São Paulo, domingo, 22 de junho de 2008

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JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA

O autor
Machado de Assis -pois ele exercitou quase todos os gêneros literários e em todos aperfeiçoou o domínio de sua técnica.
Na "Advertência" de "Ressurreição", primeiro romance do autor, publicado em 1872, o leitor encontra a ressalva:
"Venho apresentar-lhe um ensaio em gênero novo para mim (...). A crítica decidirá se a obra corresponde ao intuito, e sobretudo se o operário tem jeito para ela". Proponho que se leve a sério a metáfora, compreendendo-a como estruturadora da obra e da visão do mundo do autor de "Papéis Avulsos".
Em outras palavras, há uma indispensável lição machadiana:
o artista somente se realiza ao triunfar sobre o artesão talentoso; no fundo, o artista não se desenvolve em virtude de seu talento, mas sim ao resistir à facilidade proporcionada pelo dom que possui.
Nesse horizonte, recupera-se a etimologia: o artista deve antes de tudo conhecer bem as regras do ofício -como poucos, Machado soube conciliar talento e esforço, inspiração e meditação.

A obra
"Dom Casmurro". O ciúme, ensina o dicionário, define-se pelo "receio de que o ente amado dedique seu afeto a outrem".
O ciúme, porém, possui uma dimensão muito mais inquietante: o ciumento nunca dispõe da prova definitiva da infidelidade.
Por isso, é um possessivo dotado de poderosa imaginação: um escritor malogrado, que, em lugar de livros, produz fantasias de adultério. Em suma, o ciúme é um discurso autocentrado, cuja auto-referência vale como se fosse comprovação de seus termos, num círculo vicioso difícil de romper, a não ser talvez por meio da autoconsciência propiciada pela experiência literária.
Ora, a literatura também não dispõe de "provas", não expõe "evidências"; a literatura alimenta-se da dúvida. Nesse sentido, "Dom Casmurro" é um dos mais poderosos elogios à força da ficção, à idéia da literatura como filosofia que não pára de pensar, pois não se compromete com "verdade" nenhuma, a não ser com o questionamento da idéia mesma de "verdade".


JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA é ensaísta e professor universitário, autor de "À Roda de Machado de Assis" (ed. Argos).


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