|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS
Sai no Brasil antologia de poemas do irlandês Seamus Heaney, ganhador do Nobel em 1995
O escavador da infância
IVO BARROSO
especial para a Folha
O recente atentado fratricida de
Omagh, na Irlanda do Norte, que
deixou um débito de 42 mortos e
220 feridos, deverá certamente ter
chocado o poeta católico irlandês
Seamus Heaney (1939), sem contudo o levar a uma declaração pública de repúdio. É que Heaney,
desde algum tempo, para preservar sua poesia, resolveu separar as
questões estéticas das políticas,
embora tenha sido, no passado,
responsável por alguns inconvencionais e subtônicos poemas de
protesto contra as atrocidades
praticadas tanto pelos católicos
quanto pelos protestantes da insana guerra religiosa que se desenvolve naquela região. E terá sido,
sem dúvida, muito em função dessa "participação" poética que lhe
foi atribuído o prêmio Nobel de
1995.
Contudo o premiado escritor, já
bem antes, desde o famoso incidente do "Bloody Sunday", de 30
de janeiro de 1972, apesar de ter
escrito um poema a propósito,
que jamais foi publicado, resolveu
demitir-se da cátedra de inglês da
Queen's University de Belfast e se
mudou com a família para o condado de Wicklow, ao sul de Dublin, na República da Irlanda, onde passou a viver longe dos distúrbios de sua terra natal. Essa atitude, como era de esperar, acarretou
a Seamus a "cobrança" não só
por parte da ala radical do IRA
quanto da dos simpatizantes do
unionismo.
Depois de atingir uma invejável
posição nos círculos universitários ingleses, professor de poesia
na Universidade de Oxford, ganhador de inúmeros prêmios literários, ele hoje pode se dar ao direito dessa não-participação nos
"acontecimentos" para mais se
dedicar à recomposição de sua
"sepultada e merencória infância". Ou, como ele próprio disse:
"Precisei construir um abrigo
dentro de mim mesmo onde os
poemas continuassem sendo poemas".
Assim como a maioria dos leitores brasileiros se perguntava quem
era esse Seamus Heaney que havia
ganho o Prêmio Nobel de Literatura (aproximadamente US$ 1 milhão) em 1995, maior razão lhes
cabe agora perguntar que sentido
terá uma tradução brasileira integral de seu livro "New Selected
Poems 1966-1987", obviamente
direcionado ao público inglês. A
resposta esclarece: Heaney é um
poeta essencial que merece divulgação entre nós a fim de que também o leitor brasileiro se familiarize com uma das grandes vozes da
moderna poesia de língua inglesa.
O crítico e poeta norte-americano
Robert Lowell considerava-o "o
mais importante poeta irlandês
depois de Yeats" e ele é, sem dúvida, o poeta de língua inglesa de
hoje mais lido em todo o mundo.
Produto típico da universidade,
Seamus atrai uma legião de alunos
e admiradores às suas aulas e conferências, nelas atuando como
uma espécie de superstar literário,
apesar de sua modéstia e da contenção muito britânica de suas
maneiras. Seu inglês falado não se
deixou contaminar por nenhuma
inflexão dos falares irlandeses,
embora tenha declarado que "de
modo algum partilh(a) das preocupações e perspectivas de um inglês".
Contudo, não deixa de ser um
tanto despropositado reproduzir-se a totalidade da antologia organizada pelo próprio autor em
1980 e ampliada em 1990, porque a
temática de Seamus Heaney é às
vezes "paroquial" demais para os
próprios leitores ingleses, na medida em que reflete a paisagem,
usos e costumes, reminiscências
de infância, expressões coloquiais
e curiosidades linguísticas de sua
Irlanda do Norte. Condensada e
selecionada pelo próprio tradutor
e com o texto inglês vis-à-vis, teria
a edição brasileira contribuído de
maneira mais eficiente para a iniciação do leitor.
Seamus Heaney provém de família com fundas raízes rurais, e
sabemos, pelos poemas, que, pelo
menos desde o avô, seus ancestrais eram plantadores de batatas e
cortadores de turfa. Essa linhagem
de apego à terra e às atividades
agrícolas vai se romper exatamente com ele, que já no primeiro poema desta seleção ("Digging"/"Cavar"), escrito aos 25
anos, declara haver trocado a pá
dos cavouqueiros pela pena dos
poetas, terminando por dizer que,
inapto para os trabalhos do campo, irá "cavar (a vida) com ela (a
pena)". Se a imagem já estava em
Rimbaud ("la main à plume vaut
la main à charrue"), seu desenvolvimento, contudo, antecipava
a perícia de um grande artesão do
verso.
Como já foi muitas vezes dito, a
poesia marcadamente descritiva
de Heaney fica a dever ao processo
poético de Wordsworth, aliado à
técnica aliterativa de Hopkins.
Mas Heaney não ficou só aí: soube
introduzir um elemento novo em
seu verso Äa história. Descrevendo restos fósseis encontrados em
escavações feitas na Dinamarca e
na Irlanda, consegue emocionar-nos com a transposição dos
sentimentos relativos a esses achados para seus próprios ancestrais e
atribuir a seus atos conotações da
realidade beligerante de sua terra
natal. As figuras do pai e da mãe
Ätemas de difícil realização poética pelo perigo de resvalar no sentimentalÄ são evocadas em duas
séries magnificamente enxutas de
poemas, que por si só valem a antologia, tanto no original quanto
na tradução.
Tem sido comum entre nós, na
recensão de livros de poesia traduzida, falar o resenhador sobre o
autor do livro, sua importância literária, as características de seu estilo, como se o objeto de sua crítica fosse o original e não a tradução. É natural que o leitor, em tais
casos, esteja igualmente à espera
de um pronunciamento sobre os
méritos e/ou deméritos do texto
traduzido, para saber se este conseguiu preservar em sua língua as
características que tais resenhadores apontam no original. O tradutor de poemas é, no mínimo,
co-autor do livro, e os nossos editores deviam seguir a boa norma
das publicações estrangeiras do
gênero, estampando na contracapa algumas informações sobre ele,
uma como que ficha técnica capaz
de permitir a avaliação imediata,
pelo leitor, de sua capacidade em
relação ao trabalho que vai ler.
José Antonio Arantes, a julgar
pelas provas, está suficientemente
dotado para o trabalho, é extremado cultor da poesia e conhece
bem a biografia de Seamus, considerando-se as 32 "entries" de
suas "fontes consultadas" e o terso e esclarecedor prefácio com que
coloca o leitor "por dentro" dos
temas e dos "valores" de Heaney,
com quem, aliás, trocou correspondência para sanar "as dúvidas
mais prementes" sobre passagens
obscuras ou herméticas dos versos
(há muitas). Lidos independentemente do original, os poemas funcionam em sua maior parte, embora vez por outra possa surpreender o aparecimento de palavras como "gálea", "mingolas",
"caramanchel", "fórcipe", que
nos dão a impressão de estarmos
lendo uma tradução portuguesa.
Mas o original está igualmente
embebido de palavras estranhas e
é sempre difícil verter o vocabulário concreto de outras línguas. O
problema maior ocorre com nomes de pássaros, plantas e lugares,
quando um sonoro "haw" inglês
se transforma inevitavelmente
num inestético "pilrito" e o vulgar "skunk" se apresenta como
uma estranha "maritafede". Já a
utilização, por exemplo, da palavra "morenas" em vez de "morainas" no poema "Rainha da
Turfeira" ("Bog Queen") certamente enseja confusão só sanada
com a vista do original, que comparece de forma subsidiária, como
nota cursiva de pé de página, o que
dificulta um "confronto" do texto.
Mas a soma dos acertos, o encontro de belas expressões como
"a língua nadadora da nau",
"veias-veios" (para "river-veins"), a recuperação das rimas esporádicas e até mesmo o
achado de "toleimas" para corresponder a Seamus (que se pronuncia aproximadamente Xeimas) demonstram o cuidado com
os detalhes estilísticos, que é o brevê dos grandes tradutores. Seamus
Heaney encontrou no Brasil um
tradutor que soube reverenciá-lo
até na medida extrema de uma língua que prima pelas generalizações.
POEMAS
Os escribas
Nunca me empolguei com eles.
Se eram excelentes, eram rabugentos
e espins como o azevim
que liquesciam para a tinta.
E se jamais me liguei a eles
eles jamais me recusaram meu lugar.
Na quietude do scriptorium
uma pérola negra crescia neles
como a velha crosta seca nas penas.
Na margem de textos de encômio
garatujavam e agadanhavam.
Resmungavam se o dia estava escuro
ou muito giz tornara o velino brando
ou muito pouco o deixara oleoso.
Sob as garupas dos caracteres
reuniram tropas de cóleras míopes.
O ressentimento semeou nos fetos
desencaracolados das versais.
De quando em quando eu me punha
longe dali e em minha ausência via
a inclinada cursiva de um dorso, e os sentia
aperfeiçoarem-se contra mim página por página.
Que se lembrem desta não desprezível
contribuição a sua arte invejosa.
The Scribes
I never warmed to them.
If they were excellent they were petulant
and jaggy as the holly tree
they rendered down for ink.
And if I never belonged among them,
they could never deny me my place.
In the hush of the scriptorium
a black pearl kept gathering in them
like the old dry glut inside their quills.
In the margin of texts of praise
they scratched and clawed.
They snarled if the day was dark
or too much chalk had made the vellum bland
or too little left it oily.
Under the rumps of lettering
they herded myopic angers.
Resentment seeded in the uncurling
fernheads of their capitals.
Now and again I started up
miles away and saw in my absence
the sloped cursive of each back and felt them
perfect themselves against me page by page
Let them remember this not inconsiderable
contribution to their jealous art.
A Musa Gutural
Fim do estio, e à meia-noite
Senti o cheiro do calor do dia:
À janela do hotel sobre o estacionamento
Absorvi o lodoso ar noturno do lago
E observei a moçada sair da discoteca.
As vozes subiam indistintas e confortantes
Qual bolhas oleosas que a trenca nutriente soltava
Naquele ocaso Äa trenca viscosa
Outrora chamada "peixe doutor" porque seu visco,
Diziam, curava as feridas do peixe que a tocasse.
Uma moça de traje branco
Era cortejada entre os carros:
No que sua voz inçava e chapinhava em risos
Senti-me como um lúcio velho todo chagas
Ansiando a nado o contato com vida boca-branda.
The guttural muse
Late summer, and at midnight
I smelt the heat of the day:
At my window over the hotel car park
I breathed the muddied night airs off the lake
And watched a young crowd leave the discothèque.
Their voices rose up thick and comforting
As oily bubbles the feeding tench sent up
That evening at dusk Äthe slimy tench
Once called the "doctor fish" because his slime
Was said to heal the wounds of fish that touched it.
A girl in a white dress
Was being courted out among the cars:
As her voice swarmed and puddled into laughs
I felt like some old pike all badged with sores
Wanting to swim in touch with soft-mouthed life.
Os poemas acima foram extraídos do livro "Poemas - 1966-1987" (Companhia das Letras), de Seamus Heaney, com tradução de José Antonio Arantes.
A OBRA
Poemas - 1966 - 1987 - Seamus Heaney. Tradução de José Antonio Arantes. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 344 págs. R$ 28,00.
Ivo Barroso é poeta, crítico e tradutor. Verteu
do francês, entre outros, "Arthur Rimbaud - Poesia Completa" (Topbooks).
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|