionam como verdadeiros freios à capacidade de expressão, restringindo as possibilidades do projetista. E, o que é mais grave, esses freios acabam por ser introjetados pelo designer, que passa a desenvolver com sua linguagem uma relação de excessiva prudência, aparando as próprias asas e comprometendo o vôo.
Poder-se-ia argumentar que o embate entre a criação e a expectativa de quem encomenda o trabalho é quase tão antigo quanto a própria civilização. E esse argumento seria absolutamente verdadeiro. A história das formas de manifestação artísticas no Ocidente tem sido, de fato, um registro daquilo que sobreviveu ao conflito entre o desejo do criador e o desejo do agente de quem partiu a encomenda. Daí a necessidade de o designer gráfico desenvolver uma acuidade suplementar que o dote de um sistema de medidas interno, no manejo do qual os elementos com que constrói seu discurso possam ser calculados de maneira que o produto resulte harmonioso: nem muito carregado de informação, a ponto de não poder ser apreendido, nem muito banal, a ponto de se dissolver no meio dos outros.
Tanto melhor será o designer quanto mais hábil for no ajuste dessa equação, já que a abertura para o novo representa o compromisso com sua intuição e com os direitos do usuário, enquanto um certo grau de redundância, a condição para realizar e transmitir o trabalho.
No Brasil, onde o design gráfico não foi incorporado nem como manifestação cultural nem como instrumento de planejamento e projeto, a margem para o exercício de soluções experimentais costuma ser muito estreita, à diferença do que ocorre nos países do centro, onde a atividade já se plasmou ao cotidiano. Lá é relativamente corriqueira a busca de inovação gráfica e existe um bom mercado para as soluções inusitadas que são produzidas, vendidas e compradas, circulando sem problemas junto a um público bastante numeroso.
No caso brasileiro, a base dessa resistência à informação nova, desse apego à estrutura já testada e aceita, repousa num certo desconhecimento de quais sejam os recursos e a natureza da profissão, bem como num forte sentimento de inferioridade, resquício colonialista que tende a valorizar o que se origina nas metrópoles.
Esse colonialismo e essa falta de informação acerca do arco de possibilidades do design, que norteiam os agentes de quem parte a encomenda do trabalho, atuam também entre os próprios designers, engessando sua capacidade de projetar. Arriscando uma excessiva generalização, diríamos que o design gráfico brasileiro jamais alcançou matiz próprio. Desde que a atividade passou a ser praticada regularmente no país, há cerca de 30 anos, vem sofrendo influências que a marcaram profundamente e que se vêm sucedendo no tempo. Já tivemos um design gráfico influenciado pelo funcionalismo alemão, pelo racionalismo suíço, pelo psicodelismo americano, pelo estilo "casual" californiano, pelo movimento punk inglês.
A voga atual consiste em dissolver a imagem, em privilegiar soluções não-lineares de organização do texto, em camuflar a informação principal, despistando o entendimento por meio de uma excessiva valorização do arbitrário. Essa tendência tem no designer americano David Carson seu representante de maior prestígio. Portanto, pressionado pelo mercado e vítima das lacunas de sua formação, o profissional brasileiro tem revelado mais habilidade em reproduzir as tendências que chegam, principalmente, das publicações especializadas internacionais do que em abrir suas próprias picadas com os recursos disponíveis em si mesmo e na tradição cultural de seu país.
Isso não significa que o design gráfico que se pratica atualmente no Brasil seja de má qualidade. Chegamos, já há cerca de 15 anos, a um grande domínio da técnica e dos recursos de expressão Äe nosso desempenho é, certamente, o mais eficiente da América Latina. O que nos falta não é, infelizmente, algo que seja fácil nem de adquirir, nem de praticar, tendo em vista a condição de país periférico do Brasil, vulnerável a influências de culturas mais estruturadas e economias mais poderosas, que não dispensam meios de sujeitá-lo a conveniências que nem sempre são as suas. O que nos falta é segurança para incorporar os códigos culturais genuínos da nação, interesse em desenvolvê-los no plano do projeto e pertinácia para colocá-los no mercado.
No primeiro semestre, em ocasiões diferentes, Wim Crwell, designer holandês de grande prestígio, e Emily Hayes, designer inglesa, assessora do British Council, manifestaram-se acerca de nosso design gráfico, beneficiando-se do distanciamento resultante do fato de serem estrangeiros e estarem de passagem pelo Brasil. Ambos exprimiram a mesma opinião, tomando como referência os catálogos da Bienal de Design Gráfico deste ano, organizada pela ADG (Associação dos Designers Gráficos). Concluíram que a prática profissional brasileira equivale, em qualidade, à de qualquer grande centro; porém faltaria a ela identidade nacional. O design gráfico não teria conseguido incorporar e reproduzir, no nível da linguagem, aqueles traços distintivos que fazem, por exemplo, com que a nossa música popular e nosso futebol sejam reconhecíveis como brasileiros em qualquer lugar do mundo.
Na verdade, essa pasteurização internacionalista não é privilégio que praticamos sozinhos. Atualmente se observa como que uma convergência dos códigos gráficos para um mesmo núcleo de cacoetes visuais. Sintoma disso é o número especial sobre o design gráfico europeu, publicado há cerca de dois anos por uma das melhores revistas do gênero, a americana "Print". Com a exceção da Espanha, da Alemanha e da Suíça, todas as outras mostras nacionais eram extremamente semelhantes. Não que os projetos selecionados pelos editores da revista fossem maus. Longe disso. O que se verificava era a tendência à perda da identidade nacional e, portanto, dos valores a ela subjacentes, ordenados e polidos pelo longo tempo que levaram para se constituir. Num país jovem como o Brasil, esse tempo de sedimentação é pequeno e, logo, maior a vulnerabilidade à interferência de elementos alheios às tradições.
Aloisio Magalhães, o melhor e mais interessante designer gráfico brasileiro de sua geração, foi exemplar nesse aspecto da valorização dos traços distintivos da cultura de nosso país. Com um rigor absoluto, no plano do conceito e no plano da forma, conseguiu conjugar em seus trabalhos a tendência dominante do design gráfico mundial, que, naquele momento, era representada pelo racionalismo suíço, com o emprego de elementos colhidos nas várias formas de manifestação da cultura brasileira. Sua ação, e a da equipe que comandou durante os anos em que manteve seu escritório no Rio de Janeiro, no entanto, não foi suficiente para constituir a base de uma linguagem gráfica nacional.
Mais adiante, quando Aloisio esteve à frente do Centro Nacional de Referência Cultural, da Fundação Nacional Pró-Memória e da Secretaria de Cultura do Ministério da Educação, entre 1979 e 1982, sistematizou melhor essa visão da necessidade de identificar e preservar o bem cultural brasileiro. Naquele momento, e para ilustrar seu empenho na valorização de nossas tradições, criou uma série de imagens extremamente expressivas, que didaticamente espalhou pelo país, nos encontros regulares que costumava manter com instituições e autoridades da área cultural.
Entre essas imagens, uma era particularmente sagaz: a do estilingue. Repetia que, assim como ocorre com o estilingue, no qual quanto mais a pedra se afastar da forquilha mais o impulso do elástico a projetará na distância, ocorre também com a força prospectiva das tradições culturais. Quanto mais um povo puder se voltar no tempo, em busca da avaliação crítica de suas raízes, maior será a força de sua projeção para o futuro. Daí a importância da preservação do bem cultural, conceito que abrange desde a igreja barroca até a lata de lixo fabricada com restos de pneu velho, exemplo do engenho popular de uma cultura da escassez, onde o reaproveitamento é vital.
Aloisio acreditava que, se os bens culturais brasileiros fossem preservados e estivessem disponíveis para fruição e consulta, certamente serviriam como base para a construção do nosso futuro, na linha de uma proposta alternativa e original, que evidenciasse os traços distintivos da nação no confronto com outras culturas. Nesse rumo, foi antecedido por Mário de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade, que, como ele, lutaram pela valorização da identidade nacional no Departamento Municipal de Cultura, em São Paulo, e no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, respectivamente, e por toda uma linhagem de grandes intelectuais, entre os quais se destacam o próprio Mário, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Sergio Buarque de Holanda, que, em obras fundamentais, definiram o caminho para a compreensão do Brasil, enquanto nação particular.
A novidade trazida por Aloisio Magalhães, no entanto, reside no prisma de visão. Não mais a do sociólogo, do economista, do historiador ou do estudioso de música, cultura popular ou literatura, mas a visão do designer, comprometida com o universo do projeto e com as questões relativas às tecnologias de reprodução e difusão do objeto e da informação em larga escala.
Em resumo, e usando um lugar comum, quanto mais nacionais formos, mais universais seremos, quanto mais caracteristicamente brasileiro for o nosso produto, mais facilidade ele encontrará para se colocar num mercado globalizado. A marca nacional tornou-se condição para a sobrevivência econômica e cultural. Num contexto em que a quantidade de ofertas tende a aumentar numa proporção avassaladora, aqueles países que não se projetarem de forma original serão tragados pelo rodamoinho da competição. E é exatamente aí que entra a responsabilidade do designer brasileiro e sua obrigação de interferir construtivamente num mercado cheio de vícios e preconceitos.
Cabe a nós o compromisso de construir uma linguagem que nos exprima como nação, que distinga nossos produtos, no plano internacional, no momento das trocas comerciais. O design gráfico brasileiro conseguirá definir um timbre próprio, livrando-se da excessiva dependência que tem mantido com as tendências estéticas internacionais, no momento em que ajustar o foco nas tradições culturais do país e nas necessidades particulares dos homens e das mulheres que o habitam.


Ana Luisa Escorel é designer e integra a equipe de projeto do escritório 19 Design.



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