São Paulo, domingo, 21 de novembro de 2004

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Argentina abrigou mais de 300 nazistas do 2º escalão

Expoentes do regime se mataram, mas fugitivos se ocultaram na Espanha e na América Latina

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Na longa história de guerras da Europa, os vencidos em geral não tinham muito a temer dos vencedores, depois dos piores momentos das guerras de religião do século 17, caso tivessem se comportado segundo as regras que foram balizando o comportamento dos combatentes -por exemplo, não matar ou escravizar civis ou soldados prisioneiros.
Como a Alemanha nazista (1933-1945) violou todas essas regras e inventou algumas violações novas, seus líderes político-militares tinham poucas opções com o final da Segunda Guerra, em 1945: se rendiam incondicionalmente, como foi exigido pelos aliados, e se expunham à sua justiça; ou se matavam, ou tentavam fugir para locais relativamente amistosos.
Os principais líderes tomaram a opção do suicídio -o líder supremo Adolf Hitler (1889-1945), seu propagandista Joseph Goebbels (1897-1945), seu ministro do interior e organizador do genocídio dos judeus Heinrich Himmler (1900-1945) e o chefe da força aérea, Hermann Goering (1893-1946), que foi capturado, mas escapou da forca ao se matar antes. O secretário pessoal de Adolf Hitler, Martin Bormann (1900-1945), foi morto pelos russos durante a queda de Berlim, mas o mistério sobre sua morte perdurou por décadas.
O mistério tinha razão de ser.
Alguns líderes nazistas foram julgados pelos aliados em Nuremberg e executados, como o general Alfred Jodl (1890-1946), que comandou várias das campanhas militares nazistas. O homem que substituiu Hitler no comando do Terceiro Reich, o almirante Karl Doenitz (1891-1980), artífice da letal guerra de submarinos contra a navegação aliada, foi absolvido.
Mas um terceiro grupo conseguiu escapar de julgamento ou punição. Em geral era gente de escalões menores, mas com grande culpa no cartório, como o pessoal da SS, instituição que surgiu como guarda pessoal dos líderes nazistas e se transformou num Estado dentro do Estado, com forças armadas próprias (as "Waffen-SS").
O mais notório dos fujões foi Adolf Eichmann (1906-1962), oficial da SS diretamente ligado ao genocídio dos judeus: foi ele que introduziu as câmaras de gás como um método mais "eficiente" para fazer a matança dos prisioneiros em escala industrial. Eichmann escapou para a Argentina, onde foi capturado por agentes israelenses, julgado e enforcado em Israel.
Outro notório criminoso foi o médico Josef Mengele (1911-1979), que apesar de não ter cargo elevado na hierarquia nazista, se notabilizou por fazer experimentos com seres humanos no campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia. Mengele não era o principal oficial médico de Auschwitz, mas era o que rotineiramente esperava a chegada dos trens com prisioneiros para selecionar quem deveria ser morto imediatamente, quem deveria ser enviado para trabalhos forçados e quem poderia servir de cobaia em seus experimentos.
Depois de um tempo escondido no campo na Alemanha, assim como outros nazistas, ele escapou e viajou para para Argentina, aonde chegou em 1949. Ficou ali quase uma década, foi então para o Paraguai e para o Brasil, onde morreu sem ser descoberto em 1979.
Depois de Eichmann e de Mengele, o mais famoso criminoso de guerra na região foi Erich Priebke (1913- ), capitão da SS e envolvido em um massacre de 335 civis italianos em represália pela morte de 33 soldados alemães (a idéia era matar dez civis para cada soldado morto). Vivia confortavelmente em Bariloche, na Argentina, onde era considerado um cidadão modelo até ser identificado em 1994 e extraditado para a Itália, depois de uma demorada pendenga judicial.
Não há dúvida de que os nazistas que vieram para a América Latina (e para outras partes do mundo favoráveis, como a Espanha franquista ou países islâmicos) tiveram alguma ajuda na Europa para conseguir documentos falsos.
Especulou-se que teria mesmo havido uma organização para facilitar a fuga, a Odessa (sigla em alemão de "Organização de ex-membros da SS"), que entrou no imaginário popular com o livro, depois filmado, "O Dossiê Odessa", do escritor britânico Frederick Forsyth.
O "caçador de nazistas" Simon Wiesenthal acredita na existência da Odessa. Mas nunca houve provas claras. A organização da fuga dos nazistas não precisaria necessariamente ter uma organização centralizada, mas poderia ser obra de vários grupos clandestinos.
O pesquisador que mais foi a fundo em tentar revelar a extensão da fuga nazista para a América Latina, o argentino Uki Goñi, revela que várias conexões teriam existido, envolvendo até mesmo gente no Vaticano. Segundo Goñi, pelo menos 300 nazistas teriam conseguido abrigo na Argentina.
A Argentina foi simpatizante do nazismo durante toda a guerra. Só declarou guerra à Alemanha em 1945, pouco antes do fim -caso contrário o país não teria como entrar na nascente Organização das Nações Unidas e sofreria sanções econômicas dos vitoriosos.
Que a Argentina tinha fama de ser um refúgio seguro ficou óbvio quando um comandante de submarino alemão, Heinz Schaeffer, chegou ao país em agosto de 1945 com seu barco, o U-977. Schaeffer preferiu fazer uma épica viagem de 108 dias (66 deles submerso) para se render ali a se entregar aos aliados. Na época logo surgiu o rumor de que Hitler estaria a bordo.
O líder argentino Juan Domingo Perón foi um notório simpatizante do nazismo e se cercou de pessoas da comunidade alemã no país que tinham fortes vínculos com a Alemanha de Hitler. Perón também procurou o auxílio de engenheiros e militares alemães para reforçar seus projetos de desenvolvimento da indústria bélica. Um exemplo foi o coronel das Waffen-SS Otto Skorzeny (1908-1975), um dos mais eficientes soldados de "força especial" da guerra. Entre suas façanhas está a libertação do ditador italiano Benito Mussolini, prisioneiro em local de difícil acesso. Skorzeny foi absolvido de crimes de guerra. Foi morar na Espanha e, além de Perón, também assessorou o egípcio Gamal Abdel Nasser.
Esse também foi o caso de Kurt Tank (1898-1983), engenheiro aeronáutico que projetou o caça Focke-Wulf 190 e criou na Argentina o primeiro avião a jato da América Latina, o Pulqui, baseado em seus últimos projetos da era nazista. Russos e americanos tinham feito o mesmo antes. Os cientistas envolvidos no projeto dos V-2 foram divididos entre os dois lados da cortina de ferro. Os EUA ficaram com o principal, Wernher von Braun (1912-1977), figura-chave em projetar o pouso na Lua.


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