São Paulo, domingo, 21 de março de 2004

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Do surgimento até hoje, a cidade é analisada em "A Sedução do Lugar", de Joseph Rykwert, que defende a ação comunitária como solução dos problemas urbanos

A dinâmica atraente dos conflitos

Isabel Lustosa
especial para a Folha

Com erudição e bom humor, Joseph Rykwert, arquiteto e professor da Universidade da Pensilvânia (EUA), autor consagrado de vários livros, nos conta em "A Sedução do Lugar" como surgiram as cidades, como se transformaram no que são hoje e que papel os urbanistas desempenharam nesse percurso. As grandes cidades sempre foram vistas como lugares confusos, onde o homem tornado anônimo pela multidão liberaria seus piores instintos. Foi do contraste com elas que Morus e Campanelli imaginaram suas utopias. Essas obras proporcionaram uma crítica das práticas urbanas então correntes e se converteram em fonte de sugestões para os reformadores do século 19. Talvez o fato de essas cidades se localizarem geralmente em alguma parte remota e desconhecida do mundo tenha levado muita gente a acreditar que a distância alcançada com uma travessia oceânica forneceria as condições para o estabelecimento de uma comunidade organizada, racional e benevolente que acabaria por melhorar a sociedade em geral.

Construção de utopias
A construção de utopias se tornou uma ocupação muito popular nos EUA do século 19. Projetos de socialistas utópicos, como Robert Owen, para cidades nascidas em torno de fábricas se baseavam na crença de que uma ordem social racionalmente concebida a partir de uma nova cidade forneceria a cura para o caos urbano. Esta esperança foi sendo repetidamente frustrada ao longo do século 19. A disputa entre os que buscavam a beleza e os que se voltavam apenas para os problemas práticos da cidade acompanha a história do urbanismo e da arquitetura no mundo. Já na França revolucionária do século 18, Jean-Nicolas-Louis Durand, professor da Escola Politécnica, em Paris, criticava a inutilidade do ornamento. Seu método de ensino era claro e esquemático, e Durand foi o primeiro grande mestre da racionalização do planejamento urbano, o primeiro a pensar avenidas como grandes artérias destinadas apenas à circulação.


Com o avanço das transformações tecnológicas, a questão do estilo perdeu importância. Arquitetos e engenheiros começam a dar cada vez mais atenção à planta, à ventilação e à higiene


Desde o Palácio de Cristal, em Londres, da Exposição de 1851, até a torre Eiffel, da Exposição de 1889, em Paris, as artes decorativas passaram por grandes transformações. O arquiteto e designer Owen Jones lançou, em 1856, a idéia do ornamento baseado em formas da natureza que iria florescer plenamente no art nouveau. No entanto esse estilo tão otimista não sobreviveu ao baixo-astral da Primeira Guerra. A versão geometrizada do art nouveau, o art déco, surgiu por volta de 1920 e representou uma maneira alegre e cosmopolita de lidar com o modernismo. Rapidamente adotado nos EUA, onde se revelou muito adequado para os arranha-céus e transatlânticos, o art déco parecia a síntese mais apropriada da era do jazz. Mas esse estilo também perdeu sua força após a queda da Bolsa de Nova York, em 1929. Com o avanço das transformações tecnológicas, a questão do estilo perdeu importância. Arquitetos e engenheiros começam a dar cada vez mais atenção à planta, à ventilação e à higiene. Uma nova visão sugeria que talvez os prédios não precisassem ter estilo, que suas formas talvez devessem ser projetadas a partir de suas funções e da melhor utilização dos materiais. Essa linha de pensamento desembarcaria na Bauhaus, onde Walter Gropius reduziria o arquiteto a um simples membro da equipe cuja atribuição era resolver o problema proposto pelo cliente. Com a chegada dos nazistas ao poder, em 1938, o pensamento da Bauhaus se transplantou para os EUA, onde Ludwig Mies van der Rohe, seu último diretor, reorganizaria o Instituto de Tecnologia de Illinois segundo aqueles princípios.

Doenças urbanas
No final do século 19, as dificuldades de circulação e os constantes congestionamentos já eram vistos como uma doença urbana. Em 1894, Arturo Soria y Mata, apresentou o projeto da "ciudad lineal" como solução definitiva para o problema da circulação. A cidade linear teria largura definida, mas poderia se estender infinitamente. Entre 1929 e 1930, a cidade linear apareceu nos planos urbanísticos de Le Corbusier. Ela também encontrou seguidores na Bauhaus. Com a mudança de alguns deles para Chicago, a idéia foi ali desenvolvida. A aplicação das teses da Bauhaus, sem o talento de seus criadores, resultou, na visão de Rykwert, numa das paisagem urbanas mais desoladas do século. Na origem dessa paisagem útil esteve também a reunião do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, que aconteceu em Atenas, em 1933. Foram formuladas ali as 111 teses que compõem a Carta de Atenas e que forneceram as bases para o urbanismo que se fez nos 50 anos seguintes. De acordo com a carta, toda cidade deveria ser analisada em razão de quatro funções básicas: habitação -com preferência por edifícios de apartamentos altos e afastados uns dos outros; trabalho -repartições, escritórios e fábrica; lazer -parques e estádios- e circulação. Uma das conseqüências mais dramáticas para as cidades criadas a partir dessa receita foi o radical zoneamento de suas funções, com a perda daquela mistura urbana que dá às cidades mais antigas vida, agitação e movimento. O exemplar mais completo da aplicação da Carta de Atenas é, segundo Rykwert, Brasília.

Revisão crítica
A Nova Carta de Atenas, datada de 1998, promove a revisão crítica da anterior, adverte contra o aumento da densidade do tráfego nas cidades e chama a atenção para as implicações da revolução nas telecomunicações. Reconhecendo que "a aplicação de uma política estrita de zoneamento criou padrões monótonos de uso do solo e rompeu a continuidade e a diversidade da vida urbana", recomenda o aumento das zonas de uso misto e dedica especial atenção à questão dos transportes e ao problema da poluição.
Rykwert acredita na força da ação comunitária e nas iniciativas dos cidadãos e das ONGs. Ele acha que o poder de protestos coletivos contra agências públicas e empresas do setor privado vem se tornando cada vez mais vigoroso e eficaz na solução dos problemas urbanos. Ao contrário dos que pintam a moderna cidade de forma negativa, Rykwert, um apaixonado assumido por Nova York, acha que são justamente seus conflitos que a tornam tão convidativa e atraente. A seu ver, qualquer política urbana deve partir do pressuposto de que não é possível obter uma resolução ideal para todos os conflitos que uma cidade comporta.

Isabel Lustosa é cientista política, pesquisadora da Casa de Rui Barbosa, no Rio, e autora de "Brasil pelo Método Confuso - Humor e Boemia em Mendes Fradique" (ed. Bertrand Brasil).

A Sedução do Lugar
410 págs., R$ 48,50 de Joseph Rykwert. Trad. Valter Lellis Siqueira. Ed. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330/340, CEP 01325-000, SP, tel. 0/xx/11/3241-3677).



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