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DESIGN
Embora de alto nível, o design gráfico no Brasil ainda é incapaz de definir
uma identidade própria
Prisma da visão
ANA LUISA ESCOREL
especial para a Folha
É muito difícil para um contemporâneo avaliar com lucidez as
tendências culturais de seu tempo.
A excessiva proximidade tende a
desnortear o juízo. Vistos à distância, no entanto, de outro momento histórico, os traços dominantes
de uma época costumam mostrar
tal solidariedade que é como se tivessem irradiado de um mesmo
centro, já que o afastamento propicia a visão abrangente dos códigos e facilita a leitura de suas relações.
É por isso que, quando nos detemos na observação de um dado
período e de suas tendências, podemos constatar a coerência existente entre manifestações de natureza diferente: obras literárias,
pictóricas, escultóricas, arquitetônicas, musicais, tipográficas Äe
entre elas e a maneira das pessoas
se vestirem, falarem, escreverem e
se portarem nas relações interpessoais, naquele preciso contexto.
Para conseguir essa perspectiva,
no entanto, é preciso que o período examinado esteja distante algumas dezenas de anos.
Aceito esse pressuposto, pode-se
concluir que, na sincronia que todos temos com a atual produção
cultural brasileira, de maneira geral, e com o design gráfico, em
particular, fica extremamente difícil a avaliação equilibrada das tendências, a menos que se acate um
prisma de total relatividade que
coloque o raciocínio que vamos
tentar desenvolver no terreno da
mera conjectura. Só assim poderemos arriscar a hipótese de que, em
nossos dias, o design gráfico brasileiro revela duas inclinações principais: uma, derivada do desejo de
quem contrata os trabalhos profissionais do designer; outra, da atitude projetual do próprio designer. Ambas produzem um resultado que está longe de nos exprimir
como nação.
Nesse quadro, pode-se dizer que
a primeira tendência se ressente da
desinformação que envolve a atividade e de um certo medo do novo. Assim, na encomenda ao designer costuma vir embutida a recomendação de que siga um determinado modelo, conhecido, testado e aceito, via de regra no Primeiro Mundo. Essa atitude exprime
não apenas os vícios culturais de
quem compra os serviços do designer, mas também falta de confiança na capacidade de leitura
simbólica do usuário. Ou seja, se
por um lado o cliente do designer
gráfico não costuma aceitar senão
aquilo que valoriza culturalmente,
que já conhece e a que se habituou,
por outro, duvida dos recursos do
público ao qual dirige seus produtos.
As duas atitudes funcionam como verdadeiros freios à capacidade de expressão, restringindo as
possibilidades do projetista. E, o
que é mais grave, esses freios acabam por ser introjetados pelo designer, que passa a desenvolver
com sua linguagem uma relação
de excessiva prudência, aparando
as próprias asas e comprometendo
o vôo.
Poder-se-ia argumentar que o
embate entre a criação e a expectativa de quem encomenda o trabalho é quase tão antigo quanto a
própria civilização. E esse argumento seria absolutamente verdadeiro. A história das formas de
manifestação artísticas no Ocidente tem sido, de fato, um registro
daquilo que sobreviveu ao conflito
entre o desejo do criador e o desejo
do agente de quem partiu a encomenda. Daí a necessidade de o designer gráfico desenvolver uma
acuidade suplementar que o dote
de um sistema de medidas interno, no manejo do qual os elementos com que constrói seu discurso
possam ser calculados de maneira
que o produto resulte harmonioso: nem muito carregado de informação, a ponto de não poder ser
apreendido, nem muito banal, a
ponto de se dissolver no meio dos
outros.
Tanto melhor será o designer
quanto mais hábil for no ajuste
dessa equação, já que a abertura
para o novo representa o compromisso com sua intuição e com os
direitos do usuário, enquanto um
certo grau de redundância, a condição para realizar e transmitir o
trabalho.
No Brasil, onde o design gráfico
não foi incorporado nem como
manifestação cultural nem como
instrumento de planejamento e
projeto, a margem para o exercício de soluções experimentais costuma ser muito estreita, à diferença do que ocorre nos países do
centro, onde a atividade já se plasmou ao cotidiano. Lá é relativamente corriqueira a busca de inovação gráfica e existe um bom
mercado para as soluções inusitadas que são produzidas, vendidas
e compradas, circulando sem problemas junto a um público bastante numeroso.
No caso brasileiro, a base dessa
resistência à informação nova,
desse apego à estrutura já testada e
aceita, repousa num certo desconhecimento de quais sejam os recursos e a natureza da profissão,
bem como num forte sentimento
de inferioridade, resquício colonialista que tende a valorizar o que
se origina nas metrópoles.
Esse colonialismo e essa falta de
informação acerca do arco de possibilidades do design, que norteiam os agentes de quem parte a
encomenda do trabalho, atuam
também entre os próprios designers, engessando sua capacidade
de projetar. Arriscando uma excessiva generalização, diríamos
que o design gráfico brasileiro jamais alcançou matiz próprio. Desde que a atividade passou a ser
praticada regularmente no país,
há cerca de 30 anos, vem sofrendo
influências que a marcaram profundamente e que se vêm sucedendo no tempo. Já tivemos um
design gráfico influenciado pelo
funcionalismo alemão, pelo racionalismo suíço, pelo psicodelismo
americano, pelo estilo "casual"
californiano, pelo movimento
punk inglês.
A voga atual consiste em dissolver a imagem, em privilegiar soluções não-lineares de organização
do texto, em camuflar a informação principal, despistando o entendimento por meio de uma excessiva valorização do arbitrário.
Essa tendência tem no designer
americano David Carson seu representante de maior prestígio.
Portanto, pressionado pelo mercado e vítima das lacunas de sua
formação, o profissional brasileiro
tem revelado mais habilidade em
reproduzir as tendências que chegam, principalmente, das publicações especializadas internacionais
do que em abrir suas próprias picadas com os recursos disponíveis
em si mesmo e na tradição cultural
de seu país.
Isso não significa que o design
gráfico que se pratica atualmente
no Brasil seja de má qualidade.
Chegamos, já há cerca de 15 anos,
a um grande domínio da técnica e
dos recursos de expressão Äe
nosso desempenho é, certamente,
o mais eficiente da América Latina. O que nos falta não é, infelizmente, algo que seja fácil nem de
adquirir, nem de praticar, tendo
em vista a condição de país periférico do Brasil, vulnerável a influências de culturas mais estruturadas e economias mais poderosas, que não dispensam meios de
sujeitá-lo a conveniências que
nem sempre são as suas. O que nos
falta é segurança para incorporar
os códigos culturais genuínos da
nação, interesse em desenvolvê-los no plano do projeto e pertinácia para colocá-los no mercado.
No primeiro semestre, em ocasiões diferentes, Wim Crwell, designer holandês de grande prestígio, e Emily Hayes, designer inglesa, assessora do British Council,
manifestaram-se acerca de nosso
design gráfico, beneficiando-se do
distanciamento resultante do fato
de serem estrangeiros e estarem de
passagem pelo Brasil. Ambos exprimiram a mesma opinião, tomando como referência os catálogos da Bienal de Design Gráfico
deste ano, organizada pela ADG
(Associação dos Designers Gráficos). Concluíram que a prática
profissional brasileira equivale,
em qualidade, à de qualquer grande centro; porém faltaria a ela
identidade nacional. O design gráfico não teria conseguido incorporar e reproduzir, no nível da linguagem, aqueles traços distintivos
que fazem, por exemplo, com que
a nossa música popular e nosso futebol sejam reconhecíveis como
brasileiros em qualquer lugar do
mundo.
Na verdade, essa pasteurização
internacionalista não é privilégio
que praticamos sozinhos. Atualmente se observa como que uma
convergência dos códigos gráficos
para um mesmo núcleo de cacoetes visuais. Sintoma disso é o número especial sobre o design gráfico europeu, publicado há cerca de
dois anos por uma das melhores
revistas do gênero, a americana
"Print". Com a exceção da Espanha, da Alemanha e da Suíça, todas as outras mostras nacionais
eram extremamente semelhantes.
Não que os projetos selecionados
pelos editores da revista fossem
maus. Longe disso. O que se verificava era a tendência à perda da
identidade nacional e, portanto,
dos valores a ela subjacentes, ordenados e polidos pelo longo tempo que levaram para se constituir.
Num país jovem como o Brasil, esse tempo de sedimentação é pequeno e, logo, maior a vulnerabilidade à interferência de elementos
alheios às tradições.
Aloisio Magalhães, o melhor e
mais interessante designer gráfico
brasileiro de sua geração, foi
exemplar nesse aspecto da valorização dos traços distintivos da cultura de nosso país. Com um rigor
absoluto, no plano do conceito e
no plano da forma, conseguiu
conjugar em seus trabalhos a tendência dominante do design gráfico mundial, que, naquele momento, era representada pelo racionalismo suíço, com o emprego de
elementos colhidos nas várias formas de manifestação da cultura
brasileira. Sua ação, e a da equipe
que comandou durante os anos
em que manteve seu escritório no
Rio de Janeiro, no entanto, não foi
suficiente para constituir a base de
uma linguagem gráfica nacional.
Mais adiante, quando Aloisio esteve à frente do Centro Nacional
de Referência Cultural, da Fundação Nacional Pró-Memória e da
Secretaria de Cultura do Ministério da Educação, entre 1979 e 1982,
sistematizou melhor essa visão da
necessidade de identificar e preservar o bem cultural brasileiro.
Naquele momento, e para ilustrar
seu empenho na valorização de
nossas tradições, criou uma série
de imagens extremamente expressivas, que didaticamente espalhou
pelo país, nos encontros regulares
que costumava manter com instituições e autoridades da área cultural.
Entre essas imagens, uma era
particularmente sagaz: a do estilingue. Repetia que, assim como
ocorre com o estilingue, no qual
quanto mais a pedra se afastar da
forquilha mais o impulso do elástico a projetará na distância, ocorre também com a força prospectiva das tradições culturais. Quanto
mais um povo puder se voltar no
tempo, em busca da avaliação crítica de suas raízes, maior será a
força de sua projeção para o futuro. Daí a importância da preservação do bem cultural, conceito que
abrange desde a igreja barroca até
a lata de lixo fabricada com restos
de pneu velho, exemplo do engenho popular de uma cultura da escassez, onde o reaproveitamento é
vital.
Aloisio acreditava que, se os
bens culturais brasileiros fossem
preservados e estivessem disponíveis para fruição e consulta, certamente serviriam como base para a
construção do nosso futuro, na linha de uma proposta alternativa e
original, que evidenciasse os traços distintivos da nação no confronto com outras culturas. Nesse
rumo, foi antecedido por Mário de
Andrade e Rodrigo Melo Franco
de Andrade, que, como ele, lutaram pela valorização da identidade nacional no Departamento
Municipal de Cultura, em São
Paulo, e no Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional,
respectivamente, e por toda uma
linhagem de grandes intelectuais,
entre os quais se destacam o próprio Mário, Gilberto Freyre, Caio
Prado Júnior e Sergio Buarque de
Holanda, que, em obras fundamentais, definiram o caminho para a compreensão do Brasil, enquanto nação particular.
A novidade trazida por Aloisio
Magalhães, no entanto, reside no
prisma de visão. Não mais a do sociólogo, do economista, do historiador ou do estudioso de música,
cultura popular ou literatura, mas
a visão do designer, comprometida com o universo do projeto e
com as questões relativas às tecnologias de reprodução e difusão do
objeto e da informação em larga
escala.
Em resumo, e usando um lugar
comum, quanto mais nacionais
formos, mais universais seremos,
quanto mais caracteristicamente
brasileiro for o nosso produto,
mais facilidade ele encontrará para se colocar num mercado globalizado. A marca nacional tornou-se condição para a sobrevivência econômica e cultural. Num
contexto em que a quantidade de
ofertas tende a aumentar numa
proporção avassaladora, aqueles
países que não se projetarem de
forma original serão tragados pelo
rodamoinho da competição. E é
exatamente aí que entra a responsabilidade do designer brasileiro e
sua obrigação de interferir construtivamente num mercado cheio
de vícios e preconceitos.
Cabe a nós o compromisso de
construir uma linguagem que nos
exprima como nação, que distinga
nossos produtos, no plano internacional, no momento das trocas
comerciais. O design gráfico brasileiro conseguirá definir um timbre
próprio, livrando-se da excessiva
dependência que tem mantido
com as tendências estéticas internacionais, no momento em que
ajustar o foco nas tradições culturais do país e nas necessidades
particulares dos homens e das mulheres que o habitam.
Ana Luisa Escorel é designer e integra a equipe
de projeto do escritório 19 Design.
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