São Paulo, domingo, 21 de março de 2004 |
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Transição inacabada
APÓS O FRACASSO DAS ECONOMIAS COMANDADAS PELO ESTADO,
NOVO MODELO DE CRESCIMENTO "PRÓ-MERCADO" SE INSTALA
NO PAÍS, PARADOXALMENTE SOB UM GOVERNO DE ESQUERDA
A experiência dos anos 1990 serviu para inverter nossa postura no tocante à auto-suficiência: a soberania se construirá por meio da competitividade e da competência, e para tanto a abertura e a defesa da concorrência são imperativos óbvios, pois resultam em reverter uma tendência já antiga de estagnação da produtividade do trabalho e, portanto, geram condições para a realização de algo que se afigurava impossível no modelo antigo: crescer, ser competitivo e melhorar a distribuição da renda. Sem embargo o binômio protecionismo/inflacionismo nos legou -ou amplificou- uma espécie de apartheid social, cujas bases eram duplas: produtividade do trabalho estagnada em níveis baixos e tributação do pobre por meio da inflação. Na verdade, estavam justamente aí as causas do colapso do modelo: com o renascimento da democracia, a partir de meados dos anos 1980, a hiperinflação se torna a expressão da impossibilidade em obter crescimento com ampliação da desigualdade por meio da inflação, desequilíbrio fiscal e das transferências de renda determinadas pela "política industrial", da qual o protecionismo era apenas uma parte. Um novo modelo precisava ser construído sobre as ruínas do antigo, e há tempos que o país se encontra numa transição inacabada. Entendeu-se com o tempo que, por um lado, responsabilidade fiscal e moeda sadia e, de outro, um ambiente de competição proporcionado, entre outros processos, pela abertura eram essenciais para assegurar a estabilidade macroeconômica, a cessação da tributação do pobre por meio da inflação e a modernização da economia (leia-se crescimento da produtividade do trabalho). Mas ainda não se pode dizer que esse entendimento seja pacífico; os ataques ao Banco Central e ao "superávit primário" não cessam, pois para muitos parece que a disciplina fiscal e monetária é um expediente temporário, imposto pelo FMI, e não uma mudança permanente e paradigmática no modo de gerir o dinheiro público. A natureza do problema fiscal é reveladora: a própria sociedade impôs ao Estado responsabilidades, vale dizer, obrigações de gastar, em volume muito superior aos recursos que disponibilizava ao Estado sob a forma de impostos. Em boa medida, esse impasse se torna mais visível ao longo do tempo, com o advento da democracia, pois ficaram progressivamente ampliadas as responsabilidades do Estado no campo social, sem que se reduzissem proporcionalmente os compromissos anteriores no campo do desenvolvimento. Não era matematicamente possível a coexistência de um "Estado-Investidor" e do "Estado do Bem-Estar Social", senão em um cenário de uma carga tributária muito superior à atual. E assim o impasse se transformou em hiperinflação, paralisia e decepção. Assim sendo, independente de persuasão ideológica, o que se tem é que, se o Estado precisa encolher para o tamanho dos recursos que a sociedade lhe fornece a título de impostos, precisa transferir responsabilidades de investimento para o setor privado, via privatização, de concessões de serviços públicos, ou de variantes sobre esses temas, como as Parcerias Público-Privadas. Trata-se, portanto, de redefinir o paradigma para as finanças públicas tendo em mente a democracia: o Estado precisa caber dentro dos recursos que a sociedade lhe fornece como impostos e, se não o faz, tributa ou endivida a sociedade de forma ilegítima, vale dizer, sem representação. Em condições de equilíbrio fiscal, o crescimento deve ter como eixo principal o investimento privado. O crescimento sustentado precisa que a formação de capital (como porcentagem do PIB) alcance níveis "asiáticos" (cerca do dobro do que temos hoje), o que, por sua vez, depende de o setor privado adquirir horizontes largos e confiança plena na estabilidade da macroeconomia e dos marcos regulatórios e de as finanças públicas adquirirem robustez consistente com a redução do custo do capital e do "risco-soberano". É paradoxal que esse passo final da construção de um novo modelo de crescimento "pró-mercado" tenha que ter lugar sob um governo de esquerda, que, com efeito, não revela, ao menos de início, muita familiaridade com a "tecnologia" para fazer crescer o investimento privado. Não se trata mais, propriamente, da "vontade política" do soberano e do acesso que este pode ter aos cofres do Banco Central para viabilizar o investimento público, mas de milhões de pequenas "vontades de investir" individuais e ingovernáveis, cujo espaço deve ser cuidadosamente cultivado pelo Estado, que deixa de ser o investidor e condutor do processo, mas o promotor do "clima de negócios" -ou da moldura básica-, em torno do qual cada uma dessas "vontades", de forma coordenada e voluntária, se transforma em expansão da capacidade de produzir. Só assim teremos investimento e crescimento. Gustavo H. B. Franco é economista e ex-presidente do Banco Central (entre 1997 e 1999). Texto Anterior: Desenvolvimento como imperativo econômico Próximo Texto: O país flutuante Índice |
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