São Paulo, domingo, 22 de junho de 2008

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EDUARDO GIANNETTI

O autor
Machado disseca, Rosa fabula.
Metade de mim pondera, metade de mim oscila. Qual deles? Premido pelo apuro, invoco Drummond: "Serei fraco iletrado, pálido mineirinho, o juiz da contenda?". Nem toda pergunta admite uma resposta definitiva.
Por temperamento e afinidade anglo-analítica, tendo a preferir Machado; mas por encanto e feitiço teuto-dialético, inclino-me ao mistério de Rosa.
Diante de gênios polares e incontestáveis como eles, desbravadores da língua e da arte de dizer o que não se deixa falar, não há veredicto possível.
Qualquer balança é precária, toda relação de preferência é instável. Machado e Rosa são inventores da língua. Um lapida milagres em estrita adesão a regras e restrições formais; o outro inunda, subverte e expande torrencialmente o espectro de virtualidades da nossa língua.
Em justiça a cada um deles e a nós mesmos, o placar da contenda só pode ser um empate técnico no infinito.

A obra
Coloque "Dom Casmurro" e "Grande Sertão" lado a lado: os subterrâneos de um subúrbio carioca e o sertão metafísico das gerais, um Otelo anêmico e um Fausto jagunço.
A obra-prima de Machado é o primado da hiperconsciência crítica, do autocontrole expressivo, da lâmina implacável da razão sobre qualquer aspiração de transcendência ou enlevo espiritual. Rosa é o avesso disso: intuição, revelação, esperança agreste a brotar "mesmo do meio do fel do desespero".
Tudo em sua obra máxima é senha de outra vida, irrupção criptográfica, fresta de mistério.
Se Machado cavalga a linguagem munido de esporas e rédea curta, Rosa é como que cavalgado ou possuído por ela. Em "Dom Casmurro", a operação devassa de um pessimismo viril; no "Grande Sertão", a religião da confiança cósmica: a vitória sobre o mal por meio de um pacto com o mal.
A singular coincidência deste duplo centenário de brasileiros imortais dá o que pensar. Se Machado e Rosa foram possíveis, o Brasil é possível.


EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA é economista e professor do Ibmec São Paulo. Está lançando "O Livro das Citações" (Cia. das Letras).



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