São Paulo, domingo, 20 de outubro de 2002

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O MODERNO ANTIMODERNISTA


"Paulo Emílio no Paraíso", de José Inacio de Mello Souza, reconstitui a trajetória do principal crítico de cinema brasileiro


Paulo Emílio no Paraíso
504 págs., R$ 50,00 de José Inacio de Mello Souza. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2585-2000).

Silviano Santiago
especial para a Folha

Paulo Emílio no Paraíso", de José Inacio de Mello Souza, nos ajuda a melhor conhecer a biografia de Paulo Emílio Salles Gomes e, pela inserção do intelectual na moderna cultura cosmopolita, a delinear com precisão o perfil biográfico de vários participantes do modernismo brasileiro. Ninguém é menos modernista do que Paulo Emílio; em compensação, ninguém é mais moderno no Brasil do século 20. Numa cultura que se manifesta pelo peso do "pão, pão, queijo, queijo", de que Graciliano Ramos e Carlos Drummond são os mais legítimos representantes, e hoje pelos "reality shows", Paulo Emílio se distanciou dos pares para vivenciar transgressões, delírios, sonhos e realizações típicos das vanguardas no Ocidente. Vale dizer, a radicalidade desses movimentos.
Assinale-se que o traço mais importante da trajetória do político, crítico, produtor cultural, professor universitário e escritor é o seu não-enquadramento no cânone modernista brasileiro, tal como estabelecido pela biografia dos pares. No século 20 nacional, Paulo Emílio é ex-cêntrico e é modelo.

A arte da inconveniência
A vida de Paulo Emílio deve ser compreendida pela figura da inconveniência (o latim "convenire" reúne o prefixo "com" e o verbo "venire", vir). Quando tudo indica que se deva descrevê-lo em conveniência com determinado grupo social ou conjunto firme de idéias ou de obras, Paulo Emílio escapa pelo ladrão. Ele é exuberante. A inconveniência assinala o momento em que a exuberância extravasa.
Ao extravasar, ela explode contornos nítidos, predeterminados pela inclinação empírica dos pares. Canalizada pelas quimeras da utopia, a água que o ladrão bota fora viceja poças ao lado do reservatório estanque. Paulo Emílio tem prazer em patinhar nas poças que sua inconveniência alimenta.
Ao prefaciar os depoimentos de Paulo Emílio sobre amigos, [o crítico] Roberto Schwarz destaca passagem em que ele detecta em Plínio Sussekind Rocha, seu colega em Paris, um traço fundamental da sua prática científica. Escreve Paulo sobre o amigo brasileiro: "Tenho a impressão de que naquele tempo Plínio procurava estabelecer, nos mais diversos domínios do conhecimento, um minucioso elenco de exceções e de que vislumbrava a possibilidade de uma regra que as abarcasse todas". Essas palavras podem ser aplicadas a Paulo Emílio, já que traduzem, para ficar com nossos termos, a radicalidade política e estética do excesso. Como construir um reservatório com as poças d'água que boto fora pelo ladrão? Como emoldurar conceitualmente o que não é passível e possível de ser enquadrado -eis o grande dilema que vida e obra de Paulo Emílio coloca para os seus contemporâneos.

Contra o socialismo real
Paulo Emílio está tão inserido na esquerda brasileira da década de 30 quanto Jorge Amado, no entanto não gosta de se definir como homem de partido nem assinar manifestos coletivos. Graças à prematura rebeldia ao socialismo real, os certinhos esboçam caricaturas dele. Ao contrário de Amado, recebe pouca ou nenhuma benesse e propaganda partidária. Por razões políticas, fica preso no [bairro do" Paraíso e na Maria Zélia, no mesmo momento histórico em que Graciliano Ramos é recolhido ao presídio na Ilha Grande.
Graciliano aguarda o resultado das conversas dos amigos com o ditador; Paulo escapa espetacularmente do xilindró, fugindo para o exterior. Paulo não padece o ultraje da reabilitação social em terras cariocas, exigida do nosso romancista maior. Como o autor de "Memórias do Cárcere", combate o ócio por detrás das grades com o gosto pela educação e cultivo das artes, mas do estoicismo daquele se distancia pelo pantagruelismo proporcionado pela "querida mamãe".
Como Fernando Pessoa, Paulo Emílio é dado a heterônimos. Não busca, porém, o sublime proporcionado pela extravagância estética, antes a pomada contra as brotoejas do esquerdismo. O famoso "Merda", livro supostamente escrito por operário, não trazia palavrão (só o título), ao contrário de obras literárias populistas onde pululavam os palavrões, como nas peças de teatro escritas pelo mentor Oswald de Andrade.
É tão boêmio, parisiense e viajor quanto seu mestre e amigo, mas, ao deixar por poucas vezes o casamento trair a vida em bordel, Paulo Emílio é praticamente monogâmico e "fiel ao velho amor" e, ao terminar o ciclo das viagens, ajuda a construir o império institucional da Cinemateca Brasileira.
Capaz de grande habilidade empresarial, como o nosso Augusto Frederico Schmidt ou o gringo Wallace Stevens, embora deles não se aproxime pelo enriquecimento financeiro. Morre com dificuldades de dinheiro. É o único intelectual modernista a levar até as últimas consequências a proposta de Mário de Andrade da "ação da arte pela arte". Estou me referindo aos vários projetos que culminam com a Cinemateca Brasileira, de que fui beneficiário na provinciana Minas Gerais dos anos 50 e foram beneficiários os sócios do Centro de Estudos Cinematográficos, em Belo Horizonte, e os diretores e colaboradores da "Revista de Cinema".
A descoberta do cinema por Paulo Emílio é parisiense e tardia, como assinala Mello Souza. Por ser tardia é que ela sustenta de maneira radical a retirada da reflexão sobre a cultura do campo tradicional da literatura, onde ela e ele se formaram, para entregá-la à teoria e à prática cinematográficas. A tarefa é ciclópica e é preciso enfrentar os anões de plantão. Leia-se o paradoxo que Paulo Emílio enuncia em 1957: "Os que têm uma visão ampla do fenômeno cultural entendem melhor quais são os serviços prestados por uma cinemateca do que os mais próximos à arte do cinema".

"Biblioteca" de filmes
Aos 16 anos, Glauber Rocha lembrava mais os escritos de Euclides da Cunha e José Lins do Rego do que as teses expostas por André Bazin e os "Cahiers du Cinéma". À semelhança da literatura, onde o acervo da biblioteca se combina ao comércio da livraria e ao estudo na escola para formar especialistas e eruditos, chegara o momento de fomentar a qualidade nacional através duma "biblioteca" de filmes, que se mesclaria à exibição deles nas salas de espetáculo e cineclubes.
O projeto duma cinemateca no Brasil, a ser criada nos moldes da homônima francesa e do Film Board norte-americano, sempre alimentou a esperança de jovens críticos de cinema. Todos, indistintamente, passariam da resenha ao ensaio, do ensaio ao livro, do livro à filmagem, da atualidade à história, da teoria à prática. Haverá clave mais sugestiva para ler "Cinema - Trajetória no Subdesenvolvimento" (ed. Paz e Terra)?
Esse desajuste em relação ao cânone é bem ajustado (insisto) à exuberância de Paulo Emílio e aos novos tempos que inaugura. Em lugar de compreender o desajuste na sua radicalidade, os homens de partido caem na cilada armada pelo "mas", de que são exemplos os parágrafos descritivos acima, que escrevemos propositadamente. A contradição, aclaremos, não está na personalidade de Paulo Emílio, está antes no modo radical como o intelectual quis se inserir na cultura brasileira e levar esta a se inserir na moderna cultura cosmopolita ocidental. Paulo Emílio não é intelectual de rebanho nem ovelha negra. Desta se diferencia: caso fosse recolhida pelo divino pastor, não se submeteria, pregaria uma outra palavra, tão ou mais profética, sobre o destino do homem.
Homens de partido gostam de sublinhar a contradição na vida de Paulo Emílio. A (aparente) contradição sempre serve para apequenar. Eduardo Maffei, em "A Batalha da Praça da Sé", relato da manifestação de esquerda contra os "galinhas-verdes" (7 de outubro de 1934), de que o universitário Paulo Emílio sai herói, não consegue controlar o ressentimento.


Paulo Emílio é a negação do jeito de ser submisso do brasileiro, em que muitos dos nossos melhores deixam sucumbir sua originalidade; por querer se enquadrar aos seus ideais de mocidade, ele não se deixa enquadrar pelo carro civilizatório da conveniência, que a todo momento nos atropela


Desabafa e vale a pena transcrevê-lo: "Mas o destino tem das suas. Quando [Paulo Emílio] morreu, quem fez sobre seu ataúde a oração fúnebre foi o mesmo que, integralista, naquele episódio estivera do lado oposto, Francisco Luís de Almeida Sales". Partido e destino escrevem certo, ainda que por linhas tortas e tardias.
Ao contrário do que pensa Maffei, Paulo Emílio não cultiva os opostos. Não edifica o movimento dialético, que se compara ao torvelinho das contradições.
Cultiva antes o radicalismo pela semelhança entre oponentes. O oponente, quando encarado como semelhante, é signo não de abastardamento, mas de compressão intestina dos elementos que estão em luta na realidade social, política e econômica. O oposto do comunista não é o integralista, é o liberal. O mais grave defeito em país ditatorial é o de deixar que liberalismo e democracia se confundam. Comunistas e integralistas são oponentes e, por isso, semelhantes na luta contra o liberalismo. A exuberância não admite o status quo como parceiro de vida. Paulo Emílio é antiliberal e democrata.
Talvez seja essa a herança maior que Paulo Emílio tenha recebido dos devastadores anos 30 e prodigado a muitos estudantes da USP. Lembro-me de palavras de Murilo Mendes na revista "Lanterna Verde": "É uma mocidade que se orienta para o comunismo ou para o catolicismo, mas que não quer saber de liberalismo". E destas de Jorge Amado: "Aquele que não está de um lado está necessariamente do outro".
Paulo Emílio é a negação do jeito de ser submisso do brasileiro, em que muitos dos nossos melhores deixam sucumbir sua originalidade. Por querer se enquadrar aos seus ideais de mocidade, ele não se deixa enquadrar pelo carro civilizatório da conveniência, que a todo momento nos atropela. A democracia não está em cima do muro.

A formação do mito
Se homens de partido tendem a apequená-lo pelo viés da contradição, os amigos, admiradores e ex-alunos tendem a magnificá-lo pela mitificação (sem "s" antes do "t"). De novo, a exuberância colhe os seus frutos, agora na fundação do mito que o singulariza. Como nutrir o fascínio que exerce sobre o fascinado, sem cair nas armadilhas do populismo e do carisma? Esse é o maior risco da politização pela exuberância. Como transformar um traço fascinante na economia libidinal do indivíduo em força anônima e coletiva, que faz trabalhar os reclamos da justiça social e da igualdade econômica?
[O crítico] Antonio Candido, em recente entrevista à TV Cultura, delega a si o papel de planeta que girou em torno de Paulo Emílio. Em todo e qualquer caso, principalmente no caso de Paulo Emílio, é preciso tomar cuidado com o heliocentrismo (e tomo aqui a palavra como Hélio Oiticica a conceituou ao tentar explicar a função que exercia e o papel que performava em Nova York. Oiticica, é claro, trabalhava seu nome de batismo a partir de dois sinônimos: o Sol, brilho, e o gás nobre, leveza).
A mitificação tem perseguido a biografia de Paulo Emílio, em que fugas espetaculares da cadeia se misturam a exílios inventados, em que festas de arromba em pleno oceano Atlântico se acoplam a bordéis que acordam ao tonitruar da sua voz. "Paulo Emílio no Paraíso" dela não escapa em algumas passagens. Citemos uma.
Não se justifica que Mello Souza caia no cacoete memorialista inaugurado por Fernando Gabeira e companheiros de geração. O cacoete diz que o relato da infância não tem importância na biografia do guerrilheiro político. Este começa a viver aos 20 anos no livro, já adulto e inteligente. Logo na introdução, Mello Souza escreve: "Pouco saberemos [nesta biografia] sobre o Paulo menino ou adolescente, e isso não faz muita falta". Faz, José Inácio, sobretudo se páginas adiante você descrever -numa linguagem de história em quadrinho, tipo Capitão Marvel- o dia da aparição do menino Paulo para a vida social.
Numa biografia tão pesquisada e meticulosa, tão diligentemente organizada e escrita, como ler o trecho em que se descreve a ingestão por Paulo de pó de quenopódio? Antes era "um menino apático e inexpressivo". Ingerido o vermífugo, passa pela "morte", "estado cataléptico" e "renascimento". E, shazam!, "acorda de chofre, completamente mudado. Estrábico e careteiro. E muito falador". Nasce o Paulo "diferente", pronto para lutas libertárias, que o distanciariam mais e mais do conservadorismo familiar. Será que é dessa forma que conseguiremos tirar Paulo Emílio do "confortável pedestal mitológico"?


Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico de literatura, autor de, entre outros, "Stella Manhattan" e "Uma Literatura nos Trópicos" (ambos pela ed. Rocco).



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