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LIVROS
"Cortejo em Abril" reúne 26
textos ficcionais de Zulmira Ribeiro Tavares
As marcas da maldade de uma bruxa material
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Este livrinho Äincômodo, mofino, espetento como pedra no sapatoÄ junta 25 textos (alguns
curtíssimos) ao conto de 24 páginas que lhe dá o título.
"Cortejo em Abril": trata-se do
enterro de Tancredo Neves, tal como visto por um paulistano pobre, morador da Vila Uberabinha,
entre Moema e a Vila Nova Conceição. Esse personagem conserta
eletrodomésticos, máquinas de escrever, o que vier pela frente. A autora lhe dá o nome de Consertador
de Tudo.
O cortejo passa perto do parque
Ibirapuera, ali no bairro, e ele vai
assistir, junto com a multidão. "O
Consertador de Tudo lembrou-se
de quando uma vez tinha ido passear no Simba Safari no jipe de um
feirante amigo e tinha sido assim.
Eles dois haviam se fechado no jipe que se deslocava muito devagar
e a todo momento tinham a impressão de que os leões sentados
preguiçosamente na relva, soltando longos bocejos, iriam se levantar e dar taponas nos vidros. Esperavam por isso. Mas havia leões
que até dormiam e outros que lhes
davam o traseiro abanando-lhes a
cauda com desinteresse."
Passa o enterro, o Consertador
de Tudo vai cuidar da vida. Uma
velhota de cabelo azul puxa conversa. "O senhor viu esse nosso
povo que educação, como respeitou a passagem do cortejo? É, concordou o Consertador, só choravam."
Não conto o que aconteceu com
o Consertador de Tudo depois
desta cena, mesmo porque não é
grande coisa. Mas já estamos dentro do mundo de Zulmira Ribeiro
Tavares. A leitura de "Cortejo em
Abril" é irresistível; foi irresistível, ao menos, para mim. Encontrei-me num mundo de uma trivialidade completa, de um cotidiano que seria errado qualificar como "opaco" ou "fosco", palavras um tanto eruditas. É um cotidiano encardido. Encardidinho,
como a autora talvez dissesse.
O gosto pelos diminutivos, e pela forma curta, poderia aproximar
Zulmira Tavares de Dalton Trevisan. Mas não é disto que se trata. O
realismo de Dalton Trevisan busca
uma espécie de concentração súbita, de baque surdo no desfecho,
de gesto eloquente interrompido
pelo meio. Já o realismo de Zulmira Tavares é feito de implicâncias,
não de obsessões; de cismas, não
de taras. Ela cuida mais do
sem-sentido do que do absurdo;
abomina a obliquidade do cafajestismo e do circunlóquio, preferindo a cadeira de espaldar reto, o encosto de palhinha, o decoro paulistano em que fervem, a seco,
contrariedades comezinhas.
Zulmira Tavares obteve muito
sucesso de crítica (e prêmios) com
seus livros anteriores: "Termos de
Comparação" (Perspectiva,
1974), "O Nome do Bispo" (Brasiliense), "O Mandril" (Brasiliense, 1988), "Jóias de Família"
(Brasiliense, 1990) e "Café Pequeno" (Companhia das Letras,
1995). Mas esta senhora de quase
70 anos, que nos olha sorridente
na foto da orelha do livro, pequena e magrinha, composta, maquinadora como ela só, merece maior
reconhecimento do que o já obtido.
É uma escritora infernal. Esse
seu realismo "diminuído", esse
mundo "Vila Uberabinha", essa
malvadeza quatrocentona na narração, esse "odiento" que ela tem
situam Zulmira Tavares num nível
raras vezes alcançado pela prosa
modernista brasileira.
Lamento dizer, entretanto, que
esse nível é raras vezes alcançado
pela própria autora, ao menos
neste livro.
Em alguns contos ("O Guardador de Sol", "À Pedra Calcinada", "Um Assassino", "Zombaria") é como se a autora entregasse demais o jogo, explicitando a
metáfora que organizava o texto.
Ela deixa cair, na última frase, a
explicação do título: tudo se torna
óbvio demais. Do mesmo modo,
ela às vezes se entrega a um lirismo
puramente verbal, que não tem
nada a ver com a sua dureza de atitude, com sua pureza literária: "O
amor é paisagem marinha que se
recorda" (pág. 66); "Já o que deslembro não me derruba. É breu."
(pág. 38); "O avô cabeceia na poltrona e procura a sua infância com
dedos sonolentos arranhando a
manta xadrez" (pág. 55).
Sentimentalidades que não condizem com a inteligência da autora. Voltemos ao primeiro conto, o
"Cortejo em Abril".
A arte de Zulmira Tavares pode
ser percebida, nos trechos que citei no começo deste artigo, por
meio de pequenos deslocamentos,
de torções diminutas no texto.
Chamou-me a atenção a ausência
de vírgulas: "O senhor viu esse
nosso povo que educação, como
respeitou a passagem do cortejo?". É o que pergunta a senhora
de cabelos azuis ao Consertador
de Tudo. A omissão da vírgula entre "nosso povo" e "que educação" obedece a um intuito de coloquialidade.
Mas não é só coloquialidade. É
automatismo, é violência. Quando
a autora faz essas reproduções da
fala cotidiana, sua atitude não é a
de um mero registro. Investe numa estupidez flaubertiana, que
rompe as regras da gramática. Do
mesmo modo, em outro trecho citado acima, ela escreve: "O Consertador de Tudo lembrou-se de
uma vez quando...".
Uma vez quando? A coloquialidade é mais do que reprodução do
real, mais do que gramática ruinzinha: é esforço de memória do
personagem, inabilidade vernacular que a autora reproduz perversamente.
Pois "Cortejo em Abril" busca
fixar o memorável, o cívico, o político, o histórico, o "uma vez
quando" na mente de um personagem para quem tudo termina
diminuído, respeitosamente, no
âmbito de uma opressão cotidiana
sem perspectiva de mudança. Assim como Tancredo acenava com
"mudanças", o conto acena com
algumas -não posso contá-las-
que se revelam pura mistificação,
puro engodo.
Assim, a sintaxe de Zulmira Tavares imita uma fala "popular"
que o enredo, o texto, a psicologia
pobre do personagem denegam
criticamente. A falta de vírgulas é
uma imitação da fala real. Mas o
real se apresenta sempre, nestes
contos, como frustração. Mais um
motivo para que a autora se aferre
a ele. Daí seu tom de implicância,
de pedra no sapato.
Mas é como se em cada pedra no
sapato houvesse um diamante
bem pequeno. Zulmira Tavares
cede poucas vezes à tentação de lapidá-lo. Prefere, em geral, o feio, o
duro, a jaça ruim que tenha. E
quando revela essa ruindade é
uma escritora fora do comum. O
mesmo comum que ela persegue...
ela é muito esperta.
Marilene Felinto, talvez. Clarice
Lispector, quem sabe, seja páreo.
Lygia Fagundes Telles, num ou
noutro conto. São todas mulheres
que transformaram a feminilidade
em maldade, umas bruxas. Mas
Zulmira Tavares é menos a bruxa
mística, e mais a bruxa material,
implicante, sem psicologia, delas
todas. Seus textos detestam a psicologia: esta bruxa tem cabelos
brancos.
A OBRA
Cortejo em Abril - Zulmira Ribeiro
Tavares. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP
04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 88
págs. R$ 14,50.
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