São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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OS ARQUÉTIPOS DE UM BEATNIK

O PESQUISADOR SEBASTIÃO MILARÉ FALA DO LIVRO QUE ESTÁ CONCLUINDO, EM QUE RECOMPÕE A EVOLUÇÃO DO MÉTODO DE ANTUNES FILHO DESDE "MACUNAÍMA", DE 1978

especial para a Folha

Sebastião Milaré está escrevendo aquilo que promete ser a "suma" do método de Antunes Filho para a preparação do ator: o livro "Hierofania - O Teatro segundo Antunes Filho" (ainda sem editora definida). Hierofania é o termo de Mircea Eliade para a manifestação do sagrado no mundo profano. Na entrevista a seguir, Milaré adianta alguns de seus principais achados ao longo da pesquisa. A obra, que ele deve concluir até o final deste ano, descreve as formas como Antunes integra corpo, voz e espírito do intérprete num caminho uno de procura não só do sucesso nos palcos, mas também de autoconhecimento na vida.
O diretor de artes cênicas do Centro Cultural São Paulo é também autor de "Antunes Filho e a Dimensão Utópica" (ed. Perspectiva). Ele já tem pronto um outro estudo sobre o papel revolucionário, mas ainda pouco conhecido, do dramaturgo Renato Viana (1894-1953) como um elo de ligação -antes de Nelson Rodrigues e Ziembinski- entre a Semana de 22 e o moderno teatro brasileiro. (CAIO LIUDVIK)
 
Como o sr. estruturou seu livro?
Na segunda parte, que eu ainda estou escrevendo, discuto o método em si. A primeira é sobre o repertório de Antunes desde "Macunaíma" até "Drácula e Outros Vampiros", porque depois disso Antunes se fechou no CPT com seus atores para fazer a sistematização do método. Quando Antunes fez "Macunaíma", ele trabalhou a matéria mítica, mas porque ela já está no texto do Mário de Andrade. Em "Peer Gynt" (1971), assim como nos Nelson Rodrigues que ele tinha feito anteriormente, "A Falecida", "Bonitinha mas Ordinária", ele trabalhou com a psicologia pessoal freudiana.
Quando ele foi fazer "Nelson Rodrigues - O Eterno Retorno" (1980), ele viu que não tinha sustentação na doutrina freudiana para juntar as seis peças do Nelson que ele inicialmente queria pôr no espetáculo. Foi aí que descobriu a psicologia analítica, leu Jung, de quem só tinha antes ouvido falar, e também Mircea Eliade, principalmente "O Mito do Eterno Retorno", de que inclusive pegou o título para pôr na montagem. No "Macunaíma", ele trabalhava a teatralidade, não ia pelo universo do inconsciente coletivo, a não ser intuitivamente. E, para trabalhar a encenação [de "Nelson Rodrigues"], teve que começar a exigir que os atores entrassem no universo dos arquétipos.
Nisso começou a estruturação de seu método. Antunes não é de fazer citação. Não é porque ele leu Jung que iria dizer "ah, já sei de arquétipos" e deixaria os atores representando naquela velha escola, naquele realismo stanislavskiano que procura a memória emotiva, a sua emoção pessoal etc. Nada disso adiantava. Ele tinha que descobrir meios de fazer o ator chegar a uma percepção do arquétipo e a trabalhar com uma emoção que não é pessoal, mas que vem de coisas remotas, da espécie humana.

Havia também uma necessidade pessoal, de ordem religiosa, que empurrava Antunes para esses referenciais?
É difícil você dizer que é isso ou aquilo, faz parte de uma geração toda, ele não é o único. Os grandes criadores do teatro universal que são da época dele, como Peter Brook, Grotowski, vão buscar o universo mitológico. E isso não é só entre os homens de teatro. Para mim, isso começa na Segunda Guerra, com a bomba atômica. Houve uma necessidade de o intelectual e o artista descobrirem maneiras e formas de enfrentar essa realidade de que o homem pode destruir o planeta. Nos anos 50 começa a invasão do Ocidente pela filosofia oriental, antes era de uma maneira muito pontual. Tome os beatniks, por exemplo, que já falam em buscar a santidade por meio do crime. Antunes é dessa geração. É uma mentalidade dessa geração, ele já tem uma predisposição cultural para isso.

Depois desse embrião em "O Eterno Retorno", como continua o desenvolvimento do método?
No "Augusto Matraga", por exemplo, o Antunes ficava num desespero, era quando o chamavam de ditador por gritar muito etc., mas ele gritava porque estava num desespero pessoal que ele jogava em cima dos atores. No "Nelson Rodrigues" ele trabalhava com a psicologia analítica, já no "Matraga" vai se aprofundar no sentido do zen-budismo, entra aí a idéia do "ser tao".
Raul Cortez fazia Matraga, e, Luís Melo, Joãozinho Bem-Bem. Quando os dois se digladiavam no palco, entravam os outros atores representando bois, era uma coisa muito descritiva. Eu me lembro que, logo depois da estréia, eu conversava com Antunes no saguão do [teatro] Sesc Anchieta [atual Sesc Consolação] e ele me disse: "Não é isso, esse espetáculo tem que ser como uma roda de monges dançando seus mantras, uma roda de luz". E explodiu: "Pô, é isso mesmo!", e chamou o Davi de Brito [iluminador]. No dia seguinte, já estava assim: a platéia entrava, o palco estava com um refletor aceso, fazendo um círculo de luz no palco.
No final, não entrava mais a manada, ficava aquele foco de luz novamente, e Matraga se digladiava com Bem-Bem em volta do círculo, na região escura, e depois caíam e morriam dentro do círculo. Ele eliminou a parte descritiva e colocou um valor simbólico e zen, que é o que ele queria fazer. Estava buscando uma encenação metafísica. Logo depois começa a ler "O Tao da Física", de Fritjof Capra, e percebe a ligação de tudo o que ele pesquisava antes como coisas separadas.
Capra fazia uma súmula de coisas que juntavam várias vertentes da nova física, com exceção de Einstein, que sempre foi um pouco mais cético, e nunca aceitou o princípio da incerteza. Mas os que trabalhavam com a física quântica perceberam que o pensamento oriental era muito mais propício a descrever a realidade do que o pensamento cartesiano.
Antunes descobre então o paradigma holográfico, que vai ser fundamental para que ele aprofunde sua busca, ele não quer saber dessa realidade que é perceptível a olho nu, ele quer uma realidade que está contida nela, mas que é muito maior que ela, e que a comanda. Mas o que acho bonito é que o Antunes não vai ao conceito e o aplica na encenação, ele quer que isso nasça no ator, e o método dele é legal porque isso nasce do ator. O princípio da incerteza te dá um apoio muito grande para certos aspectos do ator, ele percebe que a matéria de repente se revela misteriosa, isso entra para o nível poético do ator.

Ele tenta levar o ator, portanto, a um alargamento do conceito de realidade?
Sim, o que ele faz não é diferente do que Stanislavski faz, só que Stanislavski era dominado pelo pensamento freudiano, pelo determinismo da física clássica, e o que Antunes faz é buscar essa mesma realidade. O "Prêt-à-Porter" é isso, mas são outros os caminhos para chegar a essa reprodução da realidade. O "Prêt-à-Porter" é um falso naturalismo porque é tudo desenhado, não é como em Stanislavski, em que o ator "tem que sentir".

Qual é o conceito central do método?
É a complementaridade, mas o ator só consegue chegar a ela, criando uma linguagem a partir da união de idéias opostas, se estiver afastado do personagem; ele o ator não podem jamais se confundir com o personagem, o ator tem que ter muito claro que está representado. É o que Antunes chama de afastamento. Ao mesmo tempo não pode fazer uma coisa falsa, tem que pôr a própria verdade dele.

Nessa volta anunciada de Antunes, com "Antígona", ao modelo do grande espetáculo, o sr. vê o fim de um ciclo que se iniciara, com o despojamento cênico radical e a ênfase nos atores, após "Drácula"?
Quando ele fez o "Drácula" voltou a ser aquele encenador que comandava tudo, porque foi perdendo os atores anteriores, já não tinha a Samantha Monteiro, a Rita Martins, a Flávia Pucci, que trabalharam esse início do método para ele, e saiu o Luís Melo, que era o cara que realmente o acompanhava na construção do método.
Então ele se viu muito sozinho, num descampado. Aí pegou aquele pessoal novo, inexperiente, e tinha que ser novamente o encenador, determinando todas as coisas, para deixar o espetáculo vigoroso. Mas logo retomaria a pesquisa e começou a pinçar atores para constituir novamente isso que veio a ser o método. Não foi só depois de "Drácula", e com o "Prêt-à-Porter", que o Antunes enveredou pela direção de atores. Já em "Nova Velha História" (1991), por exemplo, o Antunes só organizou o que os atores tinham criado. O ideal dele sempre foi esse, de o ator ser o dono da cena.

Que técnicas o sr. destacaria no método?
Por exemplo, para o Antunes, o ar ambiente, ou ar vital, que fica na boca, não serve para o teatro. Por isso você não pode usar a mesma tubulação, tem que criar uma outra tubulação. Se você fizer uma radiografia você só tem uma laringe, não duas (risos), mas não faz mal. Aí entra a holografia. Essa segunda laringe é como se tivesse uma lingüinha que fisga uma quantidade de ar, o ar artístico ou ar dramático, que vai ficar fechado, tem uma tampinha, um pistão. O ator vai soltar o ar estritamente necessário para aquele som que ele vai emitir. O grande problema do ator é descobrir a sua segunda laringe (risos). E as atrizes do Antunes aprenderam primeiro, acho que a mulher entende mais do próprio corpo do que o homem.
Para fazer o método do Antunes você tem que ter uma consciência de corpo muito grande. Não podemos esquecer, quanto à voz, a diferença, a oposição que o Antunes faz entre a projeção e a ressonância. Assim como o olhar do ator tem de ter um "véu", não sair diretamente para o público, a fala artística também tem que sair por trás, pela nuca, pelo que o Antunes chama de "vaga-lume". Você consegue perceber que a voz de qualquer ator de Antunes não é projetada, é sempre uma coisa macia, envolvente, sai pela nuca, é a ressonância . A projeção é aquele velho esquema de "falar de modo que a velhinha surda da última fila escute"; isso sai numa seta, é sintoma de ansiedade.

E o desequilíbrio?
O desequilíbrio [técnica de deixar o corpo projetar-se para frente até quase se estatelar no chão] era fundamental, embora Antunes aparentemente não o use mais. Ele ficou louco da vida de ver muita gente fazendo desequilíbrio no palco por aí. Mas não foi só por isso. O desequilíbrio era um exercício muito violento, desestruturava completamente a pessoa, poucos atores conseguiam vencer a barreira do desequilíbrio. Dava muitos pesadelos, crises de insônia, angústia. Não tem diferença entre sua psique e seu físico, entre o espírito e a matéria, eles são uma unidade, e no momento em que você começou a fazer esse descondicionamento tão violento do corpo, de se jogar, a sua cabeça começa a se desestruturar também.
A função do desequilíbrio era você encontrar e preservar o seu eixo, o seu ponto de equilíbrio. Você vai para o desequilíbrio absoluto para encontrar seu equilíbrio. É o que dará plasticidade, por exemplo, ao ator que tiver que fazer um cara todo destrambelhado. Se ele tiver o seu ponto de equilíbrio, ele só vai fingir aqueles trejeitos. O corpo do ator tem que saber ir para todo lado para fingir que vai para todo lado, sem na verdade sair de seu eixo.
Tem também [a técnica d]o funâmbulo, que é fingir que se está andando na corda bamba. Eu imagino a corda embaixo do pé, e quando vou mudar o passo sinto esse desequilíbrio. Assim vou estar trabalhando a cintura, o jogo das pernas, e o yin-yang dos pés. Quando estou com os pés plantados no chão, estou bem yang, e de repente vou para o yin. Os atores fazem o funâmbulo todos os dias, horas seguidas. Isso vai provocar o desequilíbrio, sem aquela coisa violenta. O corpo tem que encontrar a sua estabilidade, sem sua cabeça comandar. Em seu método, quando o ator está bem preparado, ele não faz nada, o ator não tem que fazer nada. O corpo do ator tem que estar sempre num relaxamento ativo, sem nenhuma tensão desnecessária.

Como o método de Antunes ajudaria concretamente o ator na construção de um personagem?
É importante nunca esquecer o princípio da complementaridade. O ator vai fazer a programação do personagem. Ele vai tornar esse personagem uma peça de análise clínica, a mais cartesiana possível, separar todos os elementos, analisar todos os aspectos do personagem, se ele tem um problema físico, espiritual etc. Ele vai ter que programar esse personagem, tudo o que ele tem que fazer em cena. Tudo aqui é racional.
O Antunes porém não faz trabalho de mesa, de leituras etc., tem as discussões, cada ator busca o seu entendimento a partir do que está sendo discutido por todos e orientado pelo Antunes. Mas todo esse trabalho dá a plataforma, a partir daí você vai delirar, você não vai ficar pensando, tudo o que você estudou já está em você, esquece. Você vai começar a fazer seu personagem entrar no desequilíbrio, dar seu corpo ao personagem. O organograma do personagem já estava construído, só que vai começar a pôr coisas que a análise jamais conseguiria, você vai permitir que venham coisas lá de trás, os arquétipos e tudo mais. Aí os personagens ganham vida.
Claro que essas duas etapas são simultâneas, até porque o ator tem que estar sempre trabalhando o corpo, tenha ou não um papel definido. A análise da peça é feita paralelamente à manutenção técnica do corpo. O ator não vai conseguir imaginar a trajetória do personagem sem ter uma experimentação. Cada ator está procurando o universo de seu personagem em sintonia com os outros, e é sempre uma abordagem "ao redor", você, por exemplo, não decora o texto, você vai ganhando o texto cercando-o. É sempre a coisa em volta, não diretamente, você mal vai perceber e o personagem já estará em você.

Esse método de Antunes é algo inovador no panorama nacional e mundial?
Sem dúvida, embora haja alguns paralelos nos grandes mestres da segunda metade do século 20, nunca porém com a mesma dimensão. O Grotowski, por exemplo,deixa o teatro para trás, fica uma coisa mística, o que o Peter Brook faz tem mais identidade com o Antunes, eles correm na mesma direção, mas eu acho que ele não sistematizou seu processo de trabalho de uma maneira tão minuciosa quanto o Antunes. Falavam muito que o Antunes imitava a Pina Bausch, mas se você viu os últimos trabalhos da Pina Bausch, aquilo lá é uma piada, quem faz uma besteira como essa não pode ter construído nada sério, sistemático. Eu acho que o Antunes tem uma originalidade muito grande, ele chega a desenvolver questões técnicas que atores de todas as partes do mundo batalharam muito para encontrar.

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