São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 2007

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QUAL AMÉRICA

Sob o seu aparente vazio de propostas políticas, o nacionalismo evoca ressonâncias históricas e um precioso ativo intercultural

EDUARDO GRAEFF
ESPECIAL PARA A FOLHA

A escola de samba Unidos da Vila Isabel ganhou o Carnaval do Rio de Janeiro de 2006 com o enredo "Soy Loco por Ti, América", destacando a figura de Simon Bolívar. O governo venezuelano patrocinou a escola por meio da companhia petrolífera estatal PDVSA. O ídolo do futebol argentino Diego Maradona deu a seguinte entrevista à Folha (coluna Mônica Bergamo, 28/02/06) enquanto assistia ao desfile:

FOLHA - Você é amigo do Hugo Chávez. E o que pensa do presidente Lula?
MARADONA
- Lulaaaa. Lulaaa. Eu amo o Lula. [Apontando para a tatuagem de Che Guevara que tem no braço, grita] Lulaaaa.

FOLHA - Mas o Lula não é o Che Guevara...
MARADONA
- Se você não gosta do Lula, a mim não importa. Eu sim. [Abre os braços] Lulaaa, Lulaaa! Eu sou Chávez, Fidel Castro e Lula. Nós, que somos Chávez, somos antiamericanos. Antiamericanos.
Maradona tampouco parece se importar com as óbvias diferenças entre Fidel Castro, Hugo Chávez e Lula quando os junta na mesma alegoria político-carnavalesca. O espectro do "nacionalismo esquerdista antiamericano" voltou a pairar sobre a América Latina depois de duas décadas de adesão geral à democracia liberal e ao capitalismo de mercado. A onda esquerdista tem pelo menos duas vertentes, segundo a maioria dos observadores. Lula ficaria na ala dos "moderados", junto com Michelle Bachelet, do Chile, e Tabaré Vázquez, do Uruguai. Chávez e Evo Morales, da Bolívia, seriam "radicais".
Lula repudia os rótulos de antiamericano e esquerdista, embora com a dose certa de ambigüidade para dar alento aos esquerdistas antiamericanos de seu partido. Contudo, ele provavelmente não se recusaria a figurar junto de Castro, Chávez, Morales e outros menos votados no bloco dos nacionalistas. Esquerdistas, em termos. Antiamericanos, uns mais, outros menos. Mas, em todo caso, nacionalistas: este parece o mínimo denominador comum dos líderes que assumiram o primeiro plano na América Latina no refluxo da onda democrático-liberal.
O historiador Kenneth Maxwell rejeita a divisão entre uma "boa" e uma "má" esquerdas latino-americanas. Em vez disso, o que ele vê na região é "um mosaico de respostas específicas a estruturas políticas decadentes, cada vez mais altos níveis de desigualdade e exclusão social, tendências crescentes de migração interna e externa, tudo misturado a uma impressionante capacidade de comunicação através de regiões geográficas e de classes e etnias" (Mais!, 28/05/06). Na falta de remédios ideológicos mais fortes para o mal-estar político-social, o nacionalismo parece a panacéia à mão, inócua, mas reconfortante, como um chazinho caseiro. Inútil descartá-lo como mercadoria com prazo de validade vencido.
Se tantos líderes diferentes apelam para ele, é porque fala ao coração do povo. Convém entender por que isso acontece e como o nacionalismo pode influenciar os rumos da América Latina. Quais conteúdos o nacionalismo veicula por baixo de seu aparente vazio de propostas políticas específicas?

Nossa América e a outra
Historicamente, o nacionalismo latino-americano é, sim, antiamericano, repelido e ao mesmo tempo atraído pelo poder e a riqueza dos EUA. O nome "América Latina" foi adotado pela diplomacia de Luís Bonaparte, na década de 1860, quando a França tentava ganhar influência sobre os países americanos católicos e falantes de línguas latinas, em contraposição à outra América, protestante e anglo-saxã. O apelo à latinidade teve pouca repercussão na época. A inquietação com o "destino manifesto" expansionista dos EUA, no entanto, marcou desde cedo o nacionalismo hispano-americano.
Acrescente-se a isso o fascínio pelo capitalismo americano, admirado por seu dinamismo e repudiado pela glorificação do dinheiro, das coisas materiais e efêmeras, em contraposição aos supostos valores espirituais de "Nuestra América" (tema e título de um artigo do cubano José Martí, de 1891). O Brasil monárquico, mais voltado para a Europa do que para seus vizinhos de continente, basicamente ignorou essa primeira onda antiamericana.
Em 1890 a nova República Federativa adotou o nome oficial "Estados Unidos do Brasil" e se aproximou dos Estados Unidos da América, vistos como exemplo de progresso mais do que ameaça. A segunda onda antiamericana varreu a América Latina a partir da década de 1960, no contexto da Guerra Fria. Inspirada pela Revolução Cubana e pelo repúdio às tentativas dos EUA de abafá-la, ela se propagou rapidamente, na velocidade dos novos meios de transporte e comunicação, e alcançou todos os países, inclusive o Brasil. O apoio dos EUA às ditaduras militares que se instalaram na região acabou de assimilar esquerdismo, nacionalismo e antiamericanismo.

O Estado acima da nação
Menos ou mais do que esquerdista, no sentido de socialista, o nacionalismo latino-americano é um nacional-estatismo. Na Europa, a formação dos Estados modernos no século 19 foi precedida em mais de 400 anos pela emergência de nacionalidades enquanto comunidades de língua amalgamadas pela imprensa. Nas Américas, as novas nações nasceram no berço das estruturas de Estado preexistentes, herança de quatro séculos de colonização. Isso explica por que o império hispano-americano se fragmentou no processo da independência, cada unidade administrativa dando origem a um Estado separado, apesar da comunidade de língua. O Brasil não se desintegrou porque o herdeiro do trono português, D. Pedro 1º, tomou a frente da independência e trouxe consigo, mais ou menos inteira, a máquina administrativa-militar colonial.
Pelo resto do século 19, entrando pelo 20, o Estado será o baluarte do nacionalismo latino-americano. Sua vanguarda é a burocracia estatal. Dela o nacionalismo assimila a visão basicamente patrimonialista, avessa à competição sem chegar a ser anticapitalista, e politicamente paternalista, receosa da mobilização das camadas populares. Sua grande bandeira econômica é a propriedade estatal dos recursos naturais no território nacional como escudo contra a cobiça estrangeira.
O Estado protecionista-intervencionista, mais do que a empresa privada, foi o principal agente da industrialização da América Latina de 1930 a 1980. O nacional-desenvolvimentismo é herdeiro direto dessa tradição, embora voltado para a inclusão social e política das massas urbanas.

Página quase virada
Enquanto instrumento de consolidação dos novos Estados independentes, a missão do nacionalismo na América Latina completou-se no começo do século passado. Como ideologia a serviço da inclusão das massas, seu papel esgotou-se na década de 1960. Desde então a retórica nacionalista tem se prestado sobretudo a arremedos de incorporação do povo à ordem estatal sob regimes autoritários.
Com a América Latina fora das prioridades estratégicas dos EUA desde o fim da Guerra Fria, o imperialismo tornou-se um fantasma difícil de materializar nesta parte do mundo. O antiamericanismo, nessas condições, subsiste como um valor identitário e uma senha de resistência ao capitalismo global, este sim cada vez mais presente e perturbador.
A sobrevivência do nacionalismo se explica pelas ressonâncias históricas vagas mas familiares que ainda é capaz de evocar. Seu apelo aumenta na razão inversa da capacidade das elites dirigentes latino-americanas de oferecer alternativas efetivas de inclusão social das massas dentro do raio de manobra reduzido que a globalização deixa aos Estados nacionais. Mas nem tudo é eco do passado na nova onda nacionalista que varre a América Latina. As manifestações mais vibrantes da cultura latino-americana contemporânea passam longe do estatismo e do antiamericanismo, sem deixar de ser triunfantemente nacionais, no sentido da originalidade.

Identidade em projeto
A literatura latino-americana do século 19 transitou da tematização do exotismo do Novo Mundo sob moldes europeus (o "bom selvagem" romântico) para o tratamento realista de dramas populares numa perspectiva popular. A entrada em cena do povo como protagonista aconteceu mais cedo e com mais vigor na música, sob o signo da interculturalidade. Alejo Carpentier, na crônica "O Anjo das Maracas" (em "Visão da América", Martins Editora), descreve um concerto em homenagem ao bispo da cidade cubana de Bayamo, em 1608, no qual tambores africanos e flautas indígenas se misturam com instrumentos de corda europeus.
Esse evento, diz ele, é o primeiro de que se tem notícia a reunir "todos os elementos sonoros que caracterizarão a futura música do continente, música que, tanto em suas expressões cultas como nas populares e folclóricas, no início deste século [20], irromperá com dinamismo próprio no panorama da música universal". Também de Cuba, do fim do século 19, vem o primeiro gênero musical -o bolero- que realmente unifica a América Latina. Adotado pelo México, depois por Porto Rico, ele caiu no gosto popular de toda a região no primeiro quartel do século 20, difundido por artistas em excursão e cada vez mais pelo disco e pelo rádio. No mesmo período e pelos mesmos meios, o merengue dominicano, a cumbia colombiana, o tango argentino-uruguaio e o samba brasileiro começam a cruzar fronteiras para compor o "pot-pourri" musical em que os latino-americanos reconhecerão a si mesmos e pelo qual serão reconhecidos no mundo.
Embora ocasionalmente instrumentalizada pelo Estado, a cultura popular latino-americana brota no solo do que hoje chamamos sociedade civil -às vezes com tanto mais viço quanto menor a proteção oficial- e se deixa abraçar sem timidez pela indústria cultural. Vista pela lente da cultura, a América Latina é um caleidoscópio onde vislumbres de unidade se desfazem num mosaico de influências européias, indígenas e africanas combinadas em proporções muito desiguais nos vários países. O que articula esses pedaços não são tanto as raízes ancestrais quanto os meios de comunicação de massa e sua capacidade de recolher, misturar, recriar e difundir temas e estilos diferentes.
Assim como a indústria da imprensa decantou as nacionalidades européias entre os séculos 16 e 19, a do disco, do rádio, do cinema e da televisão processa a possível identidade latino-americana contemporânea. Musicalmente falando, essa identidade é mais afro do que latino-americana. O veio mais rico da multibilionária indústria fonográfica mundial é a música afro-americana feita no Rio de Janeiro, na Bahia, no Caribe, em Nova Orleans, em Chicago, embalada e distribuída por negociantes judeus em Los Angeles e Nova York. Se na economia pós-industrial a geração de valor se desloca da transformação material para a criação do conteúdo simbólico, a interculturalidade pode ser um ativo tão precioso quanto a biodiversidade para a América Latina.
A grande pergunta é como colocar esse ativo a serviço de projetos viáveis de desenvolvimento nacional e regional, em vez de desperdiçá-lo em signos estéreis de resistência à globalização. A resposta dá assunto para vários outros artigos. Mas com certeza não estará no velho dirigismo movido a verbas estatais que Chávez tenta reeditar com sua Telesur, coadjuvado por Lula. Nem num "laissez-faire" indiferente às tendências monopolistas homogeneizadoras da indústria cultural. Entre um e outro deve haver espaço para uma visão democrática progressista das identidades culturais latino-americanas e para políticas condizentes com essa visão.


EDUARDO GRAEFF é cientista político. Foi secretário-geral da Presidência da República no governo Fernando Henrique Cardoso.

A íntegra deste texto pode ser lida em: www.e-agora.org.br/uploads/NossaAmerica


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