São Paulo, domingo, 20 de outubro de 2002

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NA COZINHA COM DERRIDA


Inspirados no desconstrucionismo e no pós-colonialismo, chefs e acadêmicos reinventam receitas clássicas e tornam a culinária um meio eficaz para compreender as culturas


por Elaine Showalter

Nos anos 60, quando meu marido e eu viajamos à Inglaterra pela primeira vez, ainda estudantes, teríamos passado fome não fossem os chineses. De Brighton a Durham, de Bath a Norwich, os únicos restaurantes baratos abertos à noite serviam porco agridoce. Até mesmo a comida indiana era exótica e escassa e a comida dos pubs era intragável.
Uma década mais tarde, morando em Londres na primeira licença sabática em nossa carreira acadêmica, ficamos alarmados ao saber que haveria uma greve dos padeiros. Mas, quando corremos para a padaria local com nossas crianças famintas, descobrimos que o único pão que deixara de ser produzido com a greve fora o pão de fôrma, para a compra do qual consumidores desesperados estavam formando filas. Tudo o mais -croissants, baguetes, pão sírio, pão de centeio- existia em profusão, mas ninguém estava comprando. De forma semelhante, o dono do armazém local jamais comera uma alcachofra, embora estivesse começando a vendê-las. À medida que excursões baratas para a Espanha e a França se tornaram mais populares, os hábitos alimentícios britânicos passaram por uma revolução.

Era da celebridade
Londres mudou muito. Pela metade da década de 80, apareceu o personagem urbano conhecido como "foodie" satirizado em "A Vida É Doce" (1990), o filme de Mike Leigh em que a história gira em torno do bistrô Regret Rien e seu ambicioso cardápio de pratos como "liver and lager" [fígado e cerveja]. Os anos 90 foram a era do cozinheiro como celebridade, com o animado sotaque "cockney" [típico da periferia de Londres" de Jamie Oliver ajudando-o a vender mais de um milhão de livros de receitas, e a belíssima Nigella Lawson [estrela de programas de culinária e estilo de vida na Inglaterra] surgindo como deusa da comida.
Agora, do outro lado da rua em nosso apartamento londrino, em Exmouth Market, temos restaurantes franceses, italianos, cipriotas, japoneses, indianos, hispano-marroquinos, de culinária inglesa tradicional, peruanos e tailandeses, além de um café Starbucks. Mesmo em uma visita de fim de semana ao campo, os convidados costumam comer suflês de queijo além dos assados tradicionais.
O mundo acadêmico também mudou muito, e a evolução da comida foi semiótica, além de nutritiva. Desde os anos 60, entre estudiosos tanto britânicos quanto norte-americanos, a comida passou a significar sexo, poder e arte. Em 1963, com a celebrada cena do banquete no filme "Tom Jones" [de Tony Richardson", a comida começou a representar desejos e possibilidades eróticas. Em suas maravilhosas memórias, publicadas em 1999 sob o título "My Kitchen Wars" [Minhas Guerras de Cozinha", Betty Fussell, uma escritora de livros de receita, descreve sua descoberta da sensualidade na culinária francesa durante sua estada em Princeton, nos anos 60.
"Cada novo prato abria novas analogias sexuais. Explorar os interstícios de um escargô com o auxílio de uma faca e um grampo, cada casca em seu lugar no prato quente de metal, cada língua escura oculta nas profundezas das espiras e removida com dificuldade para repousar em um leito de manteiga temperada com alho -o que poderia ser mais erótico?"

Hedonismo
Meu marido e eu comemos escargôs no dia de nosso casamento, em 1963. Mas o mundo acadêmico era então ainda regulado e inimigo dos prazeres, especialmente na faculdade "quaker" onde começamos a namorar. Lembro-me de ir a um jantar onde seis pedacinhos de arenque defumado e temperado foram distribuídos reverentemente aos convidados, em palitos, para servir como primeiro prato. Era preciso que eu me acostumasse com a idéia de que me interessar por comida era grosseiro e antiintelectual.
Mas em 1964, quando nos mudamos para Davis, na Califórnia, ficamos espantados e deliciados com o hedonismo do estilo de vida acadêmico lá, onde professores compravam ações de vinícolas e ofereciam longos jantares com uma profusão de pratos elaborados.
Infelizmente essa era dourada de profusão rapidamente degenerou em uma competição culinária que tornava a vida social um fardo para as mulheres dos professores. Fussell relembra como "os jantares eram munição importante na feroz competição entre nossos maridos e nós mesmas".
Mas, quando ganhamos acesso a profissões e carreiras, nossa culinária competitiva teve de parar e os batedores de arame enferrujaram. Cozinhar tornou-se a arte de grandes chefes como Alice Waters, que criou o [restaurante e café] Chez Panisse, em Berkeley, Califórnia, em 1971. Enquanto isso, os homens e mulheres da academia que cozinhavam nos anos 60 começaram a viajar e a degustar nos anos 80 e 90.

Estudos chiques
Suponho que fosse inevitável que a fase seguinte envolvesse transformar a comida, a cozinha e o ato de comer em disciplina acadêmica -um progresso que pode ter surgido quando Susan Leonardi, professora de inglês na Universidade de Maryland, publicou um artigo sobre receitas na "Publications of the Modern Language Association of America". "Historicamente", diz Darra Golstein, professora da Faculdade Williams, autora de livros de culinária e editora da "Gastronomica" (publicação trimestral da University of California Press), "havia uma separação entre a pesquisa acadêmica e aquilo que a imprensa popular vinha escrevendo sobre comida".
Mas agora, acredita, os estudos alimentares se tornaram tão chiques e tão procurados quanto os estudos femininos ou os estudos cinematográficos. "A comida é uma das melhores maneiras de compreender uma cultura e os rituais que a envolvem. Pode-se perceber o panorama de uma cultura pelo prisma da comida."
Parece a um só tempo engraçado e óbvio que o novo campo dos estudos alimentares passe a empregar técnicas vindas de outros campos acadêmicos que um dia foram moda, como o desconstrucionismo e o pós-colonialismo, no momento em que estes perdem prestígio. Marion Nestle, que dirige o departamento de estudos da nutrição e alimentos na Universidade de Nova York, explica: "Estamos tentando estabelecer os estudos alimentares como um campo de trabalho acadêmico completamente legítimo, com padrões elevados e que seja levado a sério pelas pessoas". Que os estudos alimentares e os estudos femininos sejam um complemento natural é opinião nem sempre popular. "Nos primeiros anos da historiografia da mulher, o assunto era proibido", diz Barbara Haber, historiadora que estuda livros de receitas. "Qualquer coisa relacionada aos alimentos e à cozinha era vista como retrógrada e ruim para a causa."
"Gastronomica" é uma publicação bem produzida, com ilustrações belas e inteligentes, como a capa do primeiro número, que traz uma imagem surpreendente -uma mulher comendo a mão de um homem-, do filme "A Idade de Ouro" (1930), de Luis Buñuel. Goldstein, a editora, diz: "Falamos de fome intelectual e de comida para o pensamento, mas nos esquecemos de que esses conceitos no passado foram alvo de sérios estudos da parte de Erasmo, que aconselhava os leitores a digerir o material em lugar de simplesmente memorizá-lo, a Montaigne, que descrevia educação e digestão como funções paralelas".
Os dois primeiros números da revista contêm artigos sobre a busca pela canela, o chocolate e as estruturas de banha de Janine Antoni [artista contemporânea consagrada que utiliza processos corporais como mastigar, cuspir e morder para criar suas esculturas], a primeira escola de culinária francesa em Nova York, os primeiros livros de culinária dos negros norte-americanos, o uso de queijo siciliano em receitas árabes, o amor pelo McDonald's e a sopa de tartaruga.

"Dividir o pesto"
Fabio Parasecoli, colaborador da revista, aplica termos da teoria literária à história dos alimentos. A nouvelle-cuisine, escreve ele, era como a Nova Crítica. O novo e criativo chef precisa transformar e reinventar receitas clássicas, partes do cânone. Entre as novas técnicas está a desconstrução. Mesmo Nigella Lawson explica como "dividir o pesto em suas partes componentes".
O cozinheiro espanhol Ferran Adria, que já foi comparado ao seu colega catalão Salvador Dalí, credita Jacques Derrida e outros filósofos e teóricos como fontes de inspiração. "Um prato desconstruído", explica ele, "protege o "espírito" de cada produto que emprega e preserva (ou mesmo reforça) a intensidade de seu sabor. Ainda assim", acrescenta, "ele apresenta uma combinação de texturas completamente transformada".
É claro que, no restaurante, o desconstrucionismo pode ser um choque, como admite Adria: "Quando os fregueses esperam por uma galinha ao curry que pediram no cardápio e lhes é servido um sorvete ao curry com geléia de maçã, sopa de coco, caldo de galinha e cebola crua, eles em geral se assustam".
Aposto. Mas talvez para alguns o prazer de estar na vanguarda da cozinha criativa atenue o desapontamento. A sopa desconstruída de Adria, com mousse de milho, mousse de couve-flor, purê de tomate, pêssegos, espuma de beterraba, sorvete de amêndoas e geléia de manjericão é certamente divertida de ler, se não de comer. A próxima fase, talvez, envolva culinária virtual ou conceitual, em que a comida não só é desconstruída como imaginária.
Os fregueses também podem se surpreender com a visão pós-colonial que Lisa Heldke defende sobre comer fora. "Quando comecei minha pós-graduação", escreve Heldke, professora de filosofia e estudos da mulher na Faculdade Gustavus Adolphus (EUA), "entrei em um mundo de culinária e comida experimental, um mundo pesadamente povoado por acadêmicos e gente com renda excedente e disposta a viajar. É um mundo em que culinárias inteiras entram e saem de moda no prazo de um ano".
Mas gradualmente Heldke se desencantou. "Para começar, diversas experiências me causaram desconforto com a fácil capacidade de aquisição que eu demonstrava ao abordar uma nova espécie de comida, a tenacidade que eu demonstrava ao colecionar aventuras. Será que esse espírito de coleta era só uma recriação benigna, como uma coleção de selos?"
Ou nada benigna? "O nome pouco lisonjeiro que eu dei às minhas atividades foi "colonialismo alimentício cultural", o que faz de mim uma colonizadora básica", prossegue ela. "Quando começo a examinar minha viagem pelas culturas, na cozinhas e restaurantes, encontro ecos dos pintores e exploradores europeus do século 19 e do começo do século 20, partindo em busca de culturas mais "novas" e mais "remotas" para cooptar, usar livremente e fora do contexto, como matéria-prima para esforços pessoais de criação e descoberta."

Fonte de culpa moral
No geral, tenho a inquietante sensação de que estamos completando o círculo e voltando a um ponto em que os prazeres simples da cozinha e da comida -ou de sair para comer- se tornam fontes de culpa moral, incorreção política e ansiedade teórica, para além das preocupações já familiares sobre carboidratos, proteínas, açúcares e gorduras.
Ataques sensacionais ao mundo dos restaurantes tais como "Cozinha Confidencial" (Cia. das Letras), de Anthony Bourdain [escritor e chef, que neste livro relata sua experiência nos bastidores da alta cozinha", também podem agir como dissuasão quanto a desfrutar de jantares, e o movimento de combate às alterações genéticas e em defesa dos alimentos naturais parece estar acrescentando uma nova camada de ideologia ao café da manhã, almoço e jantar.
Enquanto isso, porém, os caras que dirigem o Al's Café-Bar, no Exmouth Market, pensam em se expandir para um restaurante alemão, abandonando as frituras inglesas. A desconstrução terá de esperar. Primeiro vem o apfelstrudel.

Elaine Showalter é crítica literária e professora no departamento de inglês da Universidade Princeton. É uma das fundadoras da crítica feminista nos EUA e autora de, entre outros, "Anarquia Sexual" (ed. Rocco) e "Inventing Herself" (Inventando a Si Mesma, ed. Picador). A íntegra deste texto foi publicada no "London Review of Books".
Tradução de Paulo Migliacci.


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