São Paulo, domingo, 21 de março de 2004

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Desrazões do desastre

COMBINAÇÃO DE REFORMAS INSTITUCIONAIS, FORTALECIMENTO DO ESTADO E TAXAS DE JUROS MAIS BAIXAS É A ÚNICA FORMA DE REVERTER OS EFEITOS DAS POLÍTICAS ECONÔMICAS IRRACIONAIS POR QUE PASSOU O PAÍS

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Desde 1980 a economia enfrenta uma crise sem precedentes na história do Brasil independente, sua renda per capita crescendo menos de 1% ao ano. Em conseqüência, a economia é incapaz de absorver o crescimento da população, e a taxa de desemprego aumenta ano a ano. Quais as razões desse desastre? Para as compreendermos é preciso dividir o período em duas partes. Entre 1980 e 1994, a grande crise está diretamente relacionada com a crise da dívida externa e com a crise fiscal e se expressa em altas taxas de inflação. A crise da dívida externa é uma crise de solvência da nação como um todo, enquanto a crise fiscal é uma crise do Estado, que traduz o esgotamento do modelo de substituição de importações. Mal ou bem, esses problemas foram enfrentados nos anos 80 e início dos anos 90, de forma que estavam razoavelmente equacionados quando o Plano Real afinal logra estabilizar a alta inflação. A reforma da economia brasileira começa com a bem-sucedida desvalorização cambial de 1983, a partir da qual se produziram elevados superávits comerciais, continua com a renegociação da dívida e a abertura comercial, ambas políticas iniciadas em 1987, e se completa com a neutralização da inércia inflacionária em 1994. Após a estabilização dos preços, era de esperar que a economia retomasse o desenvolvimento. Já naquele momento, porém, as agências governamentais e semigovernamentais em Washington e os agentes do sistema financeiro internacional em Nova York (as duas fontes da ortodoxia convencional) propunham aos países emergentes uma nova estratégia de desenvolvimento: "Crescer com poupança externa". Essa estratégia contraria os mais comezinhos princípios de política econômica, ao partir de um diagnóstico equivocado (os países em desenvolvimento não teriam mais recursos para crescer por conta própria), para propor um crescimento com endividamento externo adicional.


A curto prazo o que é necessário é mudar a equação macroeconômica perversa de altas taxas de juros e de câmbio ainda valorizado


A condição para isso era a de lograrem "credibilidade" junto de Washington e Nova York, ou seja, que deixassem de pensar por conta própria e seguissem as políticas recomendadas. Quais eram elas? Adicionar à abertura comercial a total abertura financeira (para que o financiamento pudesse ocorrer livremente no mercado auto-regulado...) e combater a inflação com ajuste fiscal e elevação da taxa de juros. Dessas três recomendações, apenas a do ajuste fiscal era razoável -na verdade, necessária. No plano das relações externas, abrir a conta capital para crescer com poupança externa significava perder controle sobre a taxa de câmbio e valorizar cronicamente essa taxa, quando sabemos que os países só alcançam altos níveis de poupança e de crescimento enquanto mantêm a taxa de câmbio relativamente depreciada. A política proposta significava, portanto, destruir o modesto ajuste externo até então logrado, deixando o país mais vulnerável a novas crises de balanço de pagamento. Essas não tardaram: materializaram-se em 1998 e em 2002.

Nível civilizado
No plano interno, a política macroeconômica era e continua a ser igualmente desastrosa. A taxa de juros básica do Banco Central será o instrumento do "non-sense". Ela se mantinha muito alta em termos reais desde o final dos anos 80 e fora elevada de forma violenta e irresponsável em dezembro de 1991, como fruto de um acordo com o FMI. Continuou elevada depois do Plano Real, quando era mais do que razoável que baixasse para níveis civilizados, compatíveis com as classificações de risco do país. Continua elevada até hoje, dificilmente descendo abaixo de 9% reais. A ortodoxia convencional argumentava e argumenta a favor dessas taxas, dizendo que são necessárias para atrair capitais e para combater a inflação. Na verdade, em relação aos capitais externos, o problema do Brasil (como sabem perfeitamente os países asiáticos, que não estão semi-estagnados) não era e não é o de atraí-los, mas o de regular a sua entrada, de forma a manter sua taxa de câmbio competitiva. Em relação à inflação, não há nela nada que justifique os níveis de taxa de juros praticados no Brasil. Podemos discutir, em cada momento do ciclo econômico, se se deve elevar ou baixar a taxa de juros para combater a inflação de demanda ou para reduzir o desemprego, respectivamente, mas para isso não é preciso que o nível da taxa real básica de juros seja três a quatro vezes maior do que a que prevalece em países com classificação de risco igual ou pior do que as do Brasil. As causas da crise atual são, portanto, irracionais, se por racional entendermos as políticas públicas voltadas para o interesse nacional. Não há razões para o desastre, há desrazões. O que é preciso fazer para que o Brasil retorne ao desenvolvimento? A ortodoxia convencional afirma que o mais importante é prosseguir com as reformas. Sem dúvida, as reformas institucionais devem ser continuadas, desde que sua preocupação fundamental não seja simplesmente reduzir o tamanho do Estado, mas lhe dar condições para que desempenhe seu papel de garantir o funcionamento dos mercados e promover a distribuição de renda. O desenvolvimento só é possível quando o mercado e o Estado são fortes.

Excedente
Além disso, é preciso pensar em um grande projeto de desenvolvimento nacional que parta do pressuposto de que o setor moderno, capitalista, não tem condições de absorver toda a mão-de-obra excedente do país. Por isso, é preciso que existam políticas de inclusão dos trabalhadores na vida econômica que permitam melhorar suas condições de vida e sua integração ao mercado sem que, para isso, seja necessário se tornarem empregados nas grandes empresas.
Todavia os resultados, tanto das reformas institucionais quanto da nova estratégia de desenvolvimento, só ocorrem a médio e a longo prazo. A curto prazo o que é necessário é mudar a equação macroeconômica perversa de altas taxas de juros e de câmbio ainda valorizado. Só assim alcançaremos a verdadeira estabilidade macroeconômica, que não significa apenas estabilidade de preços, mas implica equilíbrio das contas externas e fiscais. Para isso, porém, será preciso ter a coragem de enfrentar os interesses dos rentistas e do mercado financeiro e a ortodoxia convencional em que se apóiam.

Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor da Fundação Getúlio Vargas (SP) e foi ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração Federal e Reforma do Estado e também da Ciência e Tecnologia (governo FHC). É autor de "Desenvolvimento e Crise no Brasil - História, Economia e Política de Getúlio Vargas a Lula" (editora 34). Internet: www.bresserpereira.org.br


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