São Paulo, domingo, 20 de setembro de 1998

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LIVROS
"Cortejo em Abril" reúne 26 textos ficcionais de Zulmira Ribeiro Tavares
As marcas da maldade de uma bruxa material

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Este livrinho Äincômodo, mofino, espetento como pedra no sapatoÄ junta 25 textos (alguns curtíssimos) ao conto de 24 páginas que lhe dá o título.
"Cortejo em Abril": trata-se do enterro de Tancredo Neves, tal como visto por um paulistano pobre, morador da Vila Uberabinha, entre Moema e a Vila Nova Conceição. Esse personagem conserta eletrodomésticos, máquinas de escrever, o que vier pela frente. A autora lhe dá o nome de Consertador de Tudo.
O cortejo passa perto do parque Ibirapuera, ali no bairro, e ele vai assistir, junto com a multidão. "O Consertador de Tudo lembrou-se de quando uma vez tinha ido passear no Simba Safari no jipe de um feirante amigo e tinha sido assim. Eles dois haviam se fechado no jipe que se deslocava muito devagar e a todo momento tinham a impressão de que os leões sentados preguiçosamente na relva, soltando longos bocejos, iriam se levantar e dar taponas nos vidros. Esperavam por isso. Mas havia leões que até dormiam e outros que lhes davam o traseiro abanando-lhes a cauda com desinteresse."
Passa o enterro, o Consertador de Tudo vai cuidar da vida. Uma velhota de cabelo azul puxa conversa. "O senhor viu esse nosso povo que educação, como respeitou a passagem do cortejo? É, concordou o Consertador, só choravam."
Não conto o que aconteceu com o Consertador de Tudo depois desta cena, mesmo porque não é grande coisa. Mas já estamos dentro do mundo de Zulmira Ribeiro Tavares. A leitura de "Cortejo em Abril" é irresistível; foi irresistível, ao menos, para mim. Encontrei-me num mundo de uma trivialidade completa, de um cotidiano que seria errado qualificar como "opaco" ou "fosco", palavras um tanto eruditas. É um cotidiano encardido. Encardidinho, como a autora talvez dissesse.
O gosto pelos diminutivos, e pela forma curta, poderia aproximar Zulmira Tavares de Dalton Trevisan. Mas não é disto que se trata. O realismo de Dalton Trevisan busca uma espécie de concentração súbita, de baque surdo no desfecho, de gesto eloquente interrompido pelo meio. Já o realismo de Zulmira Tavares é feito de implicâncias, não de obsessões; de cismas, não de taras. Ela cuida mais do sem-sentido do que do absurdo; abomina a obliquidade do cafajestismo e do circunlóquio, preferindo a cadeira de espaldar reto, o encosto de palhinha, o decoro paulistano em que fervem, a seco, contrariedades comezinhas.
Zulmira Tavares obteve muito sucesso de crítica (e prêmios) com seus livros anteriores: "Termos de Comparação" (Perspectiva, 1974), "O Nome do Bispo" (Brasiliense), "O Mandril" (Brasiliense, 1988), "Jóias de Família" (Brasiliense, 1990) e "Café Pequeno" (Companhia das Letras, 1995). Mas esta senhora de quase 70 anos, que nos olha sorridente na foto da orelha do livro, pequena e magrinha, composta, maquinadora como ela só, merece maior reconhecimento do que o já obtido.
É uma escritora infernal. Esse seu realismo "diminuído", esse mundo "Vila Uberabinha", essa malvadeza quatrocentona na narração, esse "odiento" que ela tem situam Zulmira Tavares num nível raras vezes alcançado pela prosa modernista brasileira.
Lamento dizer, entretanto, que esse nível é raras vezes alcançado pela própria autora, ao menos neste livro.
Em alguns contos ("O Guardador de Sol", "À Pedra Calcinada", "Um Assassino", "Zombaria") é como se a autora entregasse demais o jogo, explicitando a metáfora que organizava o texto. Ela deixa cair, na última frase, a explicação do título: tudo se torna óbvio demais. Do mesmo modo, ela às vezes se entrega a um lirismo puramente verbal, que não tem nada a ver com a sua dureza de atitude, com sua pureza literária: "O amor é paisagem marinha que se recorda" (pág. 66); "Já o que deslembro não me derruba. É breu." (pág. 38); "O avô cabeceia na poltrona e procura a sua infância com dedos sonolentos arranhando a manta xadrez" (pág. 55).
Sentimentalidades que não condizem com a inteligência da autora. Voltemos ao primeiro conto, o "Cortejo em Abril".
A arte de Zulmira Tavares pode ser percebida, nos trechos que citei no começo deste artigo, por meio de pequenos deslocamentos, de torções diminutas no texto. Chamou-me a atenção a ausência de vírgulas: "O senhor viu esse nosso povo que educação, como respeitou a passagem do cortejo?". É o que pergunta a senhora de cabelos azuis ao Consertador de Tudo. A omissão da vírgula entre "nosso povo" e "que educação" obedece a um intuito de coloquialidade.
Mas não é só coloquialidade. É automatismo, é violência. Quando a autora faz essas reproduções da fala cotidiana, sua atitude não é a de um mero registro. Investe numa estupidez flaubertiana, que rompe as regras da gramática. Do mesmo modo, em outro trecho citado acima, ela escreve: "O Consertador de Tudo lembrou-se de uma vez quando...".
Uma vez quando? A coloquialidade é mais do que reprodução do real, mais do que gramática ruinzinha: é esforço de memória do personagem, inabilidade vernacular que a autora reproduz perversamente.
Pois "Cortejo em Abril" busca fixar o memorável, o cívico, o político, o histórico, o "uma vez quando" na mente de um personagem para quem tudo termina diminuído, respeitosamente, no âmbito de uma opressão cotidiana sem perspectiva de mudança. Assim como Tancredo acenava com "mudanças", o conto acena com algumas -não posso contá-las- que se revelam pura mistificação, puro engodo.
Assim, a sintaxe de Zulmira Tavares imita uma fala "popular" que o enredo, o texto, a psicologia pobre do personagem denegam criticamente. A falta de vírgulas é uma imitação da fala real. Mas o real se apresenta sempre, nestes contos, como frustração. Mais um motivo para que a autora se aferre a ele. Daí seu tom de implicância, de pedra no sapato.
Mas é como se em cada pedra no sapato houvesse um diamante bem pequeno. Zulmira Tavares cede poucas vezes à tentação de lapidá-lo. Prefere, em geral, o feio, o duro, a jaça ruim que tenha. E quando revela essa ruindade é uma escritora fora do comum. O mesmo comum que ela persegue... ela é muito esperta.
Marilene Felinto, talvez. Clarice Lispector, quem sabe, seja páreo. Lygia Fagundes Telles, num ou noutro conto. São todas mulheres que transformaram a feminilidade em maldade, umas bruxas. Mas Zulmira Tavares é menos a bruxa mística, e mais a bruxa material, implicante, sem psicologia, delas todas. Seus textos detestam a psicologia: esta bruxa tem cabelos brancos.

A OBRA

Cortejo em Abril - Zulmira Ribeiro Tavares. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 88 págs. R$ 14,50.



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