São Paulo, domingo, 21 de março de 2004

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"A Vida Cultural do Automóvel" traça um amplo panorama dos primórdios e ascensão dos carros no Ocidente e sua influência sobre a arte e o comportamento

As quatro rodas da civilização

Norbert Millauer - 22.jan.2004/DDP-France Presse
Artista dá acabamento em escultura de gelo em Neuhermsdorf, na Alemanha


Ronaldo Vainfas
especial para a Folha

Guillermo Giucci é autor conhecido dos historiadores brasileiros, dedicado, por décadas, ao estudo do imaginário dos descobrimentos. É dele, por exemplo, "Viajantes do Maravilhoso" (Companhia das Letras), livro sobre autores quinhentistas como Léry, Staden e outros. Neste novo livro -"A Vida Cultural do Automóvel"-, a guinada é tremenda quanto à área de interesse e à temporalidade, mas ainda é de maravilha que se trata, pois o automóvel foi mesmo a realização de um sonho, na altura em que surgiu e se disseminou no Ocidente, entre fins do século 19 e primeiras décadas do 20. Um velho sonho idealizado por Julio Verne, célebre ficcionista dos Oitocentos, que imaginara um veículo híbrido, meio casa, meio carro, no seu "A Casa a Vapor". Nos anos 1920, o escritor francês Raymond Roussel diria sem rodeios ter adquirido "uma casa sobre rodas" para passear pela Europa. E se tratava mesmo de um palácio sobre rodas, com espelhos, tapetes -um luxo. O livro pretende, assim, não propriamente fazer a história do automóvel no mundo ocidental, mas recuperar a carga simbólica de que se viu investido nessa sua fase, digamos, heróica. "Podemos imaginar o século 20 e a atualidade sem o automóvel?", indaga o autor. É claro que não. Mas no esplendor da belle époque o automóvel era um prodígio só superado -e muito cedo- pelo avião. Tempo de mudanças frenéticas que se atropelavam literalmente.

Infância e maturidade
Na história das grandes tecnologias ocidentais, dessas que revolucionaram a economia, a sociedade e a cultura do século 20, o automóvel foi sem dúvida o ponto de partida. Seguiu-se a ele o avião, depois a comunicação eletrônica e, finalmente, as biotecnologias. E a própria história do automóvel tem a sua periodização, é claro, até se tornar um fenômeno mundial de massa. O "período formativo", entre 1885 e a Primeira Guerra Mundial, foi o tempo em que os altos custos de produção se combinavam com resultados pífios. O "período de crescimento", de 1919 a 1935, correspondeu à consolidação da nova tecnologia para os padrões da época, com os devidos efeitos multiplicadores: as rodovias. É o tempo do fordismo, para citar um exemplo célebre de racionalização máxima da indústria no limiar do século passado. Enfim, o "período de maturidade", de meados dos anos 1930 até os anos 1950, quando o carro alcança o mercado de massa. No primeiro capítulo, talvez o mais atraente do livro, o autor se ocupa dos primórdios do automóvel, do tempo em que ele não passava de um "conjunto inseguro de peças e mecanismos". Sem chaves, ligado por uma manivela, depois por um botão, sem espelho retrovisor ou seta, aberto e, por isso, vulnerável ao calor e ao frio, pneus encomendados a fábricas de bicicletas, freios precários. Mas pouco a pouco o automóvel trouxe uma nova forma de liberdade que, segundo o autor, punha em questão a distinção entre "a mobilidade aristocrática e a democrática". A modernidade cinética do automóvel invadiu o vocabulário cotidiano, a poesia, a filosofia. Walter Benjamin utiliza o exemplo do motor do automóvel para demonstrar o surgimento de uma nova forma de cultura. Blaise Cendrars fez versos em que o carro violeta do prefeito cruzava com o vermelho dos bombeiros "feéricos e rápidos, selvagens e quentes, como tigresas evocando estrelas fugazes". O automóvel passou a ser, de diversos modos, o símbolo da modernidade, da cidade e do mundo burgueses. Mas o carro é, desde sua infância, uma máquina perigosíssima. E naquele tempo o era deliberadamente, pois não havia nem sequer regras de trânsito. Para que se tenha uma idéia, na Inglaterra vigia uma lei que obrigava que, diante do carro, fosse um homem com uma bandeira vermelha para alertar os pedestres sobre a "máquina potencialmente assassina".

A morte à espreita
Em 1896, o "Red Flag Act" foi revogado e, por coincidência, ocorreu o primeiro acidente: uma senhora foi atropelada por um automóvel que se deslocava a 7 km por hora nas cercanias do Crystal Palace. O condutor gritou para que não avançasse e chegou a soar a buzina, tudo em vão. A morte estava à espreita. "Estradas ruins, descuido, alta velocidade, cavalos que disparavam em frente ao monstro mecânico, cães que atravessavam, pneus que explodiam, freios que falhavam." Resultados parciais: 30 mil mortos nos EUA nas primeiras décadas do século 20, sem contar os feridos e mutilados. No capítulo dois, o autor verticaliza alguns temas de interesse, a começar pela propaganda, sua relação com o consumo e a cultura em geral. Em seguida, o tema é o do "amor sobre rodas", embora Giucci advirta que não há provas do impacto do automóvel nas práticas sexuais do início do século. Mas houve quem escrevesse que o "automóvel se transformou em uma casa de prostituição sobre rodas". De todo modo, amor, flerte, conquista amorosa, namoro, tudo isso faria parte da história do automóvel desde a sua juventude, como nos mostra o autor.

Fordismo
Os dois capítulos seguintes tratam de Henry Ford e do fordismo, centrados em análise minuciosa de bibliografia. O capítulo 5, enfim, se debruça sobre os itinerários da globalização, isto é, a expansão mundial do automóvel, sobretudo na América Latina, ainda nas primeiras décadas do século passado.
O novo livro de Giucci oferece, assim, tema algo inusitado ao leitor, no qual o protagonista é o automóvel. O objeto, porém, numa palavra, é a cultura ocidental ou as mudanças por que ela passou, nos mais variados domínios, a partir do invento automobilístico.
É verdade que o livro exagera nas demonstrações, multiplicando evidências além da conta. A plêiade de exemplos literários e filosóficos adensa o livro, mas por vezes atropela o leitor, sem trocadilho. A narrativa de vez em quando se dispersa, pondo em cena autores brasileiros que bem poderiam se concentrar no capítulo final. Mas é livro de erudição impressionante, que aborda, de forma original, transformações cruciais do mundo burguês no século 20. Século veloz, "et pour cause".


Ronaldo Vainfas é professor de história moderna na Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor de "Os Protagonistas Anônimos da História" (ed. Campus), entre outros livros.

A Vida Cultural do Automóvel
368 págs., R$ 38,90 de Guillermo Giucci. Ed. Civilização Brasileira (rua Argentina, 171, Rio de Janeiro, RJ, CEP 20921-380, tel. 0/ xx/21/ 2585-2000).



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