São Paulo, domingo, 20 de setembro de 1998

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LIVROS
Sai no Brasil antologia de poemas do irlandês Seamus Heaney, ganhador do Nobel em 1995
O escavador da infância

IVO BARROSO
especial para a Folha

O recente atentado fratricida de Omagh, na Irlanda do Norte, que deixou um débito de 42 mortos e 220 feridos, deverá certamente ter chocado o poeta católico irlandês Seamus Heaney (1939), sem contudo o levar a uma declaração pública de repúdio. É que Heaney, desde algum tempo, para preservar sua poesia, resolveu separar as questões estéticas das políticas, embora tenha sido, no passado, responsável por alguns inconvencionais e subtônicos poemas de protesto contra as atrocidades praticadas tanto pelos católicos quanto pelos protestantes da insana guerra religiosa que se desenvolve naquela região. E terá sido, sem dúvida, muito em função dessa "participação" poética que lhe foi atribuído o prêmio Nobel de 1995.
Contudo o premiado escritor, já bem antes, desde o famoso incidente do "Bloody Sunday", de 30 de janeiro de 1972, apesar de ter escrito um poema a propósito, que jamais foi publicado, resolveu demitir-se da cátedra de inglês da Queen's University de Belfast e se mudou com a família para o condado de Wicklow, ao sul de Dublin, na República da Irlanda, onde passou a viver longe dos distúrbios de sua terra natal. Essa atitude, como era de esperar, acarretou a Seamus a "cobrança" não só por parte da ala radical do IRA quanto da dos simpatizantes do unionismo.
Depois de atingir uma invejável posição nos círculos universitários ingleses, professor de poesia na Universidade de Oxford, ganhador de inúmeros prêmios literários, ele hoje pode se dar ao direito dessa não-participação nos "acontecimentos" para mais se dedicar à recomposição de sua "sepultada e merencória infância". Ou, como ele próprio disse: "Precisei construir um abrigo dentro de mim mesmo onde os poemas continuassem sendo poemas".
Assim como a maioria dos leitores brasileiros se perguntava quem era esse Seamus Heaney que havia ganho o Prêmio Nobel de Literatura (aproximadamente US$ 1 milhão) em 1995, maior razão lhes cabe agora perguntar que sentido terá uma tradução brasileira integral de seu livro "New Selected Poems 1966-1987", obviamente direcionado ao público inglês. A resposta esclarece: Heaney é um poeta essencial que merece divulgação entre nós a fim de que também o leitor brasileiro se familiarize com uma das grandes vozes da moderna poesia de língua inglesa. O crítico e poeta norte-americano Robert Lowell considerava-o "o mais importante poeta irlandês depois de Yeats" e ele é, sem dúvida, o poeta de língua inglesa de hoje mais lido em todo o mundo.
Produto típico da universidade, Seamus atrai uma legião de alunos e admiradores às suas aulas e conferências, nelas atuando como uma espécie de superstar literário, apesar de sua modéstia e da contenção muito britânica de suas maneiras. Seu inglês falado não se deixou contaminar por nenhuma inflexão dos falares irlandeses, embora tenha declarado que "de modo algum partilh(a) das preocupações e perspectivas de um inglês".
Contudo, não deixa de ser um tanto despropositado reproduzir-se a totalidade da antologia organizada pelo próprio autor em 1980 e ampliada em 1990, porque a temática de Seamus Heaney é às vezes "paroquial" demais para os próprios leitores ingleses, na medida em que reflete a paisagem, usos e costumes, reminiscências de infância, expressões coloquiais e curiosidades linguísticas de sua Irlanda do Norte. Condensada e selecionada pelo próprio tradutor e com o texto inglês vis-à-vis, teria a edição brasileira contribuído de maneira mais eficiente para a iniciação do leitor.
Seamus Heaney provém de família com fundas raízes rurais, e sabemos, pelos poemas, que, pelo menos desde o avô, seus ancestrais eram plantadores de batatas e cortadores de turfa. Essa linhagem de apego à terra e às atividades agrícolas vai se romper exatamente com ele, que já no primeiro poema desta seleção ("Digging"/"Cavar"), escrito aos 25 anos, declara haver trocado a pá dos cavouqueiros pela pena dos poetas, terminando por dizer que, inapto para os trabalhos do campo, irá "cavar (a vida) com ela (a pena)". Se a imagem já estava em Rimbaud ("la main à plume vaut la main à charrue"), seu desenvolvimento, contudo, antecipava a perícia de um grande artesão do verso.
Como já foi muitas vezes dito, a poesia marcadamente descritiva de Heaney fica a dever ao processo poético de Wordsworth, aliado à técnica aliterativa de Hopkins. Mas Heaney não ficou só aí: soube introduzir um elemento novo em seu verso Äa história. Descrevendo restos fósseis encontrados em escavações feitas na Dinamarca e na Irlanda, consegue emocionar-nos com a transposição dos sentimentos relativos a esses achados para seus próprios ancestrais e atribuir a seus atos conotações da realidade beligerante de sua terra natal. As figuras do pai e da mãe Ätemas de difícil realização poética pelo perigo de resvalar no sentimentalÄ são evocadas em duas séries magnificamente enxutas de poemas, que por si só valem a antologia, tanto no original quanto na tradução.
Tem sido comum entre nós, na recensão de livros de poesia traduzida, falar o resenhador sobre o autor do livro, sua importância literária, as características de seu estilo, como se o objeto de sua crítica fosse o original e não a tradução. É natural que o leitor, em tais casos, esteja igualmente à espera de um pronunciamento sobre os méritos e/ou deméritos do texto traduzido, para saber se este conseguiu preservar em sua língua as características que tais resenhadores apontam no original. O tradutor de poemas é, no mínimo, co-autor do livro, e os nossos editores deviam seguir a boa norma das publicações estrangeiras do gênero, estampando na contracapa algumas informações sobre ele, uma como que ficha técnica capaz de permitir a avaliação imediata, pelo leitor, de sua capacidade em relação ao trabalho que vai ler.
José Antonio Arantes, a julgar pelas provas, está suficientemente dotado para o trabalho, é extremado cultor da poesia e conhece bem a biografia de Seamus, considerando-se as 32 "entries" de suas "fontes consultadas" e o terso e esclarecedor prefácio com que coloca o leitor "por dentro" dos temas e dos "valores" de Heaney, com quem, aliás, trocou correspondência para sanar "as dúvidas mais prementes" sobre passagens obscuras ou herméticas dos versos (há muitas). Lidos independentemente do original, os poemas funcionam em sua maior parte, embora vez por outra possa surpreender o aparecimento de palavras como "gálea", "mingolas", "caramanchel", "fórcipe", que nos dão a impressão de estarmos lendo uma tradução portuguesa.
Mas o original está igualmente embebido de palavras estranhas e é sempre difícil verter o vocabulário concreto de outras línguas. O problema maior ocorre com nomes de pássaros, plantas e lugares, quando um sonoro "haw" inglês se transforma inevitavelmente num inestético "pilrito" e o vulgar "skunk" se apresenta como uma estranha "maritafede". Já a utilização, por exemplo, da palavra "morenas" em vez de "morainas" no poema "Rainha da Turfeira" ("Bog Queen") certamente enseja confusão só sanada com a vista do original, que comparece de forma subsidiária, como nota cursiva de pé de página, o que dificulta um "confronto" do texto.
Mas a soma dos acertos, o encontro de belas expressões como "a língua nadadora da nau", "veias-veios" (para "river-veins"), a recuperação das rimas esporádicas e até mesmo o achado de "toleimas" para corresponder a Seamus (que se pronuncia aproximadamente Xeimas) demonstram o cuidado com os detalhes estilísticos, que é o brevê dos grandes tradutores. Seamus Heaney encontrou no Brasil um tradutor que soube reverenciá-lo até na medida extrema de uma língua que prima pelas generalizações.

POEMAS

Os escribas

Nunca me empolguei com eles. Se eram excelentes, eram rabugentos e espins como o azevim que liquesciam para a tinta. E se jamais me liguei a eles eles jamais me recusaram meu lugar.

Na quietude do scriptorium uma pérola negra crescia neles como a velha crosta seca nas penas. Na margem de textos de encômio garatujavam e agadanhavam. Resmungavam se o dia estava escuro ou muito giz tornara o velino brando ou muito pouco o deixara oleoso.

Sob as garupas dos caracteres reuniram tropas de cóleras míopes. O ressentimento semeou nos fetos desencaracolados das versais.

De quando em quando eu me punha longe dali e em minha ausência via a inclinada cursiva de um dorso, e os sentia aperfeiçoarem-se contra mim página por página.

Que se lembrem desta não desprezível contribuição a sua arte invejosa.

The Scribes

I never warmed to them. If they were excellent they were petulant and jaggy as the holly tree they rendered down for ink. And if I never belonged among them, they could never deny me my place.

In the hush of the scriptorium a black pearl kept gathering in them like the old dry glut inside their quills. In the margin of texts of praise they scratched and clawed. They snarled if the day was dark or too much chalk had made the vellum bland or too little left it oily.

Under the rumps of lettering they herded myopic angers. Resentment seeded in the uncurling fernheads of their capitals.

Now and again I started up miles away and saw in my absence the sloped cursive of each back and felt them perfect themselves against me page by page

Let them remember this not inconsiderable contribution to their jealous art.

A Musa Gutural

Fim do estio, e à meia-noite Senti o cheiro do calor do dia: À janela do hotel sobre o estacionamento Absorvi o lodoso ar noturno do lago E observei a moçada sair da discoteca.

As vozes subiam indistintas e confortantes Qual bolhas oleosas que a trenca nutriente soltava Naquele ocaso Äa trenca viscosa Outrora chamada "peixe doutor" porque seu visco, Diziam, curava as feridas do peixe que a tocasse.

Uma moça de traje branco Era cortejada entre os carros: No que sua voz inçava e chapinhava em risos Senti-me como um lúcio velho todo chagas Ansiando a nado o contato com vida boca-branda.

The guttural muse

Late summer, and at midnight I smelt the heat of the day: At my window over the hotel car park I breathed the muddied night airs off the lake And watched a young crowd leave the discothèque.

Their voices rose up thick and comforting As oily bubbles the feeding tench sent up That evening at dusk Äthe slimy tench Once called the "doctor fish" because his slime Was said to heal the wounds of fish that touched it.

A girl in a white dress Was being courted out among the cars: As her voice swarmed and puddled into laughs I felt like some old pike all badged with sores Wanting to swim in touch with soft-mouthed life.



Os poemas acima foram extraídos do livro "Poemas - 1966-1987" (Companhia das Letras), de Seamus Heaney, com tradução de José Antonio Arantes.

A OBRA

Poemas - 1966 - 1987 - Seamus Heaney. Tradução de José Antonio Arantes. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 344 págs. R$ 28,00.


Ivo Barroso é poeta, crítico e tradutor. Verteu do francês, entre outros, "Arthur Rimbaud - Poesia Completa" (Topbooks).



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